CAMILO CASTELO-BRANCO (CAVAR EM RUÍNAS): O MEU CONDISCÍPULO


I

Há vinte e dois anos!

Lembranças da minha vida de há vinte e dois anos!

Isto é que é um triste e verdadeiro cavar em ruínas!...

Estudava eu química na academia do Porto.

De dois condiscípulos somente me recordo bem.

Um era o melhor estudante; o outro, último da lista, seria o pior do curso, se eu lá não estivesse.

O primeiro era farmacêutico: chamava-se Francisco Pereira de Amorim e Vasconcelos. O outro era alferes de infantaria, filho de gente notável do Porto, duelista, paralta, galã de muito boas tretas: chamava-se António Augusto de Macedo Passos Pimentel. O seu mais amigo condiscípulo devia ser o mais inimigo da química: era eu. O nosso lente, o senhor frei Joaquim de Santa Clara Sousa Pinto, nunca teve o gosto de nos ouvir. Quando nos chamava, ou não nos via, ou nós não tinhamos visto o compêndio, que por sinal se chamava o “Lasagne”, parece-me que era: pela ortografia do nome não fico. Fugiamos da aula de cócoras, quando o sol de Deus nos estava incitando à rebelião. Com que tristeza eu via o sol e invejava a minha vida lá das serras donde viera a estudar o sesquióxido de ferro e o bicarbonato de soda naquelas frias salas do convento da Graça! O meu condiscípulo Passos abundava nas minhas líricas acerca do sol. E por isso fugiamos às arrecuadas, quando o nosso condiscípulo farmacêutico tinha absorvidas as atenções com a sua eloquência recamada de “protos”, de “deutos”, de “bis”, de “sesqui”, de “pilhas”, de “retortas”, e várias coisas com que os homens entretêm a vida para não morrerem de tédio.

Ainda me lembro de outro condiscípulo, homem feito, já médico-cirúrgico nesse tempo, sujeito grave que não nos dava importância como quem receava pegar-se da gafa de nossa vadiagem e rapazice. Era o senhor José Barbosa Leão, hoje jornalista, já duas vezes secretário geral do governo de Moçambique, pessoa de muito juízo, muita prudência, e bom amigo de toda a gente, segundo entendo.

Não me lembra já se o alferes fez acto de química. Eu fiz! O meu ponto era o “Kermes mineral” e não sei que mais. Tirei-o com outro infeliz da minha têmpera em química. Fui para um quarto andar onde eu morava na rua dos Pelames. Do quarto andar subi ao telhado com o compêndio e uma viola. A mulher, que eu amava, vivia numa trapeira da rua do Souto, e estava lá a mondar manjericões. Vi-a, sentei-me na espinha do telhado, e, ao arrepio da viola chuleira, cantei-lhe umas trovas, que eram a negação de toda a química, ou se pareciam com as teorias da ciência em formarem no telhado o pólo positivo com que as correntes eléctricas se haviam de estabelecer, dado que a vizinha se constituísse pelo negativo: como de facto.

Assomou ao telhado o estudante emparelhado comigo para a hecatomba do dia seguinte: ia estudar, comunicar-me os seus conhecimentos e participar dos meus. Que chalaça! Traduziu pessimamente os prolegómenos do compêndio, e foi-se convicto da sua perdição e da minha.

Ao anoitecer, ainda eu não sabia a que página do livro estava a matéria do ponto. Deliberei às nove horas da noite não fazer acto, e fui ouvir a música à porta do quartel general.

Estava eu embevecido na ária da Norma, quando senti no ombro pousar-se-me amigável mão.

- O senhor por aqui ?! perguntou-me alguém.

Voltei-me e vi o meu sábio condiscípulo Amorim de Vasconcelos, o estudante premiado, que, naquele tempo, devia orçar pelos seus trinta anos, e já era administrador da botica do hospital da Trindade, se bem me lembro.

- Por aqui em véspera de ponto?! Tornou ele.

- É verdade...

