A DOUTRINA POLÍTICA
DE TOMÁS DE AQUINO
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (fim)
(UNL-DCC)

ISTA - AQUINATA

 

Koinonia vs pleonexia

O pensamento político medieval foi sendo comentado e recebido das formas mais diversas. Tomás dá um sentido pleno ao projecto de justiça, de ética política e económica tentado por Aristóteles, a alguma distância do idealismo platónico que distribui muito desigualmente as quatro virtudes cardeais; se dá relevo à justiça (20), já a temperança é recomendada aos trabalhadores, a força compete aos defensores da cidade e a prudência é o apanágio dos chefes filósofos (21). Tomás retoma o essencial da ética aristotélica, acentuando-lhe os contornos realistas e acrescentando-lhe uma maior exigência na firmeza do princípios e uma maior fineza na sua aplicação. Esta agudeza e sensibilidade advém-lhe, sem dúvida, do sopro dos profetas e do Evangelho. Tomás dá grande ênfase ao que poderíamos chamar de justiça política e que ele denomina a justiça legal. Ela visa ao bem comum, ditando que este exige bem e orientando para ele o conjunto das actividades do cidadão. Jovem ainda, junto de Alberto Magno em Colónia, comenta a Ética a Nicómaco de Aristóteles, e aí encontra essa exaltação da actividade política, que visa "ao bem comum que é diviníssimo" (22). A ideia de que "O bem comum é o mais excelente, é o mais divino" dentre os bens propriamente humanos está presente desde o Escrito sobre as Sentenças. Acima da justiça só as virtudes teologais. Entre as formas de justiça emerge a justiça política que se assemelha tanto à providência divina que o seu objecto é qualificado de "o mais divino". Seguindo e aprofundando Aristóteles, ele aborda a justiça como virtude e como valor social, pois é princípio de rectidão para os indivíduos, e para as relações e para as instituições da sociedade. Desdobra as normas dessa rectidão no interior do duplo critério conexo da "igualdade" e da "legalidade". Insiste sobre o carácter objectivo da justiça, que estabelece para a prática de cada um e para o quadro legal da cidade normas de rectidão efectiva, fundadas na realidade das coisas, das mercadorias, dos preços, das acções, dos intercâmbios e dos contratos. Ao apresentar e analisar a justiça como o princípio de igualdade nas acções, relações e instituições, o Filósofo denuncia o grande inimigo dessa justa igualdade sob o nome de pleonexia , o vício, como indica a etimologia, que leva a querer "ter sempre mais", e que o Novo Testamento traduz por "avareza" ou "ambição" (23). É uma espécie de libido social, nota, Carlos Josaphat, "que degenera em princípio de corrupção, tendendo a concentrar riquezas e poder em detrimento da virtude pessoal e do valor social da igualdade" (24). Tomás de Aquino trata da Justiça na Suma em mais de sessenta questões (q. 57-122 da II-II). A pleonexia é a anti-koinonia . Aristóteles emprega o termo koinonia para falar da amizade. Paulo, ao referir-se à união divina a que somos chamados (1 Cor 1,9) emprega também o vocábulo koinonia que o latim traduz pelo termo genérico societas. Tomás reúne o Filósofo e o Apóstolo, reconhecendo que o Novo testamento e o Filósofo visam à mesma realidade: a "comunhão" (25). Deve-se ao Doutor Angélico a definição objectiva da noção e das espécies de direito naquilo a que se chamará o "Estado de direito": direito "é aquilo que é justo", que é "conveniente e devido", que é "conforme à natureza das coisas", "ordenado pela lei", "decorrente de um contrato ou convenção" ou de "uma acção efectuada na devida situação" (26). A origem do Estado encontra-a o Doutor cvomum na própria natureza do homem, definido como animal social e político, ordenado a viver em sociedade. E é porque vive em sociedade que o homem necessita de um princípio de governo ( De Reg. Princip ., I, 1). O Angélico combina admiravelmente a dedução ético-psicológica do poder social, aristotélica no seu fundo, embora corroborada e metafisicamente assente no pensamento platónico de que a unidade precede a variedade, com a concepção teológica do poder social, deduzida da Escritura, segunda a qual todo o poder, quer espiritual quer temporal vem de Deus. Para S. Tomás a necessidade do Estado não procede do pecado original, que existiriam mesmo que o pecado original não tivesse existido ( dominium politicum ). O que decorre da condição social da natureza humana - mesmo em estado de inocência os homens viveriam mutuamente relacionados. Uma sociedade de indivíduos com relações mútuas, sem uma autoridade que vele pelo bem comum, não pode subsistir. Toda a direcção da natureza procede de uma unidade. Daí a justificação da monarquia. Esse seria o regime mais conforme com o estado da natureza. Mas S. Tomás, para evitar que a monarquia caia na tirania, aconselha uma constituição - ou forma de governo monárquico - moderada, no sentido de que com essa forma tenham também a sua representação no governo o elemento aristocrático e o democrático (27). Governar é o mesmo que conduzir uma coisa ao fim devido, da maneira mais conveniente. O fim do Estado consiste, pois, em conduzir e ordenar os cidadãos para uma vida feliz e virtuosa. Assegurar a paz e a justiça, essa é a função do que governa. Os "príncipes" são os primeiros a estar sujeitos à prática e à salvaguarda desse direito, de si inviolável e inalienável: "estão obrigados a tudo restituir como ladrões que são. Aliás, pecam tanto mais gravemente que os ladrões, quanto suas malversações vão de maneira mais universal e mais danosa contra a justiça de que são os guardas constituídos" (28).

