Idosos em férias

 

 

 

 

 

AIRES GAMEIRO
Foto: Duarte Gomes


Aires GAMEIRO é Irmão de S. João de Deus desde 1948; sacerdote desde 1960, e psicólogo desde 1968; professor universitário, superior-diretor de casas de saúde e da revista Hospitalidade. Foi docente da UCP, do ISCTE e doutros institutos. Doutorado em teologia pastoral da saúde, é membro de vários centros universitários, CEIS20-UC, CLEPUL-UL, SGL, membro honorário da Academia Portuguesa da História. Formador nas áreas da saúde mental, psicologia, alcoologia história da assistência, pastoral da saúde, migrações no país e em várias dezenas de países, é autor de cerca de 50 livros e opúsculos sobre esses temas e de mais de duas centenas de artigos técnicos.


Idosos em férias inter-ativas cá dentro (I)

Vem aí o Dia Internacional do Idoso, 1.10.2020. Não basta insistir no envelhecimento ativo. Os idosos precisam de interatividade para o seu bem-estar. Estas linhas sobre miniférias de tês idosos são apenas um exemplo. No início de setembro praticaram interatividade a partir de Alfaiates. Tarefas de guia, condutor, cronista, cozinheiro, mapista (mapa à mão), tudo previsto e imprevisto em atividade espontânea do “logo se vê”. Fugir a cidades ruidosas e vias rápidas, para ler camadas de história por aldeias e vilas sossegadas, quase “mortas”, ruas de silêncio e vestígios de muitos séculos. De dia contemplavam-se os barrocais graníticos, as espécies arbóreas dos planaltos e das serras até mil, dois mil metros; à noite os astros, a dizer: estamos aqui há milhões de anos, reparem em nós. Por calçadas de granito duros, castelo e vestígios históricos, a dizer: leiam-me; igreja, misericórdia e o seu lar, a lembrar a identidade cristã e a apelar a visitar amigo idoso, quase esquecido regressado do Brasil. Visita, oferta de livro, ao portão, aberto para a foto, por ser em tempo de pandemia. Aldeia de 350 moradores (já foram cerca de 10 mil), possui também a Igreja de Nossa Senhora de Sacaparte, ruinas do convento-hospital a evocar o cuidado aos agonizantes, (ainda haverá agonizantes, hoje?), a caridade hospitaleira de um dos santos patronos dos doentes, S. Camilo de Lélis, e a sua Ordem, extinta em Portugal pelo liberalismo cristianófobo, em 1834. Recinto imenso coroado por cruzeiro a proclamar Cristo. Vagueou-se por aquele Sabugal de dezenas de aldeias com as áreas de carvalhos, castanheiros, pinheiros e flores a enfeitar lameiros e rodear as casas; as Quintas de S. Bartolomeu onde não se viu viva alma; Torre com o busto do ilustre dominicano, Frei João Domingos Fernandes; visita em Aldeia da Ponte um colégio, obras, onde os Irmãos de S. João de Deus, assistiram órfãos pobres 1892-1997; Ruvina para visitar o presidente da Câmara, em sua casa, e troca de livros, sem omitir passagem pelas novas termas do Cró. Na vastidão da Beira Alta e do Riba Coa, a partir do tratado de Alcanizes (1297), sobrepõem-se marcos de identidade nacional, raízes cristãs e marianas em santuários, igrejas e castelos. Mais ao norte, a Praça forte de Almeida chama os anciãos a visitar a original “Casa da Memória”. Entretanto, pelo caminho, um dos guias, narra a suas andanças e encontros com colegas médicos. Uma delas rezava assim: perguntava, à vez, um deles: de quem é que vamos falar mal, hoje? As narrativas de humor não param nos tempos de recreio. Mas, falava eu da Casa da Memória. O que é? Uma Casa nobre da história de Almeida, restaurada a rigor e mobilada por um Professor da História da Arte. Valeu a pena esta novidade na Praça Forte. Tinha cavalariça para 12 cavalos, sala de trono (!), capelinha, esconderijo… O cronista do grupo repetiu o gesto de oferecer o seu livro, Mensagens de Quarentena, ao amigo, criador deste projeto cultural, Augusto Moutinho Borges.

O guia-mor teimou que haveria atividade fora. A famosíssima “Nuestra Señora da Penha de Francia” em pináculo de 1800 metros esperava a nossa visita, a uns 80 kms. Cenário de maravilha, de sol sem nuvens, a deixar ver, do miradoiro, cordilheiras da serra da Estrela a Ávila. Convite ao enlevo pelas alturas e abóbada celeste em que Nossa Senhora reina sobre os seus territórios, desde que foi encontrada ali a sua imagem por Simão Vela em 1434, e os protege apesar de tantas de guerras e pandemias da natureza. No cimo, capela da imagem aparecida, igreja, mini-mosteiro, hotel, restaurante e cafetaria. Dezenas de turistas jogavam à defesa contra o virus: põe máscara, tira máscara, mantém distância! À imagem de Maria acendem velas e rezam, talvez a pedir graças de eternidade. Conta-se uma aflição: numa das subidas àquela montanha abençoada: inesperadamente, disse o contador, um nevão, sem avisar, quase ao cimo, impedia o carro de avançar e de recuar. Valeu o acolhimento “quente”, no edifício da TV e o socorro de limpa neves. Na descida faz-se piquenique saboroso junto a fonte, antes de visitar, ali perto, a cidade típica de La Alberca, famosa por ter nas ruas um porco, a criar para a festa anual (só vi o de pedra); e dezenas de lojas cheias de presuntos de pata negra. Estranha cidade, original pelas suas arcadas e pelas suas paredes e sacadas de pedra e madeira de carvalho e castanho. Na igreja medieval românica, a Virgem Maria e o altar acolhem as orações de alguns cristãos. Fotos na praça do cruzeiro e do porco, e, já pelas estradas de regresso, contam-se mais narrativas inter-ativas autobiográficas, ao desafio, sobre sítios visitados por estes idosos: Índia, Egito, Coreia, Austrália, Brasil… Voltamos com mais leituras ativas e recordações num segundo apontamento

