A QUÍMICA NA ACADEMIA POLITÉCNICA DO PORTO (1837 a 1868) (1)

1. As contradições de início
2. A cadeira de Química segundo o programa de ensino para 1838-1839
3. O primeiro Laboratório de Química da Academia Politécnica
4. O contributo de José António de Aguiar
5. A influência da Escola Industrial do Porto : um outro fôlego para a Química?
5.1. As “Noções” de Santa Clara Sousa Pinto e a proposta de Mata y Fontanet: uma outra didáctica para a Química


«Também tenho o meu refúgio do passado.
Algumas dúzias de livros levantados em cerco
à volta de dez palmos de tabuado de pinho
sem alcatifa nem axadrezado,
marcam as fronteiras das minhas delícias.
É o que tenho.»
Camilo em “Cavar em ruínas”, 1866

1. As contradições de início

A Academia Politécnica do Porto, surgida por decreto de 13 de Janeiro de 1837, sob a tutela do Ministério do Reino, foi mais uma criação liberal a inscrever-se no «pacote» de medidas legislativas que vinham, desde 1836, a reformar e expandir os estudos superiores em Portugal. As circunstâncias da sua criação - se bem que de contornos ainda difusos - parecem colocá-la de alguma forma como opositora da Escola Politécnica de Lisboa, criada somente um par de dias antes, a 11 de Janeiro de 1837.

Mas, não obstante as diferenças que as separaram logo desde a génese, as duas Politécnicas apresentavam, em comum, a novidade da introdução das Ciências Físicas e Naturais (Física, Química, Mineralogia, Botânica, Zoologia, Astronomia, Geodesia, entre outras) como disciplinas básicas para as carreiras superiores como as das Engenharias, as Médico-Cirúrgicas, ou as dos Oficiais do Exército e da Marinha e constituíam um assinalável progresso, em relação ao que se conseguira nos finais do século XVIII - princípios do XIX, ao nível das Academias de Marinha e do Colégio dos Nobres, com a inclusão das Matemáticas e de alguma Física.

Os termos da lei orgânica da Academia Politécnica permitem considerá-la como uma Academia Real da Marinha e Comércio reformada, ao indicar claramente que era a partir desta instituição do Porto, desde que sujeita a uma conveniente organização, que se fundava no país o ensino das ciências industriais. Mas, ao determinar que o novo estabelecimento passasse a ter como objecto a formação de Engenheiros Civis de todas as classes, Oficiais de Marinha, Pilotos, Comerciantes, Agricultores, Directores de Fábricas e Artistas, a organização em causa fez mais do que reformar a anterior Academia1 que, à data da sua criação (1803), tinha concentrado em si todos os cursos, quer preparatórios, quer de aplicação industrial, e que em Lisboa se achavam dispersos por vários estabelecimentos (BASTO, 1937, p.20). A Academia da Marinha e Comércio tinha o curso Matemático, o curso de Pilotagem, o de Comércio, as Línguas Francesa e Inglesa, a Filosofia Racional e Moral, a cadeira de Agricultura, que constava no alvará de 29 de Julho de 1803 que aprovava os estatutos da Academia para ser provida quando as circunstâncias o determinassem, o que se verificou apenas quinze anos depois2. Mais ou menos na mesma altura (1811) surgiu também uma cadeira de primeiras letras (BASTO, 1937, p. 33)

Podemos justamente observar, numa primeira análise, que estas mesmas vertentes se encontram recuperadas na passagem para a Academia Politécnica, na lei de 1837, e que deste modo a reforma não terá feito mais que assegurar o desenvolvimento nas linhas tradicionais da instituição - «mais do mesmo» em suma, se bem que lhes tenha acrescentado ainda os cursos industriais, de Directores de Fábricas e Artistas. Foi, no entanto, com a introdução dos cursos de Engenharia Civil, que a “reforma” da Academia a elevou à categoria de escola superior (bastas vezes surgem referências, emanadas pela própria instituição, à Ecole Centrale des Arts et Manufactures criada em Paris em 1829, como modelo subjacente à criação da Academia Politécnica)3. A inevitável reunião entre formações tão distintas, não só profissional como também socialmente falando, como as de um Engenheiro ou Director de Fábrica, e as de um Artista ou Comerciante, porém, não funcionou, e os efeitos perversos deste «casamento» difícil - em nosso entender, uma tentativa de conciliar sob o mesmo tecto o espírito da Ecole Centrale (uma escola de elite) e alguma coisa do Conservatoire de Paris (o conservatório do povo)4 - foram um verdadeiro estigma para a Academia, expondo-a a uma prolongada controvérsia, que encontrava na bipolarização ensino superior/não superior exibida, uma fonte de constante reactivação.