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O bem comum e a guerra

Uma precaução intelectual se impõe: não podemos identificar sem mais a doutrina de Tomás de Aquino com as teorias contemporâneas da democracia, nem podemos ignorar o contexto histórico em que se elabora a sua obra. Não podemos atribuir ao De Regno um conteúdo "regalista" no sentido em que o entendem, por exemplo, os monarquistas de hoje. A realeza para Tomás é um regime; concerne a estrutura da sociedade inteira: o facto de saber quem deterá o executivo no Estado é só um dos aspectos do problema. O santo Doutor insurge-se contra a tese que faz do rei um monarca absoluto de direito divino. O rei, como ele o entende, pode ser um rei propriamente dito, ou um príncipe ou um presidente, tanto mais que o problema da hereditariedade ou da eleição não interessa à sua definição. Mais, escreve E. Gilson, quando Tomás diz que a monarquia é o melhor regime político deve entender-se "que o melhor dos regimes políticos é aquele que submete o corpo social ao governo dum só, mas não que o regime melhor seja o governo do estado por um só" (29). Como Agostinho e vários outros Padres da Igreja, Mestre Tomás recusa o comunismo utópico de Platão. Posto em prática, esse sistema levaria à imposição obrigatória e universal da colectivização dos bens. Tomás segue o realismo da ética económica de Aristóteles, ao mesmo tempo que guarda uma certa ligação com o ideal platónico e sobretudo com o sentido de justiça que herdou dos profetas e do Evangelho. Vejamos o espinhoso problema da propriedade. O essencial da doutrina remonta a Agostinho, nos seus escritos antidonatistas, doutrina que vem já codificada no Decreto de Graciano. A propriedade é estudada quando Tomás comenta a Política de Aristóteles. A doutrina será sintetizada nos dois primeiros artigos da questão 66 da II-II da Suma Teológica . É preciso justificar o decálogo: "Não furtarás". Tomás aborda o direito de propriedade sob o aspecto propriamente ético, inscrevendo-o neste triângulo: as coisas, especialmente a terra, a pessoa e a sociedade. A propriedade tem sempre uma dimensão pessoal e social: "Non est autem recta voluntas alicuius hominis volentis aliquod bonum particulare, nisi referat illud in bonum commune sicut in finem: quod etiam naturalis appetitus cuiuslibet partis ordinetur in bonum commune totius" (30). No topo, o argumento: tudo é de todos: as coisas são para as pessoas. A todos a e a cada ser humano a utilização racional das coisas para o proveito de todos. Dois princípios normativos de base presidem a esta posição: a) princípio de universalidade; b) princípio segundo o qual todo o necessário deve ser assegurado a todos. Nenhuma prática ou lei e nenhum sistema podem legitimar a exclusão de quem quer que seja do que é necessário à plena realização da sua vida humana. Podíamos falar mesmo de um princípio de reserva (ecológica). O ser humano não é senhor absoluto da "natureza das coisas", não as pode destruir e modificar, como se fosse o "autor delas", mas utilizá-las para a sua utilidade, respeitando a "natureza das coisas", sobretudo dos seres vivos e a sua sobrevivência. Exclui-se liminarmente o direito de usar e abusar, a seu talante, da criação, arruinando-a e rompendo-lhe o equilíbrio.

