O.CADERNOS DO ISTA, 5

Agustina e Duras:
COMOVER-SE COM A VIDA
OU DESESPERAR
ALEGREMENTE DELA (2)

José Augusto Mourão





Literatura e compaixão

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De facto, o título desta conversa parece cínico: atribuem-se a Duras e Agustina concepções “cínicas” do amor. Ora, em vez de cinismo, deveria falar-se de melancolia, ou de cepticismo, ou descontamento quanto à finalidade do amor. Pode Agustina prever o fim da culpa e da compaixão (1), mas a sua postura de escritora nasce dessa sensibilidade. Pode Duras pregar um “gai désespoir” sem apelo, mas a sua conduta de escritora nunca se desviou da solidariedade com os excluídos, os párias, os condenados desta terra e dos valores activos, militantes dos princípios. Daí o encontro possível entre estes dois génios da literatura. Daí também o seu valor exemplar para a questão da ética da literatura e da ética em geral. A conversa ou a literatura são agora irredutíveis a puras práticas privadas entre outras. Um dado é certo: não é a conversação e menos ainda a abstração das teorias e dos sermões que nos tornam sensíveis ao sofrimento dos outros, mas os relatos etnográficos (Oliver Sacks) e um certo género de narrativas romanescas (Henry James ou Nabokov, Duras ou Agustina). O mesmo poder têm o cinema e a televisão que Rorty considera “os principais vectores da mudança moral e do progresso” (Rorty, 1993b, p. 17). O alargamento do nós (comunidade de fala) passa pelo desenvolvimento da educação sentimental que a literatura europeia praticou ao longo dos dois últimos séculos (Rorty, 1994a, p. 24, p. 30). É sob o fundo de uma tal compaixão - que não se reduz a uma participação afectiva da miséria do mundo apenas quando esta é encenada pelos media - que Rorty diz das democracias ocidentais: “várias de entre elas, inclusive os Estados Unidos, estão actualmente sob o controlo de uma classe média cada vez mais cupida e egoísta que elege permanentemente demagogos cínicos que, para prometer uma redução de impostos ao seu eleitorado, não hesitam em privar o fraco de esperança. Se este processo continua uma geração mais(...), torna-se estúpido esperar uma qualquer reforma, e absolutamente sensato aspirar a uma revolução” (Rorty, 1994b, p. 30; Rorty, 1992, p. 267-271).

Será sensato confiar à literatura uma função salvadora (é assim que Sophia de Mello olha a poesia, pelo menos) quando alguns dos mais sonantes nomes da nossa literatura já lhe anunciam o fim? Ouçamos Agustina Bessa-Luís, exactamente: “Hoje há qualquer coisa que acontece na literatura: é que se sente um vazio. Não sabemos quem vai subsistir, quem vai continuar. Mas vai ter de fazer um esforço muito maior. É que a presente raça discutidora está condenada a desaparecer. E, sem a discussão, o que vai acontecer? Só haverá factos. E o enorme esforço até hoje operado pela literatura, o da generosidade,do encontro, da empatia, já não estará aí. Estará noutra forma de convivência. Por isso, eu tenho, e com tanta, com tanta mágoa, de vos dizer que a literatura tem contados os dias.” (2).