A Academia Politécnica instalou-se oficialmente em 15 de Março de 1837, dois meses depois da sua criação, funcionando temporariamente no Palacete da Viscondessa de Balsemão (para onde tinha sido transferida a Academia Real da Marinha e Comércio, em 1834 -1835, enquanto nas suas instalações de origem continuava a funcionar o Hospital Militar, aí plantado desde o tempo do cerco do Porto, de 1832 a 1834)5 com as cadeiras - mas ainda sem programa oficialmente aprovado, o que só veio a acontecer para o ano lectivo de 1838/1839 - correspondentes ao 1.º, 4.º, 5.º, 7.º, 8.º e 9.º cursos do decreto de 13 de Janeiro, respectivamente, Aritmética, Geometria Elementar, Trigonometria Plana, Álgebra até às equações do segundo grau; Desenho relativo aos diferentes cursos; Trigonometria Esférica, e princípios de Astronomia, de Geodesia, Navegação Teórica e Prática; História Natural dos três Reinos da Natureza, aplicada às Artes e Ofícios; Física e Mecânica Industriais, e Química, Artes Químicas e Lavra de Minas.

Do leque inicial faltavam os cursos 2.º Continuação da Álgebra, sua aplicação à Geometria, Cálculo Diferencial e Integral, princípios de Mecânica; 3.º Geometria Descritiva e suas aplicações; 6.º Artilharia e Táctica Naval; 10.º Botânica, Agricultura e Economia Rural, Veterinária, e 11.º Comércio e Economia Industrial.

Um conjunto de onze cadeiras, número desde o início declarado insuficiente para a diversidade de cursos apresentados pela Politécnica. Havia falhas graves, como a inexistência de uma cadeira de Construções, imprescindível na formação dos Engenheiros Civis, às quais o Conselho Académico procurou desde logo obviar, apesar das contradições resultantes da muita extensão de matérias - condição incontornável devido à categoria superior dos cursos de Engenharia - e do estreito espectro de cadeiras «autorizadas» pelo decreto orgânico, um condicionalismo que irá acompanhar o desenvolvimento desta instituição ao longo de muitos anos ainda.

2. A cadeira de Química segundo o programa de ensino para 1838-1839

O primeiro programa de ensino da Academia Politécnica, que entrou em vigor para o ano lectivo de 1838-1839, denunciava já as dificuldades encontradas pelo Conselho Académico na tentativa de conciliar a grande variedade de cursos com o pequeno número de cadeiras, e alertava para o facto de ter sido necessário, para atingir este desiderato «sobrecarregar algumas cadeiras especiais com doutrinas muito variadas, distribuídas por dois ou três anos, segundo a sua importância e multiplicidade, e de tal maneira dispostas que umas não se achem essencialmente dependentes das outras, a fim de que possam ser anualmente frequentadas pelos alunos dos respectivos cursos que tiverem concluído os estudos das Cadeiras comuns, que em todos eles ocupam os primeiros anos, como é indispensável». Ao quadro legal, já de si extenso, dos cursos estabelecidos na Academia Politécnica, o Conselho acrescentava ainda os Preparatórios para os Oficiais do Exército (1.º, para Engenheiros; 2.º, Artilheiros e 3.º, Infantaria e Cavalaria), medida que acabaria por colocar a instituição em rota de colisão com a Politécnica de Lisboa, porque a aproximava perigosamente do território de alguma maneira demarcado para esta, pelos decretos de 11 e 12 de Janeiro6.

Segundo o documento em análise, a Engenharia Civil desdobrava-se nos cursos 1.º de Minas; 2.º de Construtores de Navios; 3.º Geógrafos e 4.º de Pontes e Estradas, todos com duração de cinco anos. Os dois primeiros anos eram idênticos para todos, e deles constavam as matérias correspondentes a: 1.º Ano - 1.ª cadeira; Desenho de figura e paisagem, na 4.ª cadeira, e 2.º Ano - 2.ª cadeira; 8.ª cadeira. As diferenças começavam a fazer-se sentir nos currículos respectivos a partir do 3.º ano, com a introdução da Química Mineral no curso de Engenheiros Geógrafos, a mais em relação ao mesmo ano do curso de Minas, por exemplo, onde a 9.ª cadeira (na sua totalidade) aparecia somente no 4.º ano.

A Química, como cadeira (a 9.ª) completa, estudava-se no curso de Engenharia de Minas, no de Directores de Fábricas, e nos três Preparatórios para o Exército. Exceptuando os casos dos cursos de Oficiais de Marinha, Pilotos e Comerciantes, onde não constava do elenco de cadeiras, em todos os mais cursos figurava apenas «parte» da 9.ª cadeira (Química Mineral, sempre que se especifica qual). Diferentemente do que a lei de 13 de Janeiro estabelecia, a 9.ª cadeira denominava-se simplesmente Química, e Artes Químicas, no programa em questão. A Lavra de Minas fora entretanto descartada para a 7.ª, onde passava a ser leccionada junto com a Zoologia, Mineralogia, Geognosia e Metalurgia.