Herdeiro das tradições judeo-cristãs e estóicas, Agostinho dá uma justificação moral e religiosa para o direito de propriedade. O direito de propriedade decorre da lei natural: não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti. Séneca e Cícero ensinam ambos que a propriedade privada releva do direito da sociedade humana, jus societatis humanae ( jus gentium ) e que se regula em cada Estado pelo direito positivo. Esse é exactamente o ensino de Agostinho e de Tomás, que não é nem comunista nem individualista. S. Tomás declara com S. Agostinho que Deus tem sobre o universo domínio principal e absoluto. Ele é o único proprietário das coisas. As criaturas participam do seu poder na medida em que participam da sua inteligência. Os mais inteligentes dominam os menos inteligentes, a matéria ordena-se ao espírito, o menos ao mais. É assim que os animais comem as plantas e os grandes os pequenos. Numa sociedade em que reinasse a justiça, em que se desconhecesse o mal e a cobiça, a questão da propriedade não se colocaria. Tudo seria de todos. Lê-se em Graciano que a propriedade privada não é primitiva (31). A sua instituição é sancionada pela força do costume e da lei. O direito das gentes, em que se esteia o direito de propriedade privada, não é senão, para Graciano ou Rufino, o direito saído da ordem penal. Garantido a todos, o acesso à propriedade particular é a forma mais adequada para promover a proveitosa utilização das coisas para o bem comum. Mas, longe de ser um direito absoluto, a propriedade tira a sua legitimidade do facto de ser em princípio e de realizar de facto a forma apropriada de assegurar o necessário para todos. Tomás não se apoia apenas no utilitarismo de Aristóteles. A propriedade das coisas decorre como uma exigência da dignidade e da autonomia da pessoa. Assegura melhor a prática da virtude. O Mestre tem uma solução ética para o caso da miséria extrema. Pergunta: "será lícito furtar movido pela necessidade? (II-II, 66, art. 7). Após várias objecções, a resposta é esta: no caso de necessidade certa e evidente, não há furto, mas o direito e o dever de tomar o que (antes) era alheio, mas que se torna "comum" e finalmente justa propriedade para o necessitado. Nas palavras do Mestre: "Os bens que alguns possuem em superabundância são devidos, em virtude do direito natural, ao sustento dos pobres" (...) "Servir-se alguém do bem alheio, tomando-o ocultamente, em caso de extrema necessidade, não vem a ser um furto, falando propriamente; a extrema necessidade tornou seu aquilo de que ele se apoderou para sustento de sua própria vida".

