LUÍS DE BARREIROS TAVARES
(Org.)
Três poemas inéditos, talvez com um tom surrealista, coligidos do capítulo “Inverno do Verbo” do caderno A Composição da Presença.
“Lá où d’autres proposent des œuvres je ne prétends pas autre chose que de montrer mon esprit.” Antonin Artaud (inscrição no caderno A Composição da Presença).
“Oponho-me a todo o controle exterior sobre as experiências da vida interior.”
André Breton, Légitime Défense (inscrição no caderno Labor Limae)
I
Pensar o percurso até Algés
a algidez do dia as alas de altas árvores o decurso
(discurso) do inverno (interno) a escassez do olhar
Pensar as escamas da imagem da tarde transgredida a tiro
de que o rosto recluso emerge pensar incluso
a rima do amor que me reclamas
Pensar que do tiro retiro meu reino de secular secura e seu uso secreto
Lx. 5-12-71
II
Colijam-se os objectos
que o branco olhar abrange: são o seu abrupto alimento.
Aqui não se atinge o alvo
(ou álveo da memória) somente o sangue que cada signo designa.
Guiado pela imagem o olhar imerge:
ler o seu veludo vivo relê-lo é criar o caule da loucura.
Lx. 3-1-72
III
(Segundo poema sobre a morte)
Este inverno nocivo (inferno) criva
de vivas cicatrizes os corpos
as vozes cobre de furtivas águas antigas
vertidas no metal da memória
Este vivo inverno inerte
cravado nos ombros (obsessivos escombros)
vive-se na fria voz vazia
que se verte em recentes palavras
Porém recuadas ao rumor
aos corredores da memória que promovem
como ardentes ascendentes aves se movem
e morrem
quando sobem à superfície do poema
Lx. 11-2-72
Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até aos 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.