Houve posteriormente «mexidas», ainda como resultado da procura de uma melhor adequação da cadeira de Química a cada saída profissional. Com cursos de nível tão diferente e uma única cadeira, afligida por poucos meios pecuniários e limitados recursos humanos, as opções possíveis vislumbravam-se muito reduzidas, a exigirem alguma imaginação e criatividade nas saídas encontradas. A solução apresentou-se enfim com o estabelecimento de divisões (de maior, e de menor qualificação) tanto nesta, aliás como noutras cadeiras, para fins de prestação de provas de exame, e o “Regulamento para os actos da Academia Politécnica”, de 6 de Novembro de 1839 determinava assim uma «graduação» de conhecimento no interior destas, de tal forma que à divisão de maior qualificação correspondia o manancial de conhecimentos mais completo e desenvolvido para cada cadeira, e à de menor, a sua forma mais reduzida. Sabemos que para fins de prestação de provas os alunos deviam distribuir-se por este sistema conforme os cursos a que se destinavam; naturalmente, pensamos que a esta determinação deveria corresponder, logo à partida, outra, para fins de frequência, obrigando a uma série de «desdobramentos», ou diferentes versões, para a cadeira, mas os factos sugerem que a diferenciação se realizava apenas para os exames7.

Para a Química e Artes Químicas, criaram-se duas divisões: a 1.ª, de maior qualificação, abrangia os cursos Preparatório para a Escola Médico-Cirúrgica, o de Artistas, e o de Directores de Fábricas, e a 2.ª, os cursos de Engenheiros de Minas, de Pontes e Estradas, e de Geógrafos, o de Agricultores, e os Preparatórios para Oficiais do Exército. Deste modo tanto os Engenheiros de Minas, como os candidatos à Escola do Exército deixaram de prestar provas à cadeira completa, e passaram para um formato mais «ligeiro» (correspondente à «2.ª divisão» da cadeira); por outro lado, os Artistas foram promovidos à 1.ª divisão.

Para além das situações indicadas no “Programa de Ensino” para 1838-1839, sabemos também que a 9.ª cadeira foi desde o início das aulas da Academia frequentada pelos estudantes/candidatos à Escola Médico-Cirúrgica, facto que podemos apreciar no Quadro I que de seguida apresentamos, adaptado de uma informação dada pelo director da Academia, João Baptista Ribeiro, ao ministro do Reino, em 21 de Março de 1839.


Mt. - matriculados ; Ov. - Ouvintes. A última coluna horizontal refere-se ao número de estudantes no total das cadeiras da Academia
Fonte: ANTT. Ministério do Reino. Negócios diversos relativos à instrução pública (1835 – 1843), Mç 2127 – “Mapa do número de Estudantes que frequentaram a Academia de Marinha e Comércio hoje Politécnica, nos anos lectivos desde 1834 até ao corrente ano de 1838 para 1839”, informação do director da Academia, João Baptista Ribeiro, de 21 de Março de 1839.


É de destacar que, para os dois anos apresentados no Quadro I, a afluência da Química na Academia Politécnica do Porto foi exclusivamente «recrutada» via Escola Médico-Cirúrgica8. Pensamos que esta hegemonia se deve ter mais ou menos mantido pelas décadas seguintes, dado que no início dos anos’60 o cômputo geral dos cursos da Academia apenas permitia considerar com frequência assinalável, o curso de Engenheiros de Pontes e Estradas, e o Preparatório para a Escola Médico-Cirúrgica (ABREU, 1865, p. 76 e p. 143).

A 9.ª cadeira estruturava-se de acordo com o paradigma natural, logo dividida em três partes: 1.ª - Química Mineral; 2.ª - Química Vegetal e 3.ª - Química Animal, longe da divisão mais moderna em Orgânica/Inorgânica, resultado ainda «fresco» da autonomização da Química Orgânica no edifício científico. As Artes Químicas não constituíam em si um capítulo independente, antes se distribuíam pelas três classes anteriormente definidas, como suas aplicações.

O professor designado para a 9.ª cadeira era Joaquim de Santa Clara Sousa Pinto9 que a regeu até 1872. O livro de texto adoptado, a última edição de Lassaigne10. O programa para 1838 - 1839 não refere nenhum curso prático para esta cadeira, mas determina-lhe exercícios científicos e práticos, fundamentalmente de demonstração por parte do lente, de diferentes produtos químicos, com indicação dos seus usos nas ciências e nas artes, assim como de instrumentos, máquinas e aparelhos necessários para a obtenção e análise desses produtos. Os alunos aprendiam como se montavam e desmontavam esses aparelhos, e as descrições dos processos empregues nas diferentes operações químicas, assim como as suas vantagens relativas.