Ao lado da doutrina sobre a propriedade, merece igual relevância a doutrina que Tomás evoca a respeito da guerra e da paz. Agostinho admitira que as guerras poderiam ser empreendidas pela vontade de Deus (32), não deixando também de afirmar a prioridade ontológica da paz sobre a guerra e a sua importância como fim último e meta de todas as realizações históricas. Na Suma (II-II, 40, 1) indicam-se e explicam-se as três situações que legitimariam uma guerra: a autoridade do "príncipe", a justa causa e a intenção recta dos beligerantes. Não cabe a um particular promover a guerra nem alistar milícias. Se a coisa pública depende do Estado, é ao Estado que compete proteger os interesses da cidade, da província ou do reino (33). Agostinho escreve no seu Contra Faustum (XXII, 75): "A ordem natural, que quer a paz entre os homens, exige que o poder de fazer a guerra seja reservado á autoridade pública". A guerra deve ser levada por uma causa justa. É necessário que aqueles que combatemos tenham cometido uma injustiça. É necessário igualmente que a intenção dos beligerantes seja recta, que queiram promover um bem ou evitar um mal. Um guerra conduzida por uma autoridade legítima e por um motivo justo torna-se ilícita pela perversidade das intenções daquele que a conduz. Escreve S. Agostinho no Contra Faustum (XXII, 74): "O verdadeiro mal da guerra é a vontade má de prejudicar, a paixão de dominar, o ódio feroz, a furiosa vingança". A originalidade de Tomás consiste no rigor em explicitar as condições da legitimidade da guerra como mal menor. Isso significa que ela é o recurso a uma série de flagelos e de calamidades que vão crescendo com os progressos na "arte de matar". Donde a consequência: só se pode apelar à guerra como ultima ratio , quando todos os outros meios pacíficos falharam. Neste ponto, como noutros, também Mestre Tomás foi vítima de sequestro ideológico. Como se ele não tivesse dito o Mestre que a paz é a perfeita concórdia que brota do amor e se prepara pela justiça (34).

Coda

Não precisamos de embarcar naquilo que para Blumenberg é uma evidência: "a secularização é uma categoria da iniquidade histórica". C. Schmitt lembra que os conceitos de mais peso da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados - o Deus omnipotente tornou-se o legislador omnipotente, etc. etc. É tese comum que a ideia de Estado se impõe com o deísmo, com uma teologia e uma metafísica que rejeitam o milagre fora do mundo e recusam ruptura das leis da natureza. Ora, não há nada de menos claro do que a ideia de secularização. Que é uma sociedade secularizada? Em 1977, o sociólogo F. Isambert escreve na Encyclopaedia universalis francesa: "As vicissitudes da palavra 'secularização', tão frequentemente empregue nos nossos dias em matéria de religião, a sua circulação entre o francês e o alemão conseguiram (...) afectá-la de um polissemia (...) que resulta de oposição. De exclusão e de recuperação doutrinais". No espaço germanófono, M. Heckel declara ainda mais recentemente: "Desde o começo do século 19, a noção de 'secularização' alargou-se para se tornar uma palavra da moda na sequência de uma explosão semântica: tem facetas múltiplas e inapreensíveis à força de conotações falaciosamente sedutoras (...) O termo de secularização tornou-se um cliché corrente em qualquer análise, crítica ou política da cultura, segundo uma acepção ao mesmo tempo demasiado larga e extraordinariamente complexa". O conceito de 'secularização' é cada vez mais recusado como conceito operatório para dar conta dos fenómenos complexos de distanciação entre a Igreja e a sociedade.