- Já estudou?

- Nada.

- Então?!

- Não vou fazer acto.

- Por que não sabe o ponto?

- Justamente.

- Venha comigo, que eu ensino-lho. Venha, que é uma desgraça perder um ano!

E levou-me pelo braço.

Escutei-o até às duas da madrugada. Quando saí, sabia o ponto, sabia os rudimentos da química, sabia a história e a filosofia da ciência, conhecia Berzelius, Gay-Lussac, Orfila e não sei quem mais.

Adormeci como um justo e acordei com a cabeça mais pesada que uma igual porção do kermes do ponto.

Soou a hora do acto. Já de antemão os condiscípulos me davam pêsames: dizia-se que eu, além de ser um parvo, quimicamente falando, tinha quarenta e oito faltas, afora vinte e duas abonadas, sete “negas” e cinco “fugidas”.

O senhor Santa Clara estava na presidência com ar fúnebre. O meu consócio do holocausto entrou como moribundo que não pudesse morrer sem fazer acto de química. Eu ia alegre com a minha ciência e três cálices de canela.

Que acto eu fiz! Desenruguei a fronte do lente, enchi de júbilo os arguentes, espantei os condiscípulos e fui aprovado “nemine discrepante”. E o que mais é, salvei o meu condiscípulo, que tinha sido menos boçal que eu, e frequentara exemplarmente... os bancos da aula. Se eu não fui reprovado, fora escandalosa a reprovação do outro. Deram-lhe um r, que ele agradeceu com o coração nos lábios, não maculados de uma só palavra escorreita em matéria de química.

Amorim abraçou-me, levantou-me à altura da sua óptima cabeça e disse-me:

- Se não fossem as negas e as fugidas, o prémio devia ser seu!

Radiava de alegria o bom homem! Tinha razão: fizera-me ele o assombro de todos; criara-me a reputação em quatro horas, com a sua linguagem tersa, clara, insinuante e amena como devera ser o método de quem ensinasse química a senhoras.

II

Dois anos depois, cursava eu as aulas de Coimbra, e soube que tinha morrido tísico o meu condiscípulo Passos Pimentel.

Amorim e Vasconcelos não tornei a vê-lo senão cinco anos depois. Consultei-o sobre as minhas precoces enfermidades de velho, e achei-o esquisito, assim com umas divagações incoerentes por coisas de telhas acima, com o rosto amarelo como crestado ao reverbero das retortas de Paracelso, desvariado por espiritualidades e metafísicas onde eu cuidava que ninguém podia ir sem passaporte para o reino da sandice. O sandeu, não desfazendo em ninguém, verdadeiramente não era ele. Hoje em dia, vão tão altaneiros os tolos que já é modéstia não dizer a gente que é tanto como eles.

Interpunha-se ano e mais sem que nos víssemos.

Fundou-se em 1853 a creche de S. Vicente de Paulo no Porto. Fizeram-me vice-presidente, fiscal ou não sei que governança daquilo. Achei-me com Amorim de Vasconcelos, eleito secretário da creche. Conversámos. Estava ele com uma febre cerebral de homeopatia. Explicou-me lucidissimamente as teorias hahnemanicas e fácil glória granjeou em converter-me. Amorim entendia o mistério das dinamizações infinitesimais. Não duvidava assegurar-me que dez gotas de nux lançadas das Berlengas ao mar podiam converter o oceano num remédio bom para dores de estômago, de cabeça e outras. As demonstrações saiam-lhe claras e irrecusáveis como uma operação algébrica.

Por ocasião da cholera-morbus, em 1857, Amorim escreveu judiciosas considerações sobre as epidemias, e polemicou virulentamente nos periódicos com os contraditores de suas doutrinas. Escreveu também sobre homeopatia na gazeta especial daquele sistema. Era violento nas refestas: qualidade inseparável dos apóstolos incendidos na sua fé; todavia, pugnava com engenho e cerrada dialéctica...