Não foi possível apreciarmos qual o nível de intervenção do aluno desta cadeira nos exercícios práticos realizados, no entanto, como se afirma a dada altura no mesmo documento, que o lente «repetirá ou fará repetir pelos Estudantes as operações indispensáveis à inteligência das teorias» sabemos que as manipulações práticas realizadas pelos alunos não eram factor de aprendizagem a excluir na Química da Academia Politécnica, logo nos seus primeiros anos de instituição.11

Afirmava Ferreira da Silva numa pequena memória apresentada ao Congresso Pedagógico de Madrid em 1892, a propósito do ensino da Química na Academia Politécnica, que geralmente os professores destinavam as duas primeiras épocas do ano lectivo à Química Inorgânica e somente a terceira para a Química Orgânica - o que significava um pequeno número de lições para as 2.ª e 3.ª partes da cadeira - e que não havia curso especial de Análise Química (SILVA, 1893, p.6). Apesar disso, a Química prática parece ter existido desde sempre na Academia, em lições retiradas do lote de horas que a lei estabelecia para a cadeira, muitas vezes com certo sacrifício da parte teórica, facto que não deixava de suscitar o desagrado em entidades oficiais ligadas à tutela. Era nesta base que funcionava o proprietário da 9.ª cadeira, e por esse mesmo facto foi criticado por José Maria de Abreu, do Conselho de Instrução Pública, que inspeccionou a Academia Politécnica em 1864. Baseando-se no facto de encontrar uma cadeira que por falta de tempo se reduzia fundamentalmente às matérias de Química Inorgânica, em detrimento das outras duas componentes, de Orgânica e Análise Química, Abreu afirmava: «é entretanto muito de notar, que sendo tamanha a estreiteza do tempo, que se omitem algumas das mais importantes matérias desta cadeira, a academia permita que o lente dê por semana três lições teóricas, e reserve dois dias para as de prática, quando a lei proíbe que o tempo destinado para as lições teóricas seja interrompido por outros assuntos»12. A simplicidade dos processos práticos utilizados nessas lições (os viáveis dadas as condições precárias de material, reagentes e instalações) serviu igualmente para sustentar a crítica de Abreu sobre Santa Clara: «sendo tal a escassez de meios do laboratório, que, segundo diz o programa desta cadeira, é necessário empregar os processos mais fáceis e económicos, escusado era para isso privar os alunos de duas lições semanais de teoria, a que todos os dias podia seguir-se a prática no laboratório; onde a pobreza de utensílios e aparelhos, e a péssima disposição da oficina não permitem muitos trabalhos práticos» (cf. ABREU, 1865, p.55).

A Academia Politécnica do Porto, lado voltado a Sul em primeiro plano. (“Arquivo Pitoresco”, Volume IX, 1866). Também visível na gravura, o lado nascente do edifício, para cujo piso térreo se transferiram, reformadas, as acomodações da Química, em finais da década de sessenta.

3. O primeiro Laboratório de Química da Academia Politécnica

Se bem que já estivesse previsto na lei orgânica, o Laboratório de Química só teve autorização oficial para ser instalado em 1844. Foi entretanto necessário improvisar um espaço, na medida em que o edifício ocupado pela Academia em 1837 se levantara anteriormente para uma instituição onde a Química não existia. O pequeno corredor com aproximadamente 9 x 2 m e quase 4,5 m de pé direito, que servia de vestíbulo à sala de Química, foi a solução provisória encontrada, e mereceu os epítetos de «rudimentar e mesquinho»13 a Manuel Nepomuceno, farmacêutico e professor, que foi aluno desta instituição em finais da década de 40, e preparador do seu Laboratório de Química. Afirma Alberto de Aguiar que Manuel Nepomuceno (1830 – 1911) foi director da Farmácia do Hospital D. Pedro V desde 1864, preparador do Laboratório da Academia Politécnica de 1859 a 1877, abarcando por isso as regências de Santa Clara Sousa Pinto e de António Luís Ferreira Girão, e professor no Instituto Industrial e Comercial do Porto desde 1875 (AGUIAR, 1925, p. 45).

Há evidências de que se recorreu a esta solução provisória logo desde o início das aulas da Academia Politécnica, e isto independentemente da autorização oficial para o estabelecimento do Laboratório em 1844, e das várias representações não atendidas, feitas pelo Conselho Académico propondo o Refeitório, Cozinha e anexos da Cerca do extinto Convento das Carmelitas para a sua instalação (BASTO, 1937, pp. 219 -221) - na realidade o que estava improvisado não era (nem se podia considerar) um laboratório, se bem que dentro das suas limitações, tenha efectivamente funcionado como apoio às lições da 9.ª cadeira, com grande falta de meios materiais (mesmo os muito básicos), sem acesso ao produto das propinas, que desde 1840 passou a reverter para os cofres do Estado, e sustentado muitas vezes pela generosidade e dedicação dos lentes que nele trabalhavam, o que se pode depreender pelos relatos de BASTO, 1937, pp.248 - 250 e pp.294 - 295, e ALMEIDA, 1850, pp.13 - 14.