O exame dos textos de S. Tomás mostra que, pelo menos nestes textos, Tomás insiste na importância capital da participação de todos no governo. Ele precisa, para além disso, em que consiste essa participação: trata-se por um lado do princípio da eleição dos governos e da elegibilidade, de tal modo que aqueles que governam exercem o poder no lugar do povo; e trata-se, por outro lado, da participação na legislação. Os elementos esboçados por Tomás são-no apenas ao nível dos princípios gerais. Na comunidade terrestre dos homens a política é a ciência suprema. Ama et fac quod vis: " esta palavra admirável de santo Agostinho não pode dissimular", escreve, M. D. Chenu, "os limites dum idealismo que, aqui como algures, escamotearia as exigências e os valores estruturais da acção". Contra os agostinianos, s. Tomás sustenta que "o verdadeiro amor, mesmo apostólico, respeita a ordem das coisas, o valor dos compromissos temporais, os ritmos da história" (35). O historiador da filosofia deve respeitar a distância histórica, sem fazer aplicações apressadas. É necessário situar estas passagens no seu contexto histórico. Não há contextos nulos. O contexto é o fundamento da interpretação. Sem contexto, nenhuma inspiração seria legível, recebível (36). O desconhecimento daqueles que quiseram utilizar os textos de Tomás de Aquino para defender uma teoria regalista no século XX levou à violação do princípio da distância histórica e assim à traição do pensamento do Mestre. O ensino do Mestre sobre a propriedade, por exemplo, recebeu, em períodos particularmente conturbados as mais diversas interpretações, as mais indevidas apropriações e justificações do status quo também. Eis o que escreve Nitti: "segundo os Padres, no princípio tudo é comum. A distinção entre o teu e o meu foi obra do Espírito maligno. S. Agostinho diz que a propriedade não é de direito natural mas de direito positivo. Tais teorias podiam ser recebidas pela Igreja quando ela era apenas o refúgio das classes pobres. Só no século XIII, quando ela é extremamente rica, vemos autores eclesiásticos sustentar abertamente o direito de propriedade. Assim S. Tomás de Aquino esforça-se por se acordar a doutrina conservadora de Aristóteles sobre a propriedade com o ensino completamente oposto do Evangelho e dos Padres das Igreja dos primeiros séculos" (37). Também não falta quem coloque S. Tomás juntamente com S. Agostinho entre os doutrinários do comunismo, do etatismo, da teocracia. Seria absurdo relacionar a "teologia política" de Tomás com a "teologia da libertação" em termos de continuidade sem ruptura.

Só os arrogantes podem acreditar que só eles existem e pensam, e que a verdade nasceu com eles - para lembrar uma expressão do próprio Tomás ( De Aeternitate mundi contra murmurantes ). Aquilo que procuramos é, em última instância, a verdade. S. Tomás recomenda a expressão do reconhecimento àqueles que encontraram a verdade e àqueles que, não atingindo esse fim, nos mostram também aquilo que se deve evitar: "Ideo dicit quod oportet amare utrosque, scillicet eos quorum opinionem sequimus, et eos quorum opinionem repudiamus. Utrique enim studuerunt ad inquirendum veritatem, et nos in hoc adjuverunt". O Estado não era portanto, para o Mestre, a forma última da sociedade. O fim último da sociedade tem de ser o mesmo que o do indivíduo. E não está nos prazeres, nem nas honras, nem na glória, nem nas riquezas, nem no poder, nem na arte, nem na amizade, nem na virtude, nem na ciência, nem na fé: mas na contemplação da essência divina (38). No encaminhamento da humanidade para o seu destino, a política tem um papel definido. O regresso a Deus faz-se pelo imperfeito ao perfeito, e a escada de Jacob tem múltiplos degraus. A finalidade do Estado é de pôr a sociedade em marcha para a beatitude contemplativa, fornecendo-lhe a felicidade imperfeita da vida activa ou a felicidade temporal, prelúdio e condição necessária da felicidade eterna (39). Mas a felicidade é a virtude. A arte política deve pois promovê-la na medida em que os indivíduos a isso não bastam. É na justiça e através da justiça que se realiza a paz feliz, que não é outra coisa que a unidade das inteligências e das vontades.

Verdades antigas, mitos modernos. Em nome da propriedade privada c onvertemos o desejo de segurança em obsessão e delírio securitário - ninguém nos aparece como promessa, tudo nos aparece como ameaça; a política invadiu tudo, convertendo-se em estratégia de ocupação e de controlo, teatro de sombras, representação, contrato, fantasma. Tornamo-nos evasivos: não respondemos a nada. Vivemos refastelados à sombra das dramatizações cínicas, da indiferença, dos massacres. A ideia de inimigo tornou-se obsessiva. Para Carl Shmitt a violência e o medo estão no coração da política e nem mesmo há política sem um inimigo. "O problema é compreender porque e como o político não dispensa o inimigo" (40). O inimigo "é o outro", é o estrangeiro. Taubes recebe esta oposição bem a seu modo: "Carl Schmitt sabe o que quer dizer amigo-inimigo e sabe bem que enquanto Hebreu aos seus olhos não posso ser senão um inimigo ex officio" (41). É esta distinção que os nossos tempos exploram à saciedade - um maniquéismo que brutalmente separa os bons dos maus, os justos dos ímpios. Dormimos bem com o gosto da autoridade, do juízo, da repressão. Procuramos culpados, pedimos vingança para semelhantes apenas diferentes (os emigrantes, categoria fantasmática que não sabemos definir), corroídos por um narcisismo da pequena diferença, aguçada pelo desespero, ou pelo desejo pânico de controlo que quase elege um chefe canibal.