“Sempre a achei profundamente digna do nome de escritora porque os escritores definem-se, por certa maneira, de se comoverem com a vida. Distinguem-se dos profetas porque observam e defendem o que observam, ainda que às vezes travem os seus combates na condição laboratorial de ver de perto o mundo e de longe os seus prazeres”, escreve Agustina Bessa-Luís a propósito da morte recente de Maria Judite de Carvalho (3). Comover-se com a vida, por algo que separa o escritor da vida comunitária e de que, afinal, depende. Numa entrevista recente com Mário Cláudio, Agustina, a propósito do sofrimento, diz:”a piedade vem com o sofrimento próprio. Quando se começa a sofrer, começa-se a transpor o sofrimento para os outros, inclusivamente para os amigos. Acho que quanto mais uma pessoa cresce, mais tem o sentido da angústia da vida.” (4). Deixemos a Artur Portela um dos melhores retratos de ABL: “Insuportavelmente mansa, apaixonadamente tranquila, ferozmente polida, ironicamente dramática, este enorme talento que pensa atmosfericamente, em sucessão de ciclones e de frentes depressionárias, este Abril de mil sóis, que intui a lógica, logiciza a intuição e refunde, em si, a nacionalidade, diz-se, diz o que tem a dizer, sobretudo, o que quer dizer, com um caudal enganador. É uma torrente que sabe o que quer e para onde vai.”(Portela: 8). Ao contrário de Duras, Agustina é “uma conservadora que sempre contempla a alteração”, como ela própria se define numa entrevista a F. Viegas (5). Agustina não perderá o olhar vivo sobre as coisas, mesmo se lhe repugna o efémero ou a insegurança. Acredita mesmo na natureza compassiva do povo português, profundamente compassiva, tendo o cuidado de dizer que “o compassiva aqui não tem nada que ver com caridade e com este amorzinho do próximo, este auxílio, que diminui sempre o outro; esse estado de compaixão relacionado com a caridade é sempre um estado de desigualdade entre duas pessoas; há sempre um que protege e outro que é protegido”; “a compaixao não tem nada que ver com a simples imagem do necessitado. És necessitado, portanto estás abaixo da minha condição - eu sou um protector” (Portela: 25). Compassiva aparece aqui “no sentido de compartilhar o estado de compaixão, será um estado de desgraça ou será um estado de felicidade. Essa é, realmente, a verdadeira natureza do português” ( Ibidem) . Este é um carácter muito raro hoje em todo o mundo, em que não existe esse estado de conivência com a paixão dos outros. O que existe é um programa auxiliar, tudo mais conduzido pela Razão. Algo messianicamente, Agustina considera quase que uma criação dos portugueses um estado de compaixão. Mas, finalmente, a compaixão portuguesa tem que ser a compaixão do mundo inteiro: “acho que não é possível organizar essa sociedade à base unicamente de um terror do fomento” (Portela: 34). Rorty e tutti quanti no mundo anglo-saxónico se proclamam ironistas liberais são ainda filhos das Luzes e dos povos que, comenta Agustina, “vivem essa atrofia da sua transcendência”. O diálogo Norte-Sul que, porque reproduz exclui o modelo da relação “necessitado” vs “protector”, é um diálogo da hostilidade: do senhor e o do necessitado: exclui justamente a compaixão. Algo neste ponto nos alerta para a suspeita contra a compaixão, de raízes nietzscheanas claras. De facto, Nietzsche protagoniza o combate à piedade, ou melhor ao cristianismo, como “religião da piedade” ( O Anticristo , 7). Embora a crítica principal vise a versão paulina e eclesiástica do cristianismo: uma religião da ascese e da mortificação. Nesta visão, o cristianismo ombrearia mais com o egoísmo do que com a compaixão: ele promove o cuidado de si e exige do indivíduo as renúncias mais severas para atingir a perfeição. “A substituição moderna da piedade pela rigorosa busca da salvação é o resultado de uma decadência, a mesma decadência que opera a substituição da fé pela moral; ela provém do abatimento da crença em proveito de uma comiseração generalizada e banalizada (6). P. Valadier, que acabei de citar, colhe deste diagnóstico a seguinte conclusão: a crítica da piedade coincide com uma crítica da modernidade. Esta “moral do rebanho” anuncia o regresso de um novo budismo, um budismo europeu - um niilismo ( A Genealogia da moral, Introdução, 5).

Dizia Agustina que o modelo da relação “necessitado” vs “protector é exterior à compaixão. Não assim na visão de Nietzsche: na compaixão aquele que se compadece nem encontra o outro nem sai de si. A piedade tem necessidade da miséria de outrem para existir. A piedade nega a alteridade e o conhecimento de si próprio, rebaixando aquele que dá; a compaixão não abre a outrem como tal: ela apenas a si mesma se encontra e ao seu medo do sofrimento. Zaratustra dirá algo de terrível: foi a compaixão que fez perder a Deus a sua qualidade divina rebaixando-o ao nível de uma comiseração humana. Confundindo-se com um sentimento humano, Deus morre. Só o fraco é compassivo. “Forte” é aquele que enfrenta o abismo insondável que constitui o sofrimento, aprendendo a transportá-lo de maneira criativa, a olhar a morte com os olhos abertos. Não se encontra Agustina, apesar de tudo, naquilo a que Nietzsche chamou o pathos da distância? A sua recusa da ideia de perfeição e de proximidade de Deus não decorrem dessa tópica?

A atitude psicanalítica diante da ética não arranca da compaixão no sentido de simpatia ou caritas, porque esta vem contaminada pela estrutura da violência do desejo (o “imaginário”, no vocabulário lacaniano). A atitude a adoptar consiste em afastar a tentação de se identificar com o outro e a efectuar um percurso em que aprendemos a ver-nos a nós mesmos e a outrem como inevitavelmente provisórios e fragmentados. O único amor possível no mundo psicanalítico é a transferência (7). F. Varela tematizou, a partir do ensinamento da psicanálise e das tradições budistas aquilo que é a verdadeira disposição para a prática da compaixão ( karuna, em sânscrito) incondicional como esvaziamento de si, descentramento, generosidade suprema, “coração desperto”, solicitude (8).

Que seria uma compaixão universal, descentrada, receptiva? É claro que tal compaixão não se impõe través de regras e de injunções morais. Uma compaixão sem amor é, finalmente uma moral social. As práticas adoptadas unicamente com a finalidade de se amelhorar apenas encorajam o egoísmo. E que é o amor? Na entrevista a F. Viegas, a nossa autora dirá: “Não acredito no amor como causa ou efeito. Admito uma determinada afectividade, uma fixação do sentimento amoroso, mas tudo isso é condicionado por um determinado regime emocional. Quanto ao amor para uma vida inteira, acredito nessa relação de paixão que nos faz viver e se comunica a todas as coisas - e que faz com que as coisas tenham uma relação umas com as outras. Todas as coisas têm uma forma de se entenderem entre si...É um fenómeno circular, o amor. E, como construção permanente, é um milagre” ( Ibidem : 13). Mais adiante diz: “Sabemos que (o amor) não é um estado de encantamento, que não é submissão, que não é desejo, e que não é poder ou vontade de poder. Pelo menos, não é apenas isso, de cada vez. É alguma coisa mais que isso, mas esse “algo mais” não o quero valorizar, ou muitas vezes, dizer”.

Dos autores do Nouveau Roman, só Duras tocou o grande público que nela reconhece as palavras que verdadeiramente comovem: fascínio, exclusão, errância, fatalidade, desaparição dos sentimentos, vertigem. O texto mais brutal e mais claro de Duras é A dor (9), em que Marguerite Duras se põe em cena, dirigindo uma sessão de tortura na Libertação de Paris, para forçar um suposto “doador” da Gestapo a vomitar a sua verdade: “Il faut frapper. Il n´y aura jamais de justice dans le monde si on n´est pas soi-même la justice en ce moment-ci (...) Il faut frapper. Ecraser. Faire voler en pièce le mensonge (...) Taper dessus jusqu´à ce qu´il éjacule sa vérité ...(p. 155). Este texto, publicado em 1985 foi apresentado pelo seu autor deste modo: “Apprenez à lire: ce sont des textes sacrés.” P. Thibaud resume assim o percurso da escrita de Duras: “reclamar a impossível reintegração de todo o negativo, opor a toda a alei a imediatidade do sentimento, os “direitos” que dá todo o sofrimento” (10). Veja-se a perturbante profissão-confissão de Duras “Être de gauche” (11). O autor da sua mais recente biografia, Lebelley, recorda uma alucinante declaração de Duras na sua relação com Deus: “Não é só sexual, a homosexualidade, é muito mais que isso. Muito mais terrível. Infernal. Do ponto de vista de Deus, podemos explicar a finalidade de quase tudo. Salvo nisto, aqui não poderemos explicá-la. É exactamente igual à morte. Deus reservou-se esta parcela. Deus decidiu que o inexplicável da sua criação seriam estas duas coisas: a morte e a homosexualidade. E estas histórias nada têm a ver com a psicanálise, senão com Deus”. Esta é uma declaração que ilumina a concepção trágica que Duras tem da existência. Talvez mais concretamente: a figura do homem sem descendência que desloca a paixão do terreno do desejo para o terreno de Deus como exterior à humanidade.

A morte de Deus obsidia Bataille, Beckett e igualmente Duras: “C´est au-delà de l´inconsolable, on ne peut remplacer Dieu” (83). Niilista activa, estética, réplica de um mundo que se transformou num não-mundo, Duras é a grande especialista do negativo, uma profissional do “pathos” ou da sua simulação estrita. O pessimismo radical de Duras - Daniel Sibony falou de depressão - não é um dolorismo, afirma D. Bajomée (12). O sagrado, a justiça, o mal, a fatalidade: eis os cimos em que Agustina e Duras se encontram e de onde as olhamos como emblemas da proferição pítica. Pensaríamos que a mulher deveria ser a figura por excelência da campaixão. “A mulher irradia uma agressão constante”, diz ABL. “A natureza humana é essencialmente má, como meio de defesa contra o meio. O que há a fazer é adquirir meios mentais que possam obstar a esse crescimento da maldade...A maldade desenvolve-se muito melhor nas mulheres, possivelmente”.

“Nos romances de Agustina Bessa-Luís, o amor, tal como a arte, é um acontecimento em que o indivíduo se excede a si próprio, entrando em contacto com uma realidade da comunicação entre os seres à qual a sua actividade de indivíduo precisamente não tem acesso, mas sem a qual não iria até ao seu limite, ao extremo possível”, escreve Silvina R. Lopes (13). Os poderes extraordinários da Sibila provêem da sua capacidade de intuição que a liga à vontade universal. A impossibilidade de definir o amor, ou o facto de apenas se poder dizer aquilo que ele não é. Agustina liga o amor ao sublime, um rapto que desvia para o infinito: “Correndo o perigo de desiludir, direi que este não é um livro de amor...Mas quando alguém se atira ao mar, isso levanta variadas hipóteses. Será isto ainda amor, ou só gosto envergonhado do sublime?” ( a Corte do Norte , p. 274). E. P. Coelho diz-nos que em Agustina não há nunca amor que não seja amor do ódio ou ódio do amor ( art. cit., 38-R). A própria escritora reconhece: “Inseguramente mas não injustamente, a obra que eu ia produzindo foi chamada literatura do ódio” (14). Mas também dirá que “O tema do perdão é o que mais profundamente marca os meus livros” ( ibidem , p. 14). O que quer dizer que os caminhos do ódio conduzem, misteriosamente, escreve M. Luiza Cabral, ao horizonte do perdão (15).

