Invenção em larga escala

 

 

ALFREDO SOARES-FERREIRA


Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.


Inventar é um termo estranho, uma vez que tanto quer dizer da capacidade criativa em qualquer arte ou ofício, ou imaginar e fabulizar sobre temas variados, acções que podem conduzir a cenários fantasiosos ou mesmo falsos. A invenção pode ser boa ou perversa, consoante o contexto e a oportunidade, favorável ou não, conforme a interpretação que lhe for outorgada. Mesmo na criação pode nem ter o significado benéfico habitual, uma vez que será sempre de equacionar a utilidade social da coisa inventada. Na vertente da imaginação criativa, pensar em situações vagas ou que não são reais, poderá conduzir a uma invenção em larga escala e, obviamente, com uma intenção na mesma escala. Esta (intenção) sendo analisada como a soma das intenções individuais que, quando alinhadas, resultam em movimentos sociais, políticas públicas ou mudanças culturais.

A contribuição de pensadores, filósofos e outros autores, para compreender este fenómeno do nosso tempo é muito diversificada. Nos anos sessenta do século passado, a filósofa política alemã Hannah Arendt, publica a obra “Verdade e Política”, onde analisa a forma como a mentira pode ser usada como ferramenta política e como a verdade factual é frequentemente sacrificada em favor de narrativas convenientes. Nos anos setenta, é o filósofo e teórico social Michel Foucault a escrever “A Ordem do Discurso“, em que estuda o fenómeno do Poder e o modo como ele vai moldando e controlando o discurso, definindo uma certa tipologia de verdade, essencial para entender a fabricação de narrativas em larga escala. Antes de Foucault, já o filósofo espanhol Ortega y Gasset haveria de equacionar e desenvolver as teses de Nietzsche sobre o designado perspectivismo. Estes três autores partilham, com abordagens diferenciadas, a ideia de que a realidade é moldada por pontos de vista específicos, contextos históricos e condições culturais, desafiando a tese da verdade única e absoluta. Nessa linha, o perspectivismo não é apenas uma crítica ao dogmatismo, mas também um convite ao diálogo e à pluralidade de pensamento. A obra “A Rebelião das Massas” de Ortega y Gasset é assaz paradigmática, primeiro por ter sido publicada em 1930 e, em segundo lugar, pela sua profunda reflexão sobre os desafios da modernidade e ainda pelos alertas que lança sobre os perigos da massificação e da perda de valores culturais e individuais. E tem, nos dias de hoje, a particularidade de uma chamada de atenção para a educação e para a importância de uma liderança intelectual, tidos como antídotos para a mediocridade e a decadência, num mundo cada vez mais dominado pela cultura de massas e pela pobreza de pensamento.

O século XXI introduz-nos no reino da distorção da verdade e mesmo da mentira, ocultando a realidade dos factos. É, de certa forma, uma era de desinformação permanente, de notícias falsas (as chamadas fake news). O primado da manipulação e do cancelamento entroncam na invenção em larga escala, deixando o cidadão permeável e bastante inferiorizado, diminuindo-lhe a capacidade de decisão. O “fenómeno” alastra-se e tem impactos profundos na política, na cultura e nas relações sociais. Particularmente desde o início da operação militar especial da Rússia na Ucrânia, de 2022, intensificou-se na Europa, através de um poderosíssimo aparelho de propaganda, o sentimento russófobo e a tese da demonização da Rússia, proporcionado pelo que foi convencionado designar por “invasão”. Os especialistas militares parecem concordar com o facto de que se a Rússia pretendesse invadir e anexar a Ucrânia tê-lo-ia feito em pouco tempo. E os estudiosos de História e Antropologia, bem como alguns peritos em geopolítica internacional recordam as causas de fundo da intervenção na Ucrânia. É o que faz, por exemplo, o investigador norte-americano especializado em política na Rússia e na Eurásia Gordon M. Hahn, quando refere, em artigo publicado a 13 de Fevereiro de 2023, “…as décadas de expansão da NATO, o ataque da NATO à Sérvia, o reconhecimento ocidental da independência do Kosovo da Sérvia, apesar de uma resolução da ONU estipulando a inviolabilidade territorial da Sérvia, a “promoção da democracia” colorida estimulando a subversão na Ucrânia e noutros estados vizinhos da Rússia, o apoio financeiro e moral ocidental a uma revolução colorida na Rússia, a revolução colorida Maidan de Fevereiro de 2014 apoiada pelo Ocidente…”. Nesse artigo, Hahn lembra ainda a quebra de compromisso dos acordos de Minsk e o incentivo aos grupos neonazis responsáveis pelo massacre de populações civis no Donbass e na Crimeia, “patrocinada” pelo governo ucraniano. A importância deste conflito é determinante na evolução da invenção em larga escala efectuada pelos responsáveis do designado Ocidente no sentido da criação de um ambiente desfavorável à Rússia, com um argumento bastante primário que defende a tese de uma invasão russa à Europa. Argumento que não faz qualquer sentido, nem tem sequer qualquer sustentação razoável e que tem vindo a ser desmontado. Todavia, sabe-se que é muito mais eficaz que a defesa do seu contrário, dado que a “invenção” é directamente proporcional à “intenção”.

O insuspeito economista neoliberal norte-americano Jeffrey Sachs, autor de várias obras de conteúdo crítico e profundo conhecedor das intervenções do seu País no mundo inteiro, tem demonstrado que aquelas intervenções produziram fortes impactos negativos, quer para os países afectados, quer para o que classifica como “estabilidade global”. Apesar destes e outros “avisos”, apesar das últimas intervenções da administração norte-americana para o fim do conflito a Leste, a escalada inventiva continua. A primeira-ministra dinamarquesa Mette Frederiksen, diz que a paz na Ucrânia pode ser “mais perigosa do que a guerra”. O presidente Costa, do dito “conselho europeu”, defende a tese “paz através da força” da UE em relação à Ucrânia. Os desorientados líderes da chamada “união”, órfãos do pai americano, proclamam, juntamente com os ingleses, a guerra total contra a Rússia, propondo investimentos nunca vistos para a “defesa” da Europa. Aparentemente, a melhor defesa para a Europa seria descartar estes arautos da desgraça. A propósito, o historiador, antropólogo, demógrafo e sociólogo francês Emmanuel Todd, afirmou, em entrevista a um periódico italiano em Outubro de 2023: “O resultado desta guerra decidirá o destino da Europa. Se a Rússia for derrotada na Ucrânia, a subordinação da Europa aos americanos durará um século. Se, como acredito, os Estados Unidos forem derrotados, a NATO desintegrar-se-á e a Europa permanecerá livre (…) A histeria russofóbica ocidental, fantasiando sobre o desejo da Rússia de expansão na Europa, é simplesmente risível para um historiador. O choque psicológico que espera os europeus será a percepção de que, afinal, a NATO foi criada não para nos proteger, mas para nos controlar.”

A questão da segurança, na Europa e no Mundo, deve voltar a centrar-se no desarmamento global. O que se tenta desenhar com a corrida ao armamento é, antes pelo contrário, a instalação da insegurança geral.

 


 

Invenção em larga escala – Diário 560