O.CADERNOS DO ISTA, 5
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A responsabilidade mostra-se assim como a constituição da identidade própria, dito de outra maneira, a responsabilidade é a génese e o fundamento, a atitude estruturante, a atitude operativa da constituição da identidade própria; a responsabilidade é a razão de um processo de auto-identificação, mas é de sua própria natureza um dinamismo de referência, para tudo resumir numa palavra, é de natureza dialógica. Não há constituição que não tenha como constituinte, como ingrediente informador, como fundamento ontológico, isto é, que diz respeito ao próprio modo e à qualidade de ser, ao tipo mesmo de ser que se anuncia, que emerge nessa identificação, uma referência ao outro de si, a outrem que não se reduz a um puro espelhamento, a mero eco, a pura repetição de si como já idêntico a si. A responsabilidade é este processo, em que se recapitula toda a identificação que é, numa complementaridade tensional e não diluente, a tríplice posição de responder por, de responder a e de prometer. Tendo insistido no primeiro momento, sublinho agora o segundo: responder a . E não diria imediatamente que respondo a alguém. Respondo fundamentalmente a uma interpelação, a uma situação que me provoca, a uma relação que me convoca e me provoca. Aquilo a que me vejo obrigado a responder é uma solicitação, uma injunção a que esteja presente, que pode derivar de múltiplas origens e revestir inúmeras modalidades – respondo a um apelo, a uma exigência, a uma solicitação e a um apelo que têm uma natureza muito específica, são uma intimação, convidam-me e, ao mesmo tempo, obrigam-me, não me permitem escapar. A responsabilidade, nesta segunda dimensão, implica uma vinculação a isso mesmo que me interpela, me solicita e me intima. Tal como não poderia evitar a presença, sob pena de desagregação e inexistência – quem responderá por mim? – também aparece como inevitável e inescapável esta intimação a estar presente. Nenhuma neutralidade é viável, nenhum lavar de mãos é possível, nenhum evitar os termos da alternativa e transferir para outra instância esta vinculação. Aqui qualquer neutralidade é impossível, porque qualquer pretensa neutralidade, qualquer pretensa abstenção, revela ainda e sempre uma tomada de posição. " Responder a " significa neste contexto " intervir ". Responder quer, por conseguinte , dizer " tomar posição ". A tomada de posição traduz-se em conferir sentido a uma determinada situação. A resposta consiste em organizar, em incluir numa unidade de sentido aquilo que é puramente dispersão, aquilo que é fragmentário, que é avulso, numa determinada ordem que é uma ordem de finalidade, forma de objectivar uma particular intenção. Tomar posição é responder, é ocupar ujm lugar e também tomar a palavra, porque a palavra é, talvez, a forma mais primitiva de intervir na realidade, de intervir numa situação e de lhe dar uma significação, uma orientação em função de um projecto de ser. Por isso, tomar a palavra não é nunca neutral, dizer não é uma operação ela mesma neutra. O dizer é a forma originária da respondsabilidade, é já expressão, exigência, veículo e cumprimento da presença, exercício e forma de identificação. Intervir, responder a, realizar o sentido, cumprir uma exigência que me está proposta, surge, não como forma exterior, mas como constituição mesma da minha identidade, que implica assim tomar a seu cargo, responder não apenas por si, mas também por isso que me interpela, me vincula e me intima, sem a mediação do qual não tenho acesso à minha própria realidade e me perco de mim próprio; significa tal que a responsabilidade aqui é um tomar a seu cargo, ao seu cuidado, isso que me provoca e me convoca. O " responder a " é um exercício de realização, numa palavra, um acto criador. Este ter a seu cargo é uma solicitude, é um intervir com uma força, uma dedicação e uma vontade de que a situação seja favorável, se torne ela mesma um favor. O que significa que tem uma dimensão, ou leva consigo um trabalho de impedir, de limpar aquilo que está diminuído, aquilo que está restringido, aquilo que está perturbando a constituição da mesma identidade. O que está impedindo, distorcendo ou parasitando a referência ao outro, a outrem, no diálogo que me possibilita responder por mim e não apenas por mim, tem de ser corrigido; o cuidar é a expressão mais adequada e alargada dessa forma de não ficar prisioneiro de si próprio. Em articulação com um aspecto já aludido anteriormente que convertia a tomada de posição em exercício da responsabilidade, e em que esta surgia como um dizer cuja forma mais acabada e mais radical é a promessa, irrompe agora uma outra dimensão inerente a toda a acção, a consideração do tempo que lhe é próprio. Referi-me atrás a processo, agora teria de falar de história. A resposta, esse responder por mim e não só por mim, instala-se num eixo temporal, é uma aventura, um ir ao encontro do que vem ao