O amor é em Duras “une thêatralité tout à la fois convenue et sincère” (16), banalizado, às vezes, infinitizado, quer dizer “en devenir”, outras. Se o amor físico está ligado ao instante e à fruição, o amor sentimento exige a distância, a duração, a reflexão. Amar é experimentar, dirá Duras. Há um livrinho admirável de Duras que se chama A doença da morte. Ela sabe (de um saber sem prova) que ele transporta em si a doença da morte. Ela não o ama - ela está à sua mercê - como as religiosas. Só a radicalidade do amor salva este do tematizável. O amor aqui é a própria significação, portanto aquilo que procuro e que não pode elucidar e que contude me vem procurar, me transporta. “Perguntas como pode surgir o sentimento de ama. Ela responde-te: Talvez de uma falha súbita na lógica do universo. Diz: Por exemplo de um erro. Diz: Nunca de um querer. Tu perguntas: O sentimento de amar poderia surgir de outras coisas ainda? pedes-lhe que diga. Ela diz: De tudo, de um voo de pássaro nocturno, de um sono, de um sonho de sono, da aproximação da morte, de uma palavra, de um crime, de si, de si próprio, de súbito sem saber como.” (p. 54). A radicalidade do amor (paixão/pulsão/desejo-orgasmo) é que não o atingimos, nunca o designamos ou consignamos. E nisso o amor vai ao encontro do horror, no irepresentável:

“L´histoire est une histoire d´amour immobilisée dans la culminance de la passion. Autour d´elle, une autre histoire, celle de l´horreur - famine et lêpre mêlées dans l´humidité pestilentielle de la mousson - immobilisée, elle aussi dans un paroxysme quotidien” (India Song, Resumo, I 7-148).

Luisa Cabral observou com muita agudeza que o universo romanesco de ABL não é um universo solar, apontando aqui a ali resquícios de um gnosticismo larvar (17). Os “felizes não conhecem o sol” (SF, 38). Mesmo a passagem luminosa de Deus é sempre discreta: “às vezes Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes” (18). “É de forma oblíqua que, de um modo geral, se fala de Deus nos romances de ABL. Se há textos mais explícitos, a sua simbólica bíblica e mística coloca Deus como sem morada e descobre a salvação no segredo e nas trevas:

Só uma vez o ouvira falar de Deus que se esconde e da salvação que se executa em segredo. Era um tema que abordava o terrível espaço em que a devastação do mundo estava como que aprisionada (...)Havia épocas na terra em que esse ponto era devassado pelo temor; as trevas eram trespassadas pelo temor dos homens, lá onde Deus se oculta (19).

O mundo de Duras é de devastação, de fim de mundo: “Je pense que c´est la fin du monde, oui, je pense qu´ India Song est aussi un film sur la fin du monde. Je pense qu´on est là dans la fin du monde” ( Lieux, p. 77). Tudo é cenário de fim de mundo: praia e cidades incendiadas de S. Thala, Calcutá invadida pela fome e a lepra, Nevers rasgada pelo absurdo duma guerra, Hiroshima angustiada pelo apocalipse atómico e o rectângulo branco do campo de concentração de Aurélia Steiner. Yann Andréa conta, em M.D., que Duras se punha a chorar ao ver na televisão as informações do mundo. “Elle vit parce qu´elle pleure”, Rome, p. 8). O desabar das velhas esperanças - e antes de mais o marxismo (20) - não permite senão o desespero: “C´est-à-dire que non seulement je désespère de la société, mais je désespère de la révolution” ( Parleuses , p. 183). Este mundo concentra-se em volta de uma palavra: détruire . Do título Détruire, dit-elle , passando pelas mutilações infligidas à escrita e pelo sofrimento que atanaza os corpos, Duras permanentemente nos mostra o niilismo que preside à sua marcha: “Je créais la destruction”, diz oximoricamente ( Out , p. 283). A esta teogonia preside um deus mau, cruel, ensanguentado. Um deus do Mal que nos abandonou na desgraça. Esta obra de amor vem marcada pela pulsão de destruição em que tudo aí está arruinado, marcado pela enigmática doença da morte: “J´ai un visage détruit” ( Amant, p. 10). A obra de Agustina não permitirá nunca esse momento de oscilação entre a biografia romanceada e a vida exposta: C´est tout - a cabou, dirá Duras já perto do fim. Fica um texto que tem a forma de grito(“J´ai voulu vous dire/que je vous aimais./Le crier./C´est tout.”).

