“Viver é conhecer” constitui, do ponto de vista gnoseológico, a premissa fundamental de uma epistemologia de cariz biológico que tome em consideração a natureza autopoiética da vida. Em “De Maquinas y Seres Vivos”, o texto fundacional de Maturana e Varela relativo à autopoiesis, as máquinas autopoiéticas, os seres vivos, são definidas como unidades que
“continuamente especificam e produzem a sua própria organização através da produção dos seus próprios componentes, debaixo de condições de contínua perturbação e compensação dessas perturbações (produção de componentes). Podemos dizer, então, que uma máquina autopoiética é um sistema homeostático que tem a sua própria organização como variável que mantém constante” (1973: 18).
O que isto quer significar é que a vida, no acto mesmo de se constituir e consolidar, produz os seus próprios componentes como resposta a perturbações do meio em ordem à manutenção de si mesmo como sistema vivo, distinto do meio. De facto, as mudanças internas, embora despoletadas, ou engatilhadas, pelo meio, têm por fim, apenas e só, a conservação da organização ou sistema de produção de si mesmo. Mais especificamente, podemos dizer que as máquinas ou sistemas autopoiéticos são máquinas que transformam as perturbações em alimento de si mesmo, de tal modo que o seu produto é a sua própria organização. Isto tem o efeito de que os “movimentos” de reajuste interno em ordem à resposta a elementos perturbantes do meio, ou entorno, podem ser vistos como conduta reflexa relativamente a esse meio. Mais especificamente, os reajustes internos em ordem à manutenção da organização autopoiética por virtude de perturbações externas podem ser vistos, por um observador externo, como mecanismos de representação dessa perturbação. No entanto, as coisas não ocorrem assim. Em virtude dos mecanismos de sustentação autopoiética os sistemas autopoiéticos funcionam com determinação estrutural e clausura operacional. Em virtude da sua determinação estrutural os sistemas autopoiéticos funcionam nos termos daquilo que lhe é determinado pelo modo específico como se organizam as relações entre os seus componentes, pelo que é esse modo específico, ou essa dinâmica, de funcionar que determina o modo pelo qual as perturbações externas são compensadas através de reajustes. Por sua vez, em virtude da clausura operacional os sistemas autopoiéticos são estruturalmente fechados, embora energética e materialmente abertos, e estão desenhados de tal modo que quaisquer que sejam as perturbações do sistema as mudanças produzidas manifestam-se sempre em termos de outras mudanças no interior do próprio sistema em ordem à manutenção da constância das relações internas entre os componentes. Isto é o que acontece, em sentido estrito, com o sistema nervoso (como veremos mais à frente), embora o sistema nervoso não possa ser considerado, em sentido absoluto, um sistema autopoiético, pelo menos de primeira ordem (1). Assim sendo, qualquer homologia entre a topografia, ou a conduta observada, do sistema e o meio ambiente, ou a ordem das perturbações externas, não pode ser entendida em termos de representação do meio no sistema (o que constitui a máxima adaptacionista clássica) mas antes o efeito da plasticidade ontogenética do sistema, ocorrida através de uma deriva de codeterminação entre o sistema e o meio. Isto é assim porque um sistema autopoiético, como já vimos, não funciona em termos de abertura operacional susceptível de processar inputs informacionais (que seriam transformados em outputs conductuais) (2). O que está em causa é a ideia segundo a qual o meio ambiente do sistema despoleta as transformações e actualizações necessárias à manutenção da identidade e, portanto, da sobrevivência, do sistema, mas não especifica a natureza ou a direcção dessas transformações. Para utilizarmos uma distinção conhecida, poderíamos dizer que o meio ambiente é a causa (se bem que a ideia de causalidade linear também deva, aqui, ser questionada) mas não a razão das reestruturações internas do sistema.
O primeiro mandamento de um sistema autopoiético é a manutenção da sua identidade enquanto organização, sendo que o domínio das interacções em que um sistema autopoiético é capaz de manter a sua identidade através da contínua redefinição de si mesmo, por meio de contínuas reformulação estruturais, em resposta às perturbações do ambiente, é o seu domínio cognoscitivo. Este domínio pode chamar-se assim (cognoscitivo) porque constitui um domínio conductual que, do ponto de vista do observador, se pode constituir como um domínio de descrições. Deste ponto de vista, então, a conduta do sistema constitui o seu modo de conhecer ou de especificar as relações possíveis com o ambiente, aquelas relações em que são possíveis compensações para as perturbações. Assim sendo, “toda a conduta é expressão de conhecimento (compensação de perturbações) e todo o conhecimento é conduta descritiva” (Maturana e Varela, 1973: 87). Viver será, então, transformar perturbações externas em conduta, sendo que esse operar constitui um domínio cognoscitivo susