“Ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de
exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial
da sua missão, se abra a uma situação nova”
Joao Paulo II, Ut unum sint,1995, n.95
Na encíclica Ut unum sint o Papa João Paulo II aludiu a um problema
fundamental mostrando que estava bem consciente. Já Paulo VI havia
manifestado que estava preocupado. Mas nada saiu dessas preocupações que
hoje em dia são preocupações da Igreja inteira. O governo
central da Igreja não funciona bem. Em lugar de adaptar a Igreja ao mundo
atual, paralisa a Igreja no seu passado. Muitas coisas deviam ser
reformadas na Igreja para responder às necessidades dos tempos. Mas a
máquina de governo impede toda mudança. O sistema impede a mudança.
Ninguém tem poder para tomar decisões. O Papa não tem condições para
tomar as decisões necessárias. Eis algumas expressões dessa situação do
governo.
1. A eleição do Papa
Primeiro os eleitores. O sistema atual foi feito quando o Papa fazia
poucas intervenções fora da diocese de Roma e das dioceses vizinhas. Os
cardeais eram o clero de Roma e das cidades vizinhas. Hoje em dia, o Papa
decide tudo o que acontece no mundo inteiro e tem uma grande administração
com milhares de funcionários. O Papa devia ser eleito por uma
representação de todos os continentes. Os cardeais nem sequer
representam as Igrejas dos seus países porque foram escolhidos pelo
próprio Papa e não representam nenhuma Igreja particular.
Se o Papa fosse eleito por uma verdadeira representação da Igreja
universal, teria mais força onde se apoiar contra o poder da Cúria. Agora
ele depende da Cúria. Eleito pela Igreja poderia invocar o peso da Igreja
contra o peso da administração central. Os presidentes das conferencias
episcopais, por exemplo, teriam mais caráter de representatividade. Além
disso, muitos cardeais são funcionários da Cúria e não representam nenhuma
Igreja porque são funcionários da administração.
Em segundo lugar, o modo da eleição. Há dois tipos de eleitores. Há os
cardeais da Cúria. Estes se conhecem e formam círculos secretos. Esses são
os que intrigam para preparar a eleição. Formam partidos e trabalham na
sombra para que o seu partido possa ganhar. O que aconteceu nas últimas
eleições , é edificante Depois, há os cardeais de fora. Esses não se
conhecem, Chegam para o conclave e não se conhecem. Não sabem quais são as
intrigas que estão fazendo os cardeais da Cúria (com os seus
conselheiros!). Em cada país a Conferência episcopal exorta os católicos
para conhecer bem os candidatos e os seus programas de tal maneira que
possam fazer um voto consciente. Mas os cardeais não têm condições de
fazer um voto consciente porque não conhecem os candidatos, nem os seus
programas.
Depois da eleição de João Paulo II perguntamos ao cardeal Silva de
Santiago de Chile porque tinha votado no cardeal polonês. Ele disse: ”Nós
não o conhecíamos, mas disseram-nos que era um bom candidato e então
votamos nele”. Se o paroquiano explicasse assim o seu voto ao seu vigário,
este lhe diria que é um inconsciente.
Sabemos quem foi quem disse que era um bom candidato. Foi o cardeal
Koenig arcebispo de Viena na Áustria. Koenig tinha grande fama de homem de
grande projeção intelectual e de grande prestigio internacional. Mas
estava muito ligado ao Opus Dei que tinha feito uma campanha eleitoral
muito ativa. Sabemos que foi ele, porque ele mesmo o disse antes de
morrer, e disse que estava muito arrependido de ter feito isso. O cardeal
Silva não sabia que o cardeal polonês era adversário do Concílio
Vaticano II.
Os eleitores devem ter tempo para se conhecer e saber quais são os
candidatos apresentados pelos colegas e quais são os programas dos
candidatos. Se isso se exige por eleições comuns, poderia pensar-se que na
Igreja essa exigência de direito natural vale com mais força. Na
prática o que acontece é que os cardeais fazem um voto de confiança,
exatamente o que se denuncia em todas as eleições políticas. O votante não
sabe o que quer o seu candidato. Ainda bem que o povo católico não sabe
como se faz essa eleição, porque ficaria envergonhado. Compreendo que os
bispos guardem silêncio sobre isso. Mas essa situação não pode continuar.
O pior é quando se diz que quem decide a eleição é o Espírito Santo.
quando se sabe muito bem o que aconteceu e não houve nenhum momento de
revelação do Espírito Santo. Porque enganar os católicos como se fossem
todos infantis?
2. A descentralização
Uma administração centralizada inevitavelmente quer defender os seus
poderes e aumentá-los. O que busca a administração central é em primeiro
lugar o seu próprio bem, ou seja, o aumento do seu poder: fazer mais leis,
mais obrigações, mais formulários, mais papéis impressos, mais exigências.
Na Igreja não é diferente. O que busca a administração é assegurar mais
poder. O bem da Igreja é um pretexto. Isso é parte da natureza
humana, e, se todos os funcionários da Cúria fossem santos o problema
continuaria. Seria pior porque se fossem mais santos, queriam trabalhar
mais ainda, e fazer mais imposições ainda. O principio de subsidiariedade
vale para todos os seres humanos e quando um sacerdote ou um bispo é
ordenado a sua natureza humana não muda. Precisa descentralizar: as
nomeações episcopais, o direito canônico, a liturgia, a formação do
clero, a organização do ensino, das obras de caridade e outras
obras. Tudo pode ser organizado, por exemplo, em cada continente ou cada
totalidade cultural. Nos primeiros séculos a Igreja foi organizada em
patriarcados, que eram unidades culturais. A existência dentro da
ortodoxia católica de Igrejas de diversos ritos orientais mostra que isso
pode funcionar muito bem. A centralização atual é o resultado de razões
puramente históricas.
O sistema atual ainda é na Igreja a continuação do colonialismo.
Chegando a Puebla João Paulo II condenou as comunidades de base,
condenou o movimento bíblico, condenou a teologia latino-americana.
Conseqüência: em 30 anos, somente no Brasil, 30 milhões de católicos
deixaram a Igreja católica para aderir a igrejas ou movimentos
pentecostais ou neo pentecostais, conseqüência da pastoral imposta. O Papa
escutou alguns conselheiros que tinham intenções políticas muito claras.
Não procurou saber mais, recorrendo a instâncias mais representativas.
Pensou que o problema era o comunismo e não era o comunismo e ele tinha
possibilidade de receber outras informações. Alguns podiam dar-lhe a
informação de que América Latina não é Polônia e nem sequer é Europa Nós
estávamos aí sabendo o que ia acontecer, mas nada podíamos fazer. O
cardeal dom Aloísio Lorscheider sentiu imediatamente tudo e procurou
consertar, mas não tinha peso suficiente e não era da confiança do Papa.
3.
Um sistema de governo
Um sistema de governo em que uma
pessoa sozinha decide tudo sem que haja debate público e instância
deliberativa, chama-se ditadura. Um sistema em que as verdadeiras
motivações das decisões do governo, são escondidas com certeza não
responde as exigências do direito natural. Os cidadãos têm o direito de
saber quais são os fundamentos das decisões tomadas. Por exemplo, quando
Paulo VI condenou o uso de meios anticoncepcionais artificiais, não se
soube que os cardeais consultados na sua maioria não concordavam, que as
comissões nomeadas pelo Papa para estudar o assunto também não
concordavam. Lembro-me muito bem de ter ouvido os comentários do cardeal
Suenens, que era o meu bispo.
Muito bem. Uma geração depois, o Conselho da Família envia aos
bispos um comunicado em que diz que já não se deve fazer perguntas
às penitentes sobre a a sua prática de limitação de nascimento. Se não se
pode fazer perguntas, é porque não se deve considerar como pecado. O
próprio Alfonso López Trujillo teve que comunicar secretamente essa
revogação implícita da encíclica Humanae Vitae. Mas porque não se disse
publicamente? A maioria dos católicos ainda o ignora, embora não aceite a
condenação. Os católicos não conhecem os métodos da Cúria romana; Não
sabem que nunca se publica a revogação de uma ordem dada anteriormente.
Mas se diz que não se devem fazer perguntas aos penitentes. Até o papado
de Bento XIV no século XVIII, nunca se havia revogado a condenação dos
juros, o que proibia que católicos trabalhassem em bancos. Mas o Papa
disse então aos confessores que já não se deviam fazer perguntas aos
penitentes.
Porque não se disse que agora a autoridade tinha mudado? Por que as
mulheres não podem saber que a Igreja já não condena os meios artificiais
de limitação de nascimentos? Muitas ainda acreditam que a Igreja as segue
condenando e tratando como pecadoras. Essas são práticas de ditaduras Numa
ditadura o governo nunca erra. Nunca reconhece que foi um erro. Na Igreja
só se reconhece depois de quatro séculos. Se houvesse instancias de
deliberação, poderiam ser evitados muitos erros que vêm da precipitação,
criando depois a dificuldade de reconhecer o erro.
Se não se fazem essas reformas, nenhuma outra reforma pastoral será
possível. Tudo depende do centro, tudo depende do papel do Papa. Paulo VI
sabia-o e João Paulo II sabia-o também. Ainda não sabemos o que pensa o
Papa atual. Mas acredito que não deve pensar diferente do seu antecessor.
Não é questão de santidade. O Papa Pio X foi um santo. Mas cometeu
erros colossais em matéria bíblica que explicam uma boa parte dos
problemas atuais da Igreja no meio do mundo! O problema é que o Papa é
homem também e tem os mesmos limites da natureza humana. A sabedoria
humana aprendeu a construir sistemas de governo adaptados à condição
humana. Jesus não definiu nenhum sistema de governo. E não estamos mais
nos tempos de Gregório VII. O problema é que tudo depende de uma pessoa
só!
As reformas podem demorar séculos se não aparece um dia o Papa que toma
a decisão de mudar o modo de exercício do ministério de Pedro. Em
princípio, teria que ser um homem mais jovem. Precisa suprimir esse
preconceito que é melhor um homem já de idade para que não permaneça na
frente tanto tempo. Mas há outra maneira: o Papa pode aplicar-se a si
mesmo a norma dada aos bispos. Antigamente os seres humanos viviam poucos
anos, uma media de uns 30 anos. Hoje em dia a media já atinge 80 anos e
vai subir mais. Não é normal que uma instituição tão complexa tenha que
ser dirigida por um homem com mais de 80 anos de idade.
Tanta gente na Igreja pensa assim! Talvez sejam mais sábios do que eu
pensando que de qualquer maneira nada vai mudar e é melhor conformar-se,
do que gastar energia numa causa perdida de antemão. O que me consola, é
que não estou sozinho. Já há muitas pessoas que estão escrevendo essas
coisas.
Artigo póstumo do Padre JOSE COMBLIN
Considerações publicadas no site da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, em Março de 2011, pouco tempo depois da morte do autor.
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