"Essa mudança de pontificado em
2013 – que é a primeira nos tempos modernos após uma renúncia papal –
poderia modificar muitas coisas, e poderia até pôr a Igreja em um estado
de preparação para um novo concílio ecumênico", avalia especialista em
assuntos do Vaticano.
“A decisão de renunciar é
surpreendente, mas não está em contradição com a identidade teológica de
Ratzinger. Pode-se classificar Bento XVI como “teologicamente
conservador”, mas ele está consciente da eclesialidade do ministério papal
– na tradição e no
Vaticano II”, afirma Massimo
Faggioli, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Em sua opinião, ser papa no catolicismo global se tornou uma
“tarefa muito moderna e desafiante, e é provável que um teólogo
conservador a sinta como um fardo insuportável (além das razões
relacionadas à sua saúde)”. Faggioli pontua que em certos aspectos o Concílio Vaticano II veio “cedo demais”, e questões
silenciadas pela Santa Sé, como o papel das mulheres na Igreja, o casamento dos sacerdotes e
a ordenação de homossexuais, devem ser revistas.
Confira a entrevista
IHU On-Line – Sob quais aspectos
deve ser compreendida a renúncia de Bento XVI?
Massimo Faggioli – O papa pode renunciar, e
certamente esse ato não é ilegal. Mas ele também deve ser entendido como
um ato de governo e como uma decisão pessoal do papa, que tem a ver com
seu estado de saúde, mas também com o caos existente no Vaticano e em
algumas áreas do catolicismo. Chama a atenção que Bento XVI tenha
dito que tomou essa decisão sozinho, sem consultar ninguém. Esse é um
elemento muito interessante. Uma decisão tomada pelo papa após uma
consulta com alguém outro teria levantado questões canônicas, mas também
teria sido um sinal de colegialidade na Igreja – e a colegialidade é algo
que foi aprovado pelo Vaticano II, mas jamais chegou a fazer
parte do governo da Igreja, com exceção de alguns poucos casos.
IHU On-Line – Quais foram suas principais
motivações?
Massimo
Faggioli – Paulo VI foi o papa que concluiu o Vaticano II; João Paulo II foi
o último papa que também foi padre conciliar no Vaticano II; Bento XVI é o
último papa que esteve no Vaticano II (como
teólogo, não como bispo). Essa mudança de pontificado em 2013 – que é a
primeira nos tempos modernos após uma renúncia papal – poderia modificar
muitas coisas, e poderia até pôr a Igreja em um estado de preparação para
um novo concílio ecumênico ou colocar em pauta muitas questões que,
durante demasiado tempo, foram consideradas “resolvidas”.
IHU On-Line – Em que sentido a
renúncia do papa e a escolha de um novo pontífice podem representar uma
mudança nos rumos da Igreja Católica?
Massimo
Faggioli – A renúncia é o acontecimento principal, porque nas leis da Igreja
havia um cânone que permitia isso ao papa, mas não dispunha o que
aconteceria depois da renúncia. Nesse sentido, trata-se de uma decisão que
cria um precedente, mas ainda há muitas coisas que não sabemos como irão
se desdobrar, e este é um momento muito delicado. Trata-se de um conclave
excepcional, e não normal. Também é uma situação perigosa, porque o papa
disse que a “Sede vacante” começa em 28 de fevereiro, mas, em certo
sentido, desde seu anúncio em 11 de fevereiro a Sé de Pedro já está
vacante na prática.
IHU On-Line – A renúncia de
Bento XVI ocorre 50 anos depois do Concílio Vaticano II e 600 anos depois
da última renúncia papal. Podemos dizer que se trata do principal
acontecimento no Vaticano nas últimas décadas? Por quê?
Massimo
Faggioli – A decisão de renunciar é surpreendente, mas não está em
contradição com a identidade teológica de Ratzinger.
Pode-se classificar o papa Bento XVI como
“teologicamente conservador”, mas ele está consciente da eclesialidade do
ministério papal – na tradição e no Vaticano II. Suas concepções conservadoras
são coerentes com a renúncia, já que o papa Bento XVI provavelmente
sabia que o ministério papal tinha se tornado algo diferente do que ele
achava que devia ser: exposição excessiva à mídia, excesso de
responsabilidades para com o mundo e a política, excesso de tarefas
administrativas. Ser papa no catolicismo global se tornou uma tarefa muito
moderna e desafiante, e é provável que um teólogo conservador a sinta como
um fardo insuportável (além das razões relacionadas à sua saúde).
IHU On-Line – Como explicar que
um papa, reconhecidamente conservador, tenha tomado uma atitude tão
moderna?
Massimo
Faggioli – A tentativa de Bento XVI não foi exatamente restaurar o
poder da Igreja na sociedade moderna, e sim restaurar o ensinamento
coerente (segundo sua concepção) da Igreja sobre questões centrais. Nesse
aspecto, Joseph Ratzinger nunca
foi ingênuo a ponto de acreditar que pudesse recristianizar um mundo
secular. João Paulo II era
mais confiante nesse sentido; o papa Bento sempre
foi menos “romântico” e mais realista.
IHU On-Line – O senhor considera
que o desafio para o novo pontífice é, de alguma forma, restaurar a
autoridade da Igreja em um mundo contemporâneo? Como fazer isso em uma
sociedade pós-moderna e, em grande parte, secularizada?
Massimo
Faggioli – Para essas questões a Igreja necessita de um momento de debate
conciliar – um concílio ou sínodo que tenha real liberdade para falar.