Durante muitos anos, este espaço de recurso cumpriu como pode os seus deveres, que eram os de apoio às lições da 9.ª cadeira, e também a execução de análises, geralmente toxicológicas, solicitadas por entidades oficiais ao lente respectivo, numa Academia Politécnica tão financeiramente estrangulada, que quase diríamos condenada ao progressivo definhamento, não fosse o furioso afinco com que muitos dos seus lentes teimaram em não deixar morrer o projecto.

4. O contributo de José António de Aguiar

Deste grupo de «sobreviventes» devemos precisamente destacar a figura de José António de Aguiar, por ser de especial significado para o andamento inicial da Química, e seu Laboratório, nesta instituição. José António de Aguiar (1812 - 1850) era natural do Porto, e desenvolveu em grande parte as suas aptidões para as ciências físicas e naturais praticando na farmácia de seu padrasto, Ambrósio Faustino de Andrade. Impedido de cursar a Universidade, devido ao facto de ter de substituir o chefe de família - entretanto exilado por motivos políticos, após a vitória miguelista - na direcção do estabelecimento, Aguiar opta, mais tarde, em 1834, por frequentar a Academia Real de Marinha e Comércio, cursando as suas cadeiras, na transição para Politécnica, com grande brilhantismo e distinção. Em 1838 foi indicado pelo Conselho Académico para ocupar uma vaga existente numa cadeira, e em Agosto de 1839 nomeado para lente substituto14.

São do próprio lente da cadeira de Química as palavras, que em “Oração fúnebre”, testemunham o apreço e reconhecimento que lhe era devotado, a importância e o alcance da sua acção, e o choque que significou a sua perda para a instituição: «matriculado na Academia, e dedicado de todo o coração ao estudo de todos os ramos da Ciência (...) frequentando desde o ano de 1834 até o de 1839 todas as cadeiras aqui estabelecidas, não só recebeu outros tantos prémios, mas ainda alcançou outro maior prémio, qual o de granjear a estima e amizade, ou antes o amor de seus Mestres, que (...) reconhecendo nele um elevado mérito, não só pelo seu talento, aplicação e estudo, mas pela sua nobre conduta, pelas suas maneiras afáveis e delicadas, e pela sua modéstia e candura, fizeram os possíveis esforços para o elevarem ao Magistério.»

«Elevado pois à dignidade de Mestre, em breve o seu génio vasto, desenrolando-se como as salsas ondas do maldito elemento, justificou plenamente tão sábia como reflectida e acertada escolha, e as cadeiras de Filosofia, de Matemáticas puras, de Desenho, e finalmente todas aquelas onde o reclamava o serviço académico, com razão se ufanaram de o possuir pela suma dignidade com que as regeu, e os gabinetes práticos de Filosofia, e com particularidade o Laboratório Químico (eu folgo, senhores, de assim o declarar) sentiram o benéfico influxo do seu engenho, assim como hão-de sentir a sua falta, porque na parte prática muito difícil será repará-la » (cf. PINTO, 1850, p.13).

José António de Aguiar: um «menino de oiro» da instituição, que não hesita em utilizar a sua extraordinária versatilidade para socorrer a todos os males, substituindo nas Matemáticas, na Física, na Química, na Botânica, e até mesmo no Desenho. Apesar de breve, a sua passagem pela Academia ficou assinalada por um conjunto de iniciativas pessoais notáveis em prol do desenvolvimento do ensino das Ciências Físicas e Naturais. Foi da sua inteira responsabilidade a organização de um gabinete de Zoologia (preenchendo-o com exemplares que ele próprio preparava), e para a Botânica, de um pequeno herbário e de um jardim (no arranjo do qual empregou parte dos seus rendimentos). Mas era na Química onde mais se destacava o seu talento: «Na Química principalmente era o sr. Aguiar tão insigne, e estava tão conhecedor de seus factos e suas leis, que dificilmente se encontraria em Portugal quem lhe levasse vantagem neste ramo.

O laboratório de seu padrasto, e o da própria Academia são testemunhas do tempo e das vigílias, que o sr. Aguiar gastou na observação e na análise. Foi em todo o decurso de dez anos, depois do seu despacho, que ele provou ao sr. Santa Clara, que acabava de ser seu mestre, para ser depois seu amigo e colega, qual exacto fora o juízo, que na primeira qualidade fizera a seu respeito.