nosso encontro.Isto faz com que o exercício da responsabilidade leve em si uma referência ao tempo, não como um quadro exterior onde acontecem coisas e decorrem acções, mas como um constituinte essencial do próprio exercício. Explicitaria apenas três dimensões deste tempo que é o modo como nos identificamos e o modo como respondemos por nós e pelo outro de nós. Socorrer-me-ei da linguagem bíblica para caracterzá-las de uma maneira muito breve. A primeira é a dimensão do hapax, daquilo que acontece de uma vez por todas, o tempo daquilo que é tão decisivo que é irrepetível, que marca para sempre, pela sua própria força; isto que acontece de uma vez para sempre, de uma vez por todas, não tem de ser um acontecimento estrondoso, não tem de ser algo totalmente alheio à habitualidade da vida, estranho ao quotidiano: há uma troca de olhares, há o encontro incidental, há a palavra simples proferida que, se não for pronunciada nunca mais se dirá. Esta seriedade da unicidade do encontro, este carácter irrepetível e insubstituível, é o tempo mesmo da identificação, o momento único, o instante criador do contacto de homem a homem, do contacto do homem consigo mesmo. A segunda dimensão temporal do exercício da responsabilidade, desse processo de autoconstituição, de auto-identificação em referência essencial a outrem, que faria intervir é simultaneamente grega e bíblica; trata-se da dimensão do kairós, do tempo oportuno, do tempo propício, do tempo favorável. Não há um exercício da responsabilidade intemporal e fora desta propiciação. Há uma oportunidade que é essencial à resposta. A presença é presença nesse momento e a ausência é a perda do tempo próprio. Lendo o Pe. António Vieira,a propósito do centenário ocorrido, não resisto a citar uma passagem esplendorosa sobre a atenção ao tempo, a atenção ao momento, como exercício da responsabilidade. Vieira refere a experiência do tempo no plano político, do exercício desta responsabilidade por quem tem o serviço do poder e diz:
Esta diatribe contra o adiamento, contra a ausência do sentido da oportunidade, da falta de respeito pela ocasião propícia e pela premência dos tempos tem um alcance muito mais amplo do que uma simples chamada de atenção política. Idêntica denúncia deve ser extensiva à própria gestão da vida, é a vida que exige essa atenção ao momento, esta solicitude pela oportunidade. Uma terceira modalidade da intervenção do tempo na posição responsável é a presença ao futuro sob a forma da promessa. A promessa que projecta a dinâmica de identificação que leva em si a referência essencial e fundamentadora ao outro, afirma simplesmente: contem comigo aí onde o futuro vem, e dilata o presente, abre o presente em nome do futuro, o que significa viabilizar o possível, enriquecer o processo de identificação e sustentar a viabilidade do outro. Será este sentido da viabilização do possível, a garantia de que os outros podem continuar a ser, que rompe definitivamente com a acepção retrospectiva da responsabilidade. Temos hoje bem viva a consciência de que há decisões que condicionam e determinam de uma forma negativa e irremediável o futuro de todos, o que desloca a atenção e o cuidar para que o futuro não seja um futuro afunilado, para que o futuro seja futuro e não uma rasoira das possibilidades efectivas de ser, antes um incremento e intensificação desse mesmo possível. Por isso se fala hoje com adesão crescente do " princípio responsabilidade " ( Hans Jonas ). Cuidar do futuro viabilizando o possível obriga a coibir-nos, a vigiar para que não se tomem no presente posições, não se profiram palavras, não se use os tempos de uma forma que definitivamente o empobreça. A compaixão inscreve-se directamente neste cuidar, como sua expressão mais funda e mais íntegra; nela convergem as diferentes dimensões que compõem a responsabilidade segundo o reposicionamento que temos vindo a esboçar. A compaixão constitui a forma suprema da identificação: é-se mais si mesmo na exacta medida em que cresce a capacidade de nos identificarmos com a verdade dos outros; representa igualmente a forma suprema da responsabilidade, no abraço fraterno que rompe fronteiras. Contra a perspectiva liberal, por ora hegemónica e avassaladora, a minha liberdade, a reivindicação da autoria de si por si, não termina onde começa a liberdade do outro; a liberdade só é real na linha do encontro e não da demarcação. Cum-patire, aceitar ser paciente e sofredor, ao lado do outro que sofre, é o limite superior da responsabilidade. De todo o outro? E sem curar de eliminar o que faz sofrer? Com-padecido sobretudo daquele que é frágil e vulnerável, daquele que é vítima, daquele que está ameaçado de não ter futuro e para o qual o possível se detém à sua beira. A compaixão assegura, garante que esse tem um futuro e que há para ele um poder ser, porque estamos aí com ele, respondendo por ele. Manuel J. do Carmo Ferreira |
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