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CADERNOS DO ISTA (5) |
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Fragmentos de um debate | ||
Introdução Os benefícios recebidos dos avanços científicos e das novas tecnologias são evidentes. A religião do progresso - com etapas marcadas para o advento do reino da ciência, da sabedoria e da felicidade - está desacreditada. As grandes filosofias da história que navegaram nesse optimismo e alimentaram essa esperança acabam de enterrar o seu último rei absoluto, Pol Pot. Por seu lado, a “paz americana” já provou em Hiroshima, Nagasáqui e Vietname até onde é capaz de ir quando lhe parecer que os seus interesses correm perigo. As novas tecnologias possibilitam uma eficácia até agora desconhecida para a sua política de dominação. Desenham-se, para os próximos anos, duas dinâmicas contrárias determinantes para o futuro do planeta. Por um lado, as grandes firmas mundializadas, movidas por exclusivas preocupações financeiras, irão continuar a servir-se da tecnociência num espírito de puro lucro. Sem olhar a mais nada. A relação com povos e pessoas continuará a ser puramente instrumental. Por outro, há bastantes sinais de uma aspiração à responsabilidade pelo passado, pelo presente e pelo futuro das novas gerações. Implica uma concepção do desenvolvimento que tenha em conta o sentido da equidade, do respeito pelo ambiente - vital para toda a humanidade -, com um alerta permanente sobre os riscos da manipulação genética. Segundo François Jacob, Prémio Nobel da Medicina, os biólogos, mais do que os físicos, têm-se revelado conscientes dos perigos da sua imensa ignorância. Basta lembrar os desastres no campo da energia atómica. A defesa da “ciência com consciência”, a multiplicação de comités de ética e de códigos deontológicos em quase todos os ramos de actividade - depois do abalo de todos fundamentos e a crise de todos os valores - estão a exigir cintos de segurança para tudo. Viver é perigoso. Esta situação não é fruto do puro acaso. O mal-estar na civilização nasceu do mundo que criámos cheio de esplendor e miséria. Mas a denúncia simplista dos efeitos perniciosos da tecnociência só ajuda a retórica. Não desperta a dimensão ética inerente a toda a dimensão humana. Como se costuma dizer, moral a mais torna a moral odiosa. Monique Canto-Sperber, responsável pelo volumoso “Dictionaire d'Etique et de Philosophie Morale” (PUF), dirige a colecção Philosophie Morale (PUF). Acaba de organizar um abundante dossier sobre “as novas morais” (Cf. “Les nouvelles morales”, “Magazine Littéraire”, n. 361, Janv. 1988). Verifica que, depois de muitos anos de críticas e suspeitas, a reflexão ética está a renascer em França, com grande liberdade em relação às linhas que dividem o mundo dos filósofos. As violentas suspeitas de Nietzsche contra a reflexão normativa tiveram um grande eco em M. Foucault, G. Deleuze e J. Derrida. Na sua opinião, certo tipo de críticas desencorajaram e arruinaram a filosofia moral nesse país, durante decénios. Tornou-se moda, noutros meios, sublinhar a impotência deste género de reflexão. A própria ideia de uma teoria ética capaz de unificar o conjunto da experiência moral parece pretensiosa. Mas o dossier não sublinha apenas uma lacuna. Interessa-lhe, antes de mais, revelar aos franceses o extraordinário desenvolvimento da investigação no campo da ética no resto do mundo, em particular na Inglaterra, na Alemanha e, sobretudo, nos Estados Unidos. Apresenta alguns dos livros que nesses países influenciaram as diferentes correntes, publica artigos dos grandes nomes ou faz-lhes entrevistas substanciais. A riqueza deste dossier mostra que a reflexão moral ou ética, de orientações muito diversas, não merece o desdém que os ignorantes ou pretensiosos lhe consagram. 1. Que ética ? Do dever ou do prazer ? A temática de todo este caderno está subordinada a uma estranha interrogação : “Elogio das Virtudes ?” O subtítulo - “Da responsabilidade à compaixão” - anuncia um percurso que não se destina a canonizar figuras, modelos ou padrões da chamada moral tradicional, princípio conservador das grandes colectividades e instrumento disciplinador dos seus membros, como lhe chamou Nietzsche. De facto, a moral tradicional, depois de todos os desconstrutivismos a que foi submetida, já não assusta muita gente. E parecem ineficazes os reflexos e apelos restauracionistas no espaço do pluralismo respeitoso e respeitador em que vivem as sociedades democráticas. Preocupante é o imenso vazio revelado na obsessiva invocação da ética e das suas comissões. Vazio que continua a ser mal preenchido por fragmentos, estilhaços de uma memória que servem apenas para dizer a