Digam seus discípulos quanto eram cheias de erudição as prelecções, que tantas vezes lhe ouviram: e diga o Porto e os subúrbios, quantas vezes o rigor da sua análise descobriu o crime do assassino, mostrando isoladamente o veneno, que servira de instrumento à maldade, nos estômagos das vítimas, que lhe foram dados analisar» (cf. ALMEIDA, 1850, p.13).

José António de Aguiar não viveu o tempo suficiente para desenvolver todo o seu potencial, e ver frutificar as suas iniciativas. A morte colheu-o de rompante, em plena maturidade, e a exclusão de uma das mais marcantes influências na Academia Politécnica, deixou um vazio difícil de preencher, e (muito provavelmente) um problema na sucessão da cadeira de Química.15 A instituição que acolheu Aguiar e que recebeu o melhor que ele pode dar na sua abreviada vida, rendeu-lhe uma sentida homenagem, e transformou-o num ícone da sua existência.

Ferreira da Silva incluiu-o muito justamente na sua “Breve notícia sobre o ensino da Química na Academia Politécnica do Porto”, destacando-o de entre os professores que pugnaram por assegurar os «exercícios práticos e demonstrações» no ensino que ministravam aos alunos, isto apesar das dificuldades sentidas, especialmente na época inicial da Academia: «A escassez de dotação com que a Academia lutou por muitos anos não permitiu dar o devido desenvolvimento aos exercícios práticos e demonstrações, já claramente indicados nos programas de 1838. É certo, contudo, que este ensino nunca faltou aos alunos. Deve-se esse resultado ao zelo científico e amor pelo ensino de alguns professores, especialmente do lente substituto José António de Aguiar, que nos primeiros tempos da existência da Academia, realizou, de 1839 a 1850, demonstrações e trabalhos importantes, com material seu e à sua custa » (cf. SILVA, 1893, p.7).

5. A influência da Escola Industrial do Porto : um outro fôlego para a Química?

O início da década de cinquenta do século XIX marca o fim de uma época para a Química na Academia Politécnica, em particular no respeitante à sua parte prática, pelo desaparecimento prematuro de José António Aguiar. Mas apesar de importante, esta perda não terá sido, contudo, o único condicionante ao desenvolvimento da Química para esta época; de entre o possível leque de outros factores determinantes, alguns prender-se-ão, de facto, com a introdução nos primeiros anos de ’50 de uma outra realidade escolar, «co-habitante» com a Academia Politécnica.

Referimo-nos à Escola Industrial do Porto, criada por decreto de 31 de Dezembro de 1852, junto com o Instituto Industrial de Lisboa, e sob a tutela do recém-criado Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. De acordo com a lei fundadora, destinava-se esta instituição, assim como a sua congénere em Lisboa, ao desenvolvimento do ensino industrial, genérico para todas as Artes e Ofícios, utilizando-se métodos essencialmente de aplicação. O ensino em questão, este sim, muito mais próximo do modelo do Conservatoire des Arts et Métiers de Paris, era gratuito, abrangia os graus elementar, secundário e completar, e permitia, para além de um curso geral, a formação de operários habilitados, oficiais, mestres e directores para a Indústria.

Para obviar a parte do problema da instalação da Escola, prevista para o mesmo edifício onde já se acomodava a Academia Politécnica, determinou-se então que o Laboratório de Química da Academia fosse pertença simultânea dos dois estabelecimentos (BASTO, 1937, p.275). Para tal, foi necessário proceder-se a obras e ajustamentos espaciais, que na realidade resultaram num novo espaço para acomodar a prática laboratorial da 9.ª cadeira da Academia. Como veremos mais adiante, não demorará muito para que seja também o lente o outro elemento de partilha, para além do espaço, ao nível da Química, entre as duas instituições em causa. A simbiose daqui resultante, deverá ter conferido, em nosso entender, características muito particulares ao desenvolvimento do ensino da Química na Academia Politécnica. E como sua consequência directa, enumerada em último lugar na série, mas não necessariamente em importância, temos uma hipotética mudança de rumo para a 9.ª cadeira, (uma perspectiva que desenvolvemos mais adiante no tópico 7. A “joint-venture” entre Academia Politécnica e Escola Industrial do Porto) da qual são evidências, as alterações e incorporações realizadas ao nível dos livros utilizados. De entre os movimentos dados nesse sentido, pelo lente proprietário da cadeira de Química, destacaremos e analisaremos em primeiro lugar, a série de obras que entre 1852 e 1865 Santa Clara Sousa Pinto fez publicar - e que pensamos serem traduções sucessivamente melhoradas e ampliadas de uma obra em castelhano, “Sinópsis filosofica de la quimica”, de Pedro Mata y Fontanet - no intuito de apurarmos da sua pertinência nos contextos da Química e do seu ensino na Academia Politécnica.

5.1. As “Noções” de Santa Clara Sousa Pinto e a proposta de Mata y Fontanet: uma outra didáctica para a Química

A já comprovada importância que Santa Clara Sousa Pinto atribuía à prática laboratorial esteve certamente no leque de razões que o levaram, não só a entregar-se à tarefa de verter para português a obra de Pedro Mata y Fontanet, catedrático de medicina legal e toxicologia na Universidade de Madrid16, “Sinópsis filosofica de la quimica”, de 1849 como, inclusivamente, a publicar a parte respeitante à Química prática, ainda antes de ter completado toda a tradução, pela sua qualidade, e utilidade que do uso dela podia resultar para os seus discípulos; a esta parte traduzida da “Sinópsis” de Fontanet, Santa Clara acrescentou ainda umas noções teóricas, que não pertenciam à predita obra, para os alunos de Química da Associação Industrial Portuense.

De tudo isto resultou, em 1852, a obra traduzida e coordenada pelo lente da 9.ª cadeira da Academia Politécnica do Porto, as “Noções gerais de Química prática”, primeira da série que podemos grosseiramente caracterizar como a das “Noções”: três manuais de carácter geral e elementar que deverão ter acompanhado as lições da cadeira de Química de Santa Clara Sousa Pinto, desde o início da década de cinquenta até à jubilação (1872), não obstante existir um livro de texto adoptado - o primeiro foi, como já anteriormente referimos, o “Abrégé Élémentaire de Chimie”, de J.-L. Lassaigne; mais tarde entraram as “Leçons de chimie élémentaire appliquées aux arts industrielles” de Girardin, e o “Traité de chimie” de Troost (SILVA, 1893, p.6). A mudança nos manuais traduz, a nosso ver, uma possível substituição de paradigma, na medida em que o “Abrégé” de Lassaigne trata da Química como ciência acessória da Medicina, Farmácia e História Natural, enquanto que as “Leçons” de Girardin (professor de Química na Faculté des Sciences de Lille) apresentam uma Química aplicada às Indústrias.

O primeiro livro de texto adoptado para a 9.ª cadeira. Jean Louis Lassaigne (1800 – 1859) foi discípulo de Vauquelin, e professor de Química e Física na École Royale Vétérinaire d’Alfort. E o livro de texto indicado para a 9.ª cadeira no programa de ensino para a Academia Politécnica, de 1861, "Leçons de Chimie Elémentaire, de M.J. Girardin.


A obra de Pedro Mata y Fontanet; as traduções feitas por Santa Clara Sousa Pinto originaram a série das “Noções”, que passaram a integrar o material didáctico da 9.ª cadeira, não obstante a existência de um outro livro de texto adoptado.

A teorização de Pedro Mata y Fontanet, patente na sua “Sinópsis Filosófica de la Química”, a obra que Santa Clara traduziu, e que julgamos estar totalmente integrada no 2.º elemento da série “Noções”, publicado em 1856, e denominado “Noções gerais e elementares de Química teórica e prática”17, segue paralela (e independentemente) ao manual aconselhado, fornecendo a inteligibilidade que faltava para tornar compreensível o extenso arrazoado que já constituía o «pacote didáctico» da Química, a denunciar, para este ramo da Ciência, a necessidade de organização dos seus conteúdos, atendendo ao fim particular do seu ensino.

Afirmava Fontanet na “Sinópsis”, mostrando um reconhecimento exacto das dificuldades associadas ao ensino desta ciência, em particular quando esta se revestia de um carácter subsidiário para formações que lhe eram distintas: «Sem intenção de ofender ninguém, devemos confessar que nas cátedras melhor regidas, que nas obras melhor escritas, não é possível a apropriação dessa ciência sem lhe dedicar anos inteiros de ímprobo estudo, de manipulações contínuas, e sobretudo sem um trabalho fatigante de memória pelo qual se podem compreender os tormentos de Sisifo». E continuava: «era para nós imperioso o desejo de introduzir no estudo da química um método de todo o modo diferente do adoptado nas cátedras e nas obras, por meio do qual tivesse maior intervenção o raciocínio na aquisição dos conhecimentos necessários de dita cência. Nós desejamos que no seu ensino a síntese substituísse a análise, a generalidade a individualidade, as leis aos factos, a exposição racional a exposição histórica, a teia lógica a descrição incoerente, enfim, o talento a memória». (cf. MATA Y FONTANET, 1849, pp. VI - VII). E sobre os livros de texto normalmente escolhidos para o ensino da Química: «Os primeiros passos relativos à Química não deviam ser dados em obras tão vastas como as de Thenard, de Berzelius e de Dumas, que nada têm de didáctico, que estão escritas para mestres, que são obras de consulta, que têm todas as características de um dicionário, menos a ordem alfabética.

Tão pouco devem dar-se pelos compêndios escritos sob o mesmo plano, com o mesmo método das obras vastas, porquanto nesses compêndios não há, nem pode haver, mais que noções elementares ou sucintas, não susceptíveis de ser tomadas como premissas, das quais se pode deduzir tudo o que não estiver compreendido no compêndio», e esclarecia melhor a diferença entre estes livros de texto e o que apresentava, da sua autoria, em 1849: «Nos compêndios vulgares há a mesma análise, a mesma individualidade, a mesma incoerência que nas obras clássicas de que são miniatura; são dicionários mais reduzidos, e por isso mesmo menos úteis. No nosso compêndio, a síntese substituiu a análise, associando-se à sua marcha; a generalidade absorveu a individualidade sem a destruir; a relação, a dependência, o laço científico fez desaparecer a incoerência das descrições, unindo os fenómenos com os seus vínculos naturais» (cf. MATA Y FONTANET, 1849, pp. XIV - XV).

A obra de Fontanet dividia-se em três partes: a primeira dizia respeito à “Exposição dos conhecimentos físicos e princípios químicos necessários para o estudo dos corpos”; a segunda ao “Estudo geral dos corpos inorgânicos”, e a última, à “Análise Química” (parte traduzida em primeiro lugar por Santa Clara, e publicada em 1852). Dentro desta estrutura a “Sinópsis Filosófica” desenvolve-se em função de um modelo científico para a Química, que a toma como um sistema material onde se faz sentir a acção de forças e outros agentes (que se comportam como forças). As propriedades físicas e químicas resultavam dessa acção, e o comportamento das substâncias podia ser explicado em função de leis deduzidas a partir destes conceitos, e que exprimiam a acção dessas forças e desses agentes sobre a matéria.

Eis algumas das ideias base para o denominado «estudo filosófico» da Química: como Ciência, a Química era constituída pelo estudo das propriedades físicas e químicas dos corpos e das leis de que dependem essas propriedades. A matéria de todos os corpos, nos seus diversos modos de existência era regida por leis, e que a matéria dos corpos inorgânicos se regia por leis físicas, e que ao universo dos organizados (orgânicos) se acrescentavam outras, que modificavam a acção das primeiras, as chamadas leis vitais. As leis que regiam a matéria, tanto orgânica como inorgânica, eram modos de operar de certas forças sobre ela, ou de certos agentes que se comportavam como se de forças se tratassem. O estudo da Química como Ciência devia ser feito, sempre que possível, relacionando os factos com as causas de que eram efeito, e com os factos primordiais de que dependiam. A verdadeira diferença entre a Química Orgânica e a Inorgânica residia na influência desconhecida na sua essência que presidia à realização dos fenómenos do corpo vivo e na impossibilidade de se obter pela arte, os produtos químicos elaborados sob a acção de essa influência. Para o estudo da Química Orgânica reservavam-se os mesmos princípios da Inorgânica, pois tomava-se este ramo da Química susceptível de aplicação desses princípios ao estudo procedente dos corpos organizados (MATA Y FONTANET, 1849, pp.4-7).

A “Sinópsis” de Mata y Fontanet constituía uma instrução elementar para a Química, guiada pela convicção de que o estudante, guiado pela lógica, conseguia mais rapidamente apropriar-se dos princípios e dos factos desta Ciência, assim como fazer uso mais prolongado deles, do que pelo mero e cego recurso à sua capacidade de memória. Assumindo-se ainda como compêndio, porém redigido com outro espírito, esta obra refundia as obras mais extensas, como de Thenard, Berzelius ou Dumas, oferecendo - ao contrário dos outros, a que se opunha, que as extractavam, resumindo sem uma base de racionalização, as matérias desenvolvidas pelos especialistas – uma proposta de organização de ensino inspirada em grande parte por Thenard, e em alguns trabalhos que este famoso químico empreendeu no sentido de estabelecer uma base sintética e racional, para agrupar e caracterizar as classes de corpos, como os metais, os óxidos, as ligas, os sulfuretos, e também por influência das ideias lógicas de Edouard Robin no âmbito da sua “Química racionalizada” (MATA Y FONTANET, 1849, pp.VII – VIII).

Para além das situações indicadas no “Programa de Ensino” para 1838-1839, sabemos também que a 9.ª cadeira foi desde o início das aulas da Academia frequentada pelos estudantes/candidatos à Escola Médico-Cirúrgica, facto que podemos apreciar no Quadro I que de seguida apresentamos, adaptado de uma informação dada pelo director da Academia, João Baptista Ribeiro, ao ministro do Reino, em 21 de Março de 1839.

Um excerto da Introdução da “Sinópsis Filosófica de la Química”