Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- Para o pensador alemão, Peter Sloterdijk, os factos da vida científica e da criação artística nos tempos modernos provam, sem a menor ambiguidade, o fim da era das revelações puramente passivas. Os devotos à antiga têm como missão compreender até que ponto sobrestimaram a revelação religiosa, fazendo dela a chave da essência de todas as coisas e subestimando a iluminação do mundo pela vida desperta, a ciência e as artes. Esse dado coloca a teologia sob a obrigação da aprendizagem, pois ela não tem o direito de deixar romper a ligação com o mundo do saber do outro campo.
Termina o seu livro sobre A loucura de Deus[i] com um credo: «A globalização significa que as culturas se civilizam umas às outras. O Juízo final desemboca num trabalho quotidiano. A revelação torna-se a relação com o ambiente e o relatório sobre a situação dos direitos do homem. Volto assim ao leitmotiv desta reflexão, que se funda na ética da ciência universal da civilização. Repito-o, como um credo, e desejo que tenha suficiente energia para se propagar mediante línguas de fogo: o caminho da civilização é o único que ainda está aberto».
Escreveu isto em 2007. Não perdeu actualidade, embora a alternativa à velha arrogância teológica não pode ter agora uma simétrica arrogância na ciência que seria, por natureza, pouco científica. Mas o seu desejo está a cumprir-se onde, talvez, menos o esperasse. O alegado obscurantismo dos três monoteísmos já não se apresenta como um bloco impenetrável com medo das dúvidas. Algumas manifestações de diálogo entre religiões começam a focar-se na condenação da violência e da guerra em nome de Deus.
Por outro lado, a confiança na eficácia das chamadas ciências da civilização ficou abalada ao não conseguirem civilizar e democratizar a política ou a cultura política do país mais apetrechado em instituições científicas e artísticas, os EUA, como se viu nos últimos 4 anos de apologia da estupidez. Além disso, o referido pensador alemão não podia prever o que aconteceu, em 2013, na Igreja Católica.
Com a eleição do Papa Francisco começou algo de novo que excede as exigências de diálogo entre religiões e entre crentes e não crentes. É ele que está a procurar realizar alianças e coligações entre as culturas religiosas e seculares e a colocar a teologia em atitude de aprendizagem com todos os universos culturais. É a sua própria vivência e interpretação da revelação cristã que o torna fiel à terra e ao céu, ajudando a Igreja a ser menos “mestra” e mais discípula, aprendendo com todos, acolhendo e partilhando todas as experiências que ajudem a vencer o egoísmo e a barbárie entre humanos e com a natureza.
Em poucos anos, tornou-se uma referência para quem deseja um mundo solidário. Não o faz para glória da Igreja, mas para que esta se torne o que sempre deveria ter sido: um hospital de campanha, com muitos postos de pronto-socorro dos mais pobres e perdidos nas migrações mais desesperadas. Escreveu guiões admiráveis para despertar e mobilizar jovens e adultos para linhas da frente exigidas por antigos e novos desafios sociais e culturais.
- Quem procura desqualificar as suas ousadias diz que ele não é apenas um ingénuo, mas um atrevido ignorante: fala do que não sabe e faz o que não deve. Mas que irão dizer, agora, com o que aconteceu na semana passada, nos dias 19 a 21?
Francisco não convocou repetidores, mas investigadores de uma nova economia. Realizou-se o encontro, longamente preparado, A Economia de Francesco, que decorreu a partir de Assis (Itália) com ligações a 120 países diferentes, embora no contexto das dificuldades impostas pela pandemia. O seu objectivo foi colocar em diálogo jovens economistas e empreendedores do mundo inteiro, para imaginar como se pode criar uma economia mais justa, fraterna, inclusiva e sustentável, sem deixar ninguém para trás[ii].
Como é evidente, a proximidade de um acontecimento destas dimensões não permite avaliar o seu alcance, tanto mais que foi realizado para desencadear e afirmar um movimento de jovens empenhados no futuro de todos e que exige uma nova e envolvente militância em muitas áreas e muitas frentes.
Fomos informados que a primeira conferência seria de Jeffrey Sachs, com o tema, Aperfeiçoar a Alegria: três propostas para deixar a vida florescer. Parecia um convite para ler o Evangelho de S. João, em que o desejo de Jesus é a alegria, cada vez mais completa, numa vida cada vez mais abundante para todos[iii].
A alegria não é uma particularidade de S. João, é a proposta de todo o Novo Testamento. No entanto, a verdadeira alegria acontece quando se muda a própria vida. Como dizia o filósofo judeu, L. Wittgenstein, «creio que uma das coisas que o Cristianismo afirma é que as boas doutrinas são todas inúteis. Importa, sim, mudar a vida (ou a direcção da tua vida) … A sabedoria é fria. Em contrapartida, Kierkegaard chama à fé uma paixão»[iv].
- Hoje, na celebração da Eucaristia, encerramos o espantoso capítulo 25 de S. Mateus que tem vindo a ser proclamado nos últimos Domingos. É constituído por três parábolas, três intrigas paradoxais sobre a urgência em captar as oportunidades de alegria que a vida oferece e que, por leviandade ou por medo de ser mal sucedidos, desperdiçamos.
São textos simbólicos: dizem uma coisa para significar outra. Devem ser respeitados na sua irredutível alteridade e questionados. A sua interpretação tem de ter esse facto em conta, para não cair no reino da arbitrariedade. Por outro lado, importa distinguir sentido e significação. O sentido existe no texto que exige estudo para ser decifrado. A significação nasce da pergunta: que tem esse texto, essa parábola, a ver comigo e que tenho eu a ver com esse texto, com essa parábola?[v] A significação implica a minha vontade de mudar, de conversão, de não sair da Missa como entrei. Ajuda-me a mudar para o reino da alegria, da vida apaixonada por uma nova semana.
Hoje, a representação simbólica do julgamento de todas as nações não é para julgar nações, mas as acções ou omissões das pessoas. Quem as julga não é a divindade. Quem julga as pessoas são as suas acções de solidariedade ou de falta de solidariedade. Tanto quem foi, como quem não foi solidário não sabia que estava a ter um encontro ou desencontro com o próprio Deus. Deus é o destinatário clandestino do nosso agir solidário sem divinas intenções. A causa do Deus invisível identifica-se com a causa dos que precisam de ser socorridos. Quem socorre ou recusa solidariedade acolhe ou recusa o próprio Filho do Homem.
- Mateus escreveu uma parábola muito atrevida.
[i] Cf. Peter Sloterdijk, A loucura de Deus. Do Combate dos Três Monoteísmos, Relógio D’Água, 2009, pp. 23 e 139
[ii] Cf. António Marujo, 7Margens, 18. Nov. 2020.
[iii] Jo 15, 11; 10, 10.
[iv] Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, Ed.70, Lisboa 1996, p.82.
[v] Daniel Marguerat / Yvan Bourquin, Pour lire les récits bibliques, Cerf, Paris, 1998
in Público 22.11.2020
https://www.publico.pt/2020/11/22/opiniao/opiniao/iremos-tribunal-1939985