Em 1858 abundavam-lhe os bens de fortuna. Começou então a martelá-lo o pensamento de casar-se. A idade já não era muito para lirismos conjugais; além de que, o farmacêutico, dessangrado pelos vampiros do espiritismo, estava feito um grande osso envolto em películas.

A mim, injusto apreciador das damas talvez, pareceu-me que a mulher dedicada aquele sujeito assim nu de tecidos vitais, levava em mira desarticular-lhe os ossos e apanhar-lhe o pecúlio. Argumentei contra o matrimónio, dadas certas circunstâncias, e gabei-lhe as núpcias com o ideal, as deleitações místicas do intelecto com a ciência. Não afirmo que estas farfalhices o desandassem do intento matrimonial: é certo que não casou.

Neste tempo, bem que serodiamente, andava ele ainda cismando com as mesas de pé de galo movidas pelo impulso magnético dos dedos. Explicou-me a todas as luzes o fenómeno, que eu fiquei percebendo perfeitamente.

Passados dois anos encontrei-o afanado com experiências de sonambulismo. Tinha ele achado uma sonâmbula lucidíssima. Era uma actriz do teatro de S. João, chamada Jesuína, criatura que orçava pelos quarenta, se não boa para magnetização, óptima para dormir tanto quanto havia feito dormir as plateias. Três vezes assisti a sessões de sonambulismo de Jesuína, magnetizada pelo sujeito que era de si um grande tubo de fluido eléctrico, um electróforo, uma pilha voltaica, um enorme agulheiro de coriscos e faíscas.

Jesuína, por não ter coisa melhor que fizesse, adormeceu refastelada numa poltrona. Chamada à região da psique pelo impalpável farmacêutico, não deu rumor de si. A primeira e única prova, que me ela deu de sua lucidez sonâmbula, foi ressonar pelas fossas nasais entupidas de rapé vinagrinho. Daí a pouco espertou atarantada, falou à orelha do magnetizador, e este comunicou-me à puridade as causas impeditivas do sonambulismo. Quando seja preciso, hei-de dizê-las também ao ouvido do leitor.

Inferi deste irrisório espectáculo que o meu pobre Amorim era industriosamente logrado pela actriz, pecado que, a meu ver, lhe não será carga no outro mundo, onde está, nem neste lhe deve marear a memória. Daquela verdadeiramente pode dizer-se que viveu do seu espírito, quando a matéria pertencia já aos paradoxos anatómicos.

Entretanto, Amorim de Vasconcelos, cada vez mais subtil e etéreo, começava a descrer da existência da molécula corpórea, e a dar-lhe tacitamente como exemplo da veridicidade de sua abstrusa opinião.

Em 1859 encontrei-o triste, recolhido e translúcido. Trocámos curtas frases, das quais apenas me lembra duas das suas. Foi isto:

- O lugar dos espíritos não é aqui.

- No Porto? Perguntei.

- Não: no globo sublunar.

Apertou-me friamente a mão e caminhou.

Volvidos poucos dias, Francisco Pereira de Amorim e Vasconcelos debruçou-se numa janela do terceiro andar da sua casa do Bom Jardim, inclinou-se o bastante para destruir o equilíbrio do corpo sobre o peitoril e deixou-se cair. Minutos depois estava morto.

Tinha feito o seu testamento muito de espaço e judiciosamente.

Parte dos seus bens legou à botica homeopática, parte à creche de S. Vicente de Paulo e parte aos parentes.

Entre os legados menores deixava duzentos mil reis à sua sonâmbula Jesuína.

Depois é que entendi cabalmente o sentido das palavras: «o lugar dos espíritos não é aqui».

Amorim era doutíssimo na sua especialidade, e, sem favor, o primeiro químico experimental do Porto. Era disertíssimo e correcto; benfazejo, liberal com os pobres e consigo, austeramente económico e abstinente. Devo à sua memória esta notícia em paga de ele me ajudar a fingir uma vez que eu sabia química.

FIM


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