  Riba Coa, 1-3.09.2020/ Aires Gameiro


 Idosos em leituras de portugalidade cá dentro (II)

Esperava-nos, para o dia seguinte, a cidade de troncos e contos, trancada por muralhas, chamada Trancoso. Trancoso pede meças a Alfaiates como cidade de histórias e antecedentes de Portugal. A incursão levou os gerontes para o centro histórico; sentaram-se junto à árvore de grosso tronco e “idosa” para foto; visitam o túmulo do profeta Bandarra na matriz, a ombrear com outro profeta,  Padre António Vieira. Sim, o da estátua que em Lisboa quiseram danificar por querelas racistas em que a direita instrumentaliza a esquerda. O túmulo do Bandarra lá está na Igreja de São Pedro, a qual tem ao seu lado a da Misericórdia. Mas em Trancoso ocorreu um casamento real em 1282 de D. Diniz com D.Isabel, ainda mais famoso que o realizado em Alfaiates de D. Beatriz de Castela com o Rei Afonso XI de Castela, em 1328. A visita ao Castelo de Trancoso revelou uma curiosa originalidade: em cada degrau de aproximação lá estavam narrados os factos essenciais de cada época desde os tempos cristãos visigóticos e os mouros até ao século XX. A visita fez lembrar “Colóquio sobre Profetismo: de Bandarra a Vieira, Trancoso, 16 de Maio de 2008” em que um do grupo apresentou “Profecia em S. João de Deus”.

Os velhotes queriam distrair-se e aprender, sem se esgotarem. Com devidas cautelas tiveram almoço ligeiro no restaurante do museu e logo rumaram para o santuário-mãe de tantos outros, em vários continentes: Nossa Senhora da Lapa que o cientista Fernando Carvalho Rodrigues divulgou no livro “Convoquem a alma”. Bastantes peregrinos, não muitos devido à pandemia que não permitia o acesso à fenda da Lapa que a lenda tornou juiz dos salvos e dos condenados: passa, salvo; gordo demais, não passa, condenado. A tradição lendária do santuário é bonita e vai até aos tempos de ocupação dos mouros e libertação pelos cristãos: Conta a cura de menina muda que gritou a deter a mãe a queimar a imagem que ela tinha achado e guardado.

Chama-nos o vale do Douro, não tanto pelo vinho, mas pelos socalcos de vinhas a perder de vista. Os êxtases dos velhotes repetem-se desde Penedono, S. João da Pesqueira, Tabuaço, Pinhão, Régua… Do carro fresco, gozava-se o espetáculo de colinas e mais colinas, dobradas e sobrepostas, sem fim, com miríadas de socalcos de parreiras verdejantes, semeadas de casas, quintas e adegas, a matizar de brancos e coloridos o terreno de xisto que reflete o calor que amadurece as castas de uvas e as transforma em mostos variados. Virão a ser o néctar do vinho do Porto É o vale xistoso do rio Douro que lhe dá qualidade. Fora do carro, porém, Pinhão e Régua são fornos de mais de 35 graus a dizer: não se demorem, vão, vão! Cruzeiros, só um barco subia, pachorrento, ao lado de dois parados, à espera de ordens do coronavírus. Fomos pedir a Nossa Senhora dos Remédios que nos remediasse desta pandemia, agora que Lamego se animava na novena da sua festa, vestida de gala, mas pouco frequentada. Só umas feiras de “cacaria” artesanal, de artigos utilitários, roupas de remediar, e pouca gente no recanto da maquinaria de entreter. Poucas crianças e poucos forasteiros, escadaria santa quase vazia. O covid-19 aconselha-nos noite de descanso no agradável “Cerrado”. O dia seguinte seria de mais festa, e, para nós, oportunidade de dar um salto pelas montanhas acima à procura de Cárquere, na rota do românico, onde visitámos o mosteiro-santuário relacionado com o lendário início do reino portucalense, e não já só Lusitânia com a capital em Mérida. Aquela capelinha (mausoleu dos Resendes) teria sido a da cura das perninhas do bebé D. Afonso Henriques introduzido pela fresta; ter-se-iam endireitado. Segundo outra versão, Egas Moniz teria trocado o bebé Afonso pelo bebé Moniz, seu filho escorreito, e assim lhe dar, a este, o trono do reino que ia começar…Haverá alguma história na lenda de Nossa Senhora de Cárquere? Respondam os sábios. O mosteiro está em obras por mais de um milhão para se abrir ao turismo. Na Igreja românica (paroquial) descobriram frescos medievais visíveis ao deslisar os retábulos dos altares laterais. Em cinco dias, os três subiram aos cumes da Rainha do Céu e da terra; desceram ao rio do vinho, peregrinaram a santuários, admiraram campos e arvoredos, rebanhos de ovinos e bovinos, gente de férias e de trabalho. Começaram com máscara por um lar e o cronista ia visitar mais quatro a seguir; um deles, com 40 anos, no adro de S. Simão de Litém onde celebrou missa campal com cerca de 150 cristãos praticantes. Foram férias a ler muitos níveis de sentido e agora, terminadas em retiro, em Fátima, sobre comunidades lideradas pelo Espírito; e visitas a mais amigos em dois lares de idosos e mais prendas de livros.

 Fátima, 7-12 de setembro de 2020
 Aires Gameiro