Esse é um dos pontos da pauta do conclave de 2013. Quanto a essas
questões, há um aspecto de conteúdo do ensino da Igreja, e há um aspecto
de estilo do ensino. Ambos são muito urgentes. Os primeiros assuntos que
são teologicamente menos desafiadores do que outros são a ordenação de viri probati e
o diaconato para mulheres.
IHU On-Line – A igreja tem
ouvido aos sinais dos tempos? Como essa instituição pode dialogar sobre
temáticas como casamento homoafetivo, métodos contraceptivos, fim do
celibato, aborto e ordenação de mulheres, por exemplo?
Massimo
Faggioli – Em muitos aspectos, o Vaticano II ainda não foi implementado, por
exemplo no que diz respeito à colegialidade na Igreja. No tocante a outras
questões, o
Vaticano II veio cedo demais, de modo que
temos de explorar soluções para novas questões sobre as quais o Vaticano II silencia,
tais como o papel das mulheres na Igreja, sacerdotes casados. Uma
abordagem hermenêutica correta do Vaticano II consiste em fazer a ele
perguntas que o Concílio de 1962-1965 pode responder, e não perguntas que
o
Vaticano II não
pode responder.
IHU On-Line – Qual é a
atualidade do Concílio Vaticano II na Igreja Católica frente aos problemas
contemporâneos?
Massimo
Faggioli – Na alocução de 22 de dezembro de 2005, o papa fez uma distinção
entre “hermenêutica da continuidade e reforma” e “hermenêutica da
descontinuidade e ruptura”. Essa alocução foi também uma reação às novas
contribuições para o debate teológico acadêmico, particularmente uma
reação à historicização do Concílio empreendida
pela obra em cinco volumes intitulada História do
Vaticano II, editada
por Alberigo e
pela “Escola de Bolonha” (concluída em 2001 e publicada em sete línguas),
e ao Comentário
teológico do Vaticano II, em cinco volumes, que teve
origem em Tübingen e foi editado porPeter Hünermann (que tinha presenteado ao papa
exemplares dele poucas semanas antes da alocução à Cúria Romana). A
reputação do Vaticano II foi
profundamente afetada pelo papa Bento e pela
alocução de 2005, em especial pelas interpretações simplistas e
ideológicas do Concílio.
Um primeiro elemento visível é a mudança da linguagem usada para falar do Vaticano II nos últimos oito anos. A partir de fins de 2005, um papa, Bento VI, sentiu-se no direito de questionar o que tinha
sido alcançado pelos estudos históricos e teológicos sobre o Vaticano II publicados
pela comunidade científica internacional desde a década de 1980, ao menos.
Por um lado, Bento XVI pôs
fim ao “nominalismo do Vaticano II” típico de João Paulo II –
o Vaticano II usado como cobertura ou manto
para dar legitimidade a muitas coisas que não provinham dele. Por outro
lado, Bento XVI também
começou a remover programaticamente da mensagem proveniente do Vaticano
aquelas “improvisações” feitas por João Paulo II (judaísmo,
islã, inculturação) que tinham permitido aos teólogos católicos não falar
de um repúdio completo do Vaticano II por
parte dos papas pós-conciliares. Por fim, é difícil negar que o movimento
contra a reforma litúrgica do concílio é produto do pontificado de Bento XVI (veja
o motu proprio intitulado Summorum
Pontificum de
7 de julho de 2007 e a nova tradução do missal para o inglês): a “reforma
da reforma litúrgica” nunca foi um problema sob Paulo VI e João Paulo II,
mas se tornou um problema sob Bento XVI.
IHU On-Line – Como analisa os discursos de
Bento XVI quando assumiu, em 2005, e quando anunciou sua renúncia? Tomando
em consideração o Concílio Vaticano II, que leituras podem ser feitas
dessas duas falas?
Massimo
Faggioli – O pontificado foi muito influenciado por esse legado. O papa Bento é um
teólogo neoagostiniano, com uma profunda percepção da diferença entre a
Igreja e o “mundo” numa compreensão metafísica. Ele não acredita que a
Igreja possa e deva ser um agente de transformação social, e essa ideia é
típica de suas concepções sobre a relação entre a Igreja e a política e a
Igreja e a cultura. Nesse aspecto, temos uma diferença profunda entre ele
e seus predecessores Paulo VI e João Paulo II.
IHU On-Line – Como a formação agostiniana do
papa se revelou à frente de seu pontificado?
Massimo
Faggioli – Essa análise é típica de um teólogo neoagostiniano, especialmente
de um teólogo neoagostiniano que se criou na Alemanha nazista e viu o lado
muito perigoso da modernidade. Dito isso, Joseph Ratzinger tem
uma compreensão profunda das contradições da modernidade, especialmente
entre a ideia de modernidade e o acesso à verdade. Só há liberdade na
verdade, e, para o papa Bento,
o que é típico da modernidade é a tentativa de “decidir” o que é a
verdade. Na concepção dele, a verdade é revelada por Deus, e você tem de
entendê-la e aceitá-la, e não decidir a respeito dela. Isso é típico de
suas concepções de modernidade, democracia e mudanças sociais.
Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de História do
Cristianismo no Departamento de Teologia da University of St. Thomas, de
Minnesota, Estados Unidos. Seus livros mais recentes são Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013) e True Reform: Liturgy and
Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012) e, em
espanhol, Historia y evolución de los
movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI, (Madrid: PPC Editorial), 2011.
Segunda, 25 de fevereiro de 2013
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