J. Maritain afirma nos seus Principes d'une politique humaniste que: "É a filosofia de S. Tomás foi a primeira filosofia autêntica da democracia" (42). O vento não corre da feição que J. Maritain esperava, convencido que estava que para a instauração duma nova cristandade - era esse o seu objectivo político - "o ideal histórico da cristandade medieval" podia servir de ponto de comparação, em particular para caracterizar "a imagem prospectiva duma cristandade nova" (43). Esta tese deixou de ser partilhada por outros tomistas. Em último caso, o Mestre não seria partidário de nenhuma das formas de governo em estado puro. "Este regime", diz Gilson "em nada se parece com as monarquias absolutas e fundadas no direito do sangue que não poucas vezes se reclamaram da autoridade de S. Tomás de Aquino". A sua inclinação vai para uma forma mista que se poderia chamar, para P. Pègues, v.g., uma república. Mas Garrigou-Lagrange reclama-se de S. Tomás para julgar a monarquia preferível. É verdade: o Mestre inclinava-se para uma monarquia electiva e temperada: se a tirania de um só é a pior quando atinge o extremo, moderada ela é menos temível do que uma tirania colectiva. Não falta quem veja nesta preferência dois elementos constitucionais: a ideia democrática da participação do povo e a ideia da necessidade dum poder central. Tomás de Aquino tornou-se refém do tomismo. A encíclica Graves de communi (1901) de Leão XIII veio purificar a palavra "democracia" de qualquer significação política. O pós-humanismo está às portas. O homem tornou-se o director ou rei dos seus próprios actos, fora do tejadilho de Deus, Rei Supremo, governado apenas pela luz natural da razão. Viver etsi Deus non daretur não significa ter saído do humano. A ideia de vicariância tomista imanentizou-se. "Compreendemos que o político era a totalidade e por essa razão sabemos também que decidir da natureza apolítica duma realidade representa sempre uma decisão política, quaisquer que sejam a pessoa que a tome e as razões de que reveste para se justificar" (44). Decidir que o teológico-político acabou, é esquecer, neste contexto, a dimensão política do cristianismo, i.é., a sua "reserva escatológica", esquecendo igualmente a memória subversiva da paixão de Jesus sacrificado ao "ídolo monoteísta", como faz M. de Déguez (45)ou apenas ao seu valor político, como o faz o próprio Carl Schmitt. Pode vir a religião cívica (local) a alojar-se numa religião universal, retomando os temas bíblicos da eleição, da terra prometida, do profetismo, vg.? Porém, a religião cívica de uma nação democrática deve ser compatível com a secularização moderna do domínio político, não devendo, por isso, haver ligação entre a ordem humana e uma ordem sobrehumana. As religiões vivem resistindo - vivem de estratégias de resistência poderosas ao statu quo por causa do Fim, se não se convertem em sociedades burguesas domesticadas, arrefecidas. (Peter Sloterdijk) ou máquinas persecutórias e opressivas. Justificou-se o absolutismo a partir do monoteísmo, o que é, evidentemente uma perversão ideológica da religião tirada do seu horizonte místico e reduzida de maneira funcional a um horizonte ético. A romanização da ideia de Deus desemboca de maneira inevitável no monarquismo patriarcal dum Deus Senhor, ignorando que a unidade de Deus é aberta e unificante. Se o "político" é tudo, se a "humanidade" tomou o lugar de Deus, que resta ainda ao animal humano senão a sua própria auto-afirmação ou o niilismo? Quando a discussão e o papel do espaço público são hoje revogados pela ditadura das maiorias e dos grandes monopólios da informação, ou então relegadas para o ponto de indeterminação em que entrou a democracia moderna, que resta ainda esperar e acreditar?