que ponto estamos nus e envergonhados diante dos crimes monstruosos cometidos neste século de magníficas descobertas científicas e requintes tecnológicos. estilhaços de que se alimenta a chamada “ética dos mínimos”, a ética cívica, a ética de todos os cidadãos, repescada nos direitos humanos. Neles tenta recuperar alguns valores absolutos, universais, e transmiti-los às novas gerações (Cf. Adela Cortina, “Ética Civil e Religião”, Paulinas, S. Paulo, 1996). Em concreto, não há nenhuma proposta ética que não esteja, de uma ou outra forma, inserida numa tradição ou que, pelo menos, não procure interlocutores na história. A tradição kantiana - ética do dever e que entende a virtude como a conformidade do querer com o dever - continua uma referência incontornável. A proposta ética da razão comunicacional (Apel-Habermas) e a teoria da justiça de Rawls testemunham a sua influência, embora os seus impasses sejam cada vez mais sublinhados. A tradição aristotélica - ética da felicidade, da virtude e da alegria - retomou algum do seu prestígio, mesmo para aqueles que lhe não atribuem qualquer função redentora da situação actual. O papel omnipresente da sua concepção de prudência - virtude da recta decisão humana - é particularmente valorizada. Energia de unificação da teoria e da prática, do subjectivo e do objectivo, do essencial e das circunstâncias, é o contrário da indecisão dos medrosos. O enraizamento da prática da decisão num saber bem informado e consciente dos seus limites também não é o atributo dos chamados tontos com iniciativa. O sentido da boa medida - comum a todas as virtudes - é especialmente importante nesta virtude-charneira da decisão lúcida, do risco calculado (Cf. Aubenque, “La Prudence en Aristote, Paris, 1986). Segundo o célebre helenista A.-J. Festugière, nas mais autênticas tradições gregas, o bem agir é a condição necessária da euforia, mas a euforia é, por sua vez, a companheira inseparável da actividade virtuosa. A norma para o grego não é “tu deves”, mas “tu podes”. O importante é saber e querer desenvolver capacidades. Em Aristóteles, a função das virtudes consiste em tornar possível a realização da felicidade humana mediante um agir mais fácil e deleitável. Pela aquisição da virtude, o sujeito é predisposto e inclinado a realizar, livremente e com gosto, o bem que lhe convém enquanto pessoa humana. Ficou de Aristóteles o célebre adágio : a virtude torna bom quem a tem e boa a sua obra. É o desejo penetrado pela recta razão do agir, desejo deliberado. Assumir a busca da felicidade e do prazer de viver, de forma cada vez mais humanizada, parece ser o projecto da ética aristotélica. Nela são as virtudes que tornam possíveis e agradáveis os actos humanos e o prazer é fruto da perfeição do acto. A divisa desta antropologia poderia ser : “Diz-me quais são os teus prazeres e eu te direi quem és” (Cf. A. Plé, “Par devoir ou par plaisir ?”, Cerf, 1980, p. 41). Não digo que os prazeres da virtude estejam de volta ou que vão ser a próxima moda. No entanto, o grande sucesso de André Comte-Sponville (Cf. “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, Presença, 1995) - para quem o ateísmo é um dever e ser virtuoso, desesperadamente virtuoso, é fazer deseperadamente o bem sem esperança de recompensa - não é o único sinal de que algo está a acontecer em vários quadrantes. Que essa preocupação agite de novo a teologia! Na Idade Média, Tomás de Aquino tentou fazer perceber o alcance da concepção aristotélica da virtude para o entendimento da preparação e originalidade do cristianismo a partir da cultura do próprio psiquismo humano. Deste e através dele brotava uma nova fonte de espontaneidade, de leveza, de agilidade e alegria ao dispor a razão e a afectividade para o agir cristão, sobretudo para o que nele há de mais exigente e radical (Cf. Otto H. Pesch, “A teologia da virtude e as virtudes teologais”, in “Concilium”, 211, pp. 92-112). Quando se encara a ética católica a partir do dever, da norma, do preceito, ela fica sem graça nenhuma e desgraça a natureza humana feita para o abraço do céu e da terra. 2. Convergência numa ética comum : os direitos do homem “Haver injustiça é como haver morte. / Eu nunca daria um passo para alterar / Aquilo a que chamam injustiça do mundo. / Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda / E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.” A ronha destes versos de F. Pessoa, o fingidor, é uma peça essencial para o debate em torno da fundamentação da ética, isto é, da experiência intrínseca - do sentido que insiste e persiste em proposições como esta : “Auschwitz, nunca mais !” Os pós-modernos consideram infrutíferas e obsoletas todas as tentativas de fundamentar a ética. Além de ser impossível, foi o empenho da superada modernidade. Os cientistas continuam a pensar que a ética - ao contrário da ciência, que é racional e intersubjectiva - vem sempre marcada de subjectividade. No sentido forte da palavra, também o movimento comunitário americano procura não fundamentar a ética. Visa apenas reconstruir a sua racionalidade, afirmando, face aos liberais, que é impossível levar a cabo essa tarefa sem partir de comunidades concretas em que os indivíduos estão enraizados. O chamado “liberalismo político” considera que a fundamentação não só é impossível como nem sequer é necessária, embora não se prive um tipo de justificação racional dos valores das sociedades de democracia liberal. Os seguidores do filósofo espanhol X. Zubiri pensam que se pode fundar a moral na realidade da pessoa e na universal tendência para a felicidade. A ética dialógica ou discursiva alemã oferece uma minuciosa fundamentação racional da moral nas acções comunicativas e no facto da argumentação. Adela Cortina tentou uma fundamentação racional da moral, articulando de forma complementar as duas últimas tendências. Sustenta que podemos argumentar acerca de tudo e chegar a acordos que nos permitem, juntos, construir o mundo (Cf. “Ética Civil e Religião”, Paulinas, 1995, p. 47). Para esta filosofia, a ética civil - que outro, com alguns matizes, chamam “laica” ou “secular” - é, em princípio, a ética dos cidadãos, ou seja, a moral que os membros de uma sociedade pluralista tem de incarnar para que a convivência pacífica, agradável, seja possível, dentro do respeito e da tolerância para com as diversas concepções do mundo. O seu fundamento e conteúdo essencial são os direitos do Homem : direitos individuais, direitos económicos e direitos sociais, ainda que hierarquizados de forma diferente, segundo a diversidade dos povos. Encontram-se neles as disposições mínimas para viver no horizonte de uma só família humana com passado, presente e futuro. Somos, por isso, corresponsáveis pela memória humana, pela solidariedade mundial, pelas condições de vida em relação às novas gerações. A ética do futuro não pode ser deixada para as calendas gregas. Pelo contrário. Trata-se da ética do aqui e agora, para que mais tarde haja um aqui e agora (Cf. Gerome Bindé, PÚBLICO 20/10/97, p. 18). Se não agirmos a tempo, as gerações futuras não terão sequer tempo de agir, como nos lembra F. Maior. Esta responsabilidade deriva da experiência ética fundamental, condensada no princípio mais geral do agir : “Deve-se fazer o bem e evitar o mal.” Independentemente da convicção de que Deus existe ou não e da razão teórica reencontrar nessa experiência todos os seus critérios, é no âmbito dessa experiência que o reconhecimento dos direitos humanos , fruto de várias tradições, surge como uma base sólida, aberta a fundações plurais da democracia. Lucien Sève observa que a universalização ética não é, de modo nenhum, a uniformização das sabedorias concretas étnicas, religiosas ou filosóficas - mas a partilha dos valores últimos e de obrigações em relação à nossa humanidade comum. Pode haver muitas abordagens diferentes dos direitos do homem. O importante é respeitá-los por toda a parte e da mesma maneira. A universalidade não exige mais do que isso (Cf. “Para uma Crítica da Razão Bioética”, Ed. Piaget, 1997, p. 93). Pode estranhar-se que em termos de bioética, de ética económica, de internética ou ética “on-line”, de ética do futuro, os produtos dos comités de tais designações sejam tão modestos. Tendo, porém, em conta as descobertas científicas e os avanços tecnológicos mercantilizado, configuradores da nossa civilização feita de substituições cada vez mais rápidas, já não é mau que existam grupos de investigação e diálogo situados no coração das mudanças, para que, de forma contínua, as possam reavaliar do ponto de vista ético. Para as religiões - pelo menos para as monoteístas - mais acostumadas a informar do que se deve fazer do que a dialogar sobre o que se deve fazer, esta situação é um desafio evidente e uma grande oportunidade. Num mundo cada vez mais plural, é no aprofundamento da originalidade de cada uma das nossas tradições que podemos sentir a conivência profunda com o que há de mais criativo, vivo e singular na cultura dos outros. Sem confundir religião com ética, existem entre elas profundas afinidades. Para reconfigurar uma ética cívica comum para o nosso tempo, as éticas laicas e as religiosas precisam de se interpelar mutuamente sem moleza, mas cultivando as virtudes da tolerância, do diálogo, da magnanimidade e da modéstia. Bento Domingues
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