Ao contrário de Agustina, Duras não é crente: “je n´ai jamais été croyante, même enfant. J´ai toujours vu les croyants comme atteints d´une infirmité d´esprit. Plus grande, j´ai lu Spinoza, pascal, Rusysbroeck. J´ai vu la foi des mystiques comme un déespoir du non-croire...Ils poussent les cris du non-croire” ( Parleuses , p. 239). Mas há em Duras traços que indicam a sua proximidade com a mística que, como se sabe, não quer provar mas experimentar Deus, e que é, dizia de Certeau, fundamentalmente “uma prática da língua”. Essas traços podem ser da ordem da impulsão lírica do discurso, da linguagem nua de uma expressividade singular, do esvaziamento de palavras numa sublimidade de tom que anuncia o mistério sem o desvendar. Bastem alguns exemplos:

- “je t´aime plus loin que toi”, Night , 113;

- “être pareil à ce dont nous ne savons rien”, Night, 12;

- “je vois sans voir”, Night, 73;

- “elle n´entend que l´inaudible”, Gange , 125;

- “elle m´est inconnaissable, donc proche , Lol, 167; etc.

Mas Duras recusa a univocidade de um dizer que apontasse Deus como absoluto sobre o qual o desejo infinito se pudesse fixar, e para sempre. No sistema da obra, Deus é uma ilusão alienante e transfigurante, do mesmo modo que a paixão de amor: “objet du désir absolu, ellle est á qui veut d´elle”, Amour , p. 50). Amor finito e amor infinito, numa troca constante do ser ao Ser, do ser ao não-ser, sem paragem, sem primazia (21). Traços que, afinal são comuns às duas escritoras.

 
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(1) Diário Popular, 1987: “Agustina prevê o fim da culpa e da compaixão. A mudança do século. Conferência na Fundação séc. XXI”. 27/7, p. 6.

(2) Intervenção de Agustina em Frankfurt. Ver F. Venâncio, “A tribuna”, in JL nº 706, p. 20.

(3) Agustina Bessa-Luís´, “Uma flor discreta”, in Público 20.01.98.

(4) “À conversa com Mário Cláudio. A desordem dos afectos” in JL nº711, 1998, p. 9.

(5) “A bondade e a maldade”. Entrevista a F. J. Viegas. In Ler (12), Outono, p. 13.

(6) Paul Valadier, “La pitié, religion moderne”, La vie spirituelle , 699, março-abril, 1992, p. 218.

(7) Jonathan lear, Love and its Place in Nature , Farrar Strauss, New York , 1990.

(8) Francisco Varela, Quel savoir pour l´éthique? , éditions de la découverte, 1996, p. 115.

(9) Editions POL, 1985.

(10) Paul Thibaud, “Marguerite Duras: les ambiguités de la compassion”, in Esprit 7, julho 1986, p. 77.

(11) L´autre journal , nº 8, octobre 1985.

(12) Opus cit., p. 183.

(13) Silvina Rodrigues Lopes, Agustina Bessa-Luís. As Hipóteses do Romance , Asa, 1992, p. 59.

(14) Os Incuráveis. Revelação e Criação , Lisboa, Guimaraes Editores, 1984, p. 14.

(15) op. cit., p. 54.

(16) L´Amant , p. 62.

(17) Maria Luiza S. Cabral, Manter a distância: A dimensão religiosa na obra de Agustina Bessa-Luís, tese de Mestrado apresentada à UNL, Lisboa, 1993, p. 120.

(18) Os Meninos de Ouro, p. 279.

(19) Um Bicho da Terra, p. 60.

(20) Denunciado nas entrevistas, em Le Camion, em L´Été 80, nos seus artigos de Outside e da Vida material.

(21) Danielle Bajomée, Duras ou la douleur , De Boeck Université, 1989, p. 104.

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