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NOTAS

(20) Encontra-se uma calorosa exaltação da justiça na q. 58, artigo 12, da II-II: seria a justiça a mais eminente de todas as virtudes morais? Já no artigo 1 da questão 59 a injustiça é considerada vício geral pois pelo desprezo do bem comum pode ser o homem levado a todos os pecados.

(21) Para os pensadores gregos e romanos, o "direito" pleno e perfeito, a verdadeira "igualdade" são prerrogativas a assegurar ao cidadão, concretamente ao chefe de família. Os escravos, os filhos, a mulher são objecto de um "direito diminuído, imperfeito". São membros da família, sujeitos ao seu chefe e só mediante a comunidade familiar se integram na sociedade civil. Esta doutrina é exposta e apenas atenuada por S. Tomás na q. 57, da II-II, artigo 4. Tomás enceta a correcção de Aristóteles, declarando que o filho e o escravo "são considerados como homens", e, como tais, "de certo modo entram no domínio da justiça" (loc. Cit., resp. 2ª). Mas não levou a sua crítica até às suas últimas consequências.

(22) Cf. a Exposição de Tomás sobre a Ética a Nicómaco , livro X cap. VII, lição 11, Ed. Marietti, n. 2099. No pico da vida activa, Tomás situa a política, como a mais excelente, por visar o "bem comum".

(23) "O pleonectés é o idólatra" (Ef 5,5).

(24) Carlos Josaphat, Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito, Edições Loyola, 1998, p. 178.

(25) Releia-se o artigo 1º da q. 23 da II-II.

(26) Cf. q. 90-92, no tratado Das leis I-II, da Suma Teológica .

(27) S. theol. I-II, 105, 1.

(28) Cf. II-II, 66, 8, r. 3.

(29) Etienne Gilson, Le thomisme , 4ª ed. Paris, Vrin, 1942, p. 450.

(30) S. T., II-II, q. 47, a 10, ad 2.

(31) C. 2, c. 12, q. 1-D. 8, pars 1.

(32) Cf. A Cidade de Deus , XII, p. 35.

(33) Santo Tomas de Aquino, Suma de teologia, III, parte II-II (a), Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1995, p. 337ss.

(34) Cf. John Rawls, Political Liberalism, Columbia University Press, N. Y., 1993. Uma lei injusta é uma lei humana que não se enraíza na lei eterna e imutável. Em termos da doutrina tomista, toda a lei que eleva a personalidade humana é justa. Toda a lei que degrada a personalidade humana é injusta.

(35) M. D. Chenu, St Thomas d'Aquin et la théologie , Paris, Seuil, 1959, p. 148.

(36) Uma abordagem histórica da doutrina tomasiana deve ter em conta a influência do direito romano e do direito canónico. Neste contexto o estudo da máxima de direito Quod omnes tangit tomaria um lugar de destaque. Cf. Yves M.-J. Congar, "Quod omnes tangit, ab omnibus tractari et approbari debet", Revue historique de droit français , 4ª série, 1958/2, p. 210-259.

(37) Socialisme catholique (tradução francesa), Paris, Guillaumin, 1894, p. 66.

(38) Reg. Pr. I, 14. C. Gent. III, 26-37. I-II, q. I-II. In Plo. Lib. II, lect. 1.

(39) I-II, q. IV, a 7; q. LXII, a. 1; q. LXIX, a. 3.

(40) C. Schmitt, Der Begriff des Politichen , Berlin, 1963 (4ª ed), p. 444.

(41) Jacob Taubes, op.cit. , p. 182.

(42) J. Maritain, Humanisme integral , OC VI, p. 450.

(43) Cf. ibid., p. 452.

(44) C. Scmitt, op. cit. , p. 12.

(45) Manuel de Diéguez, L'idole monothéiste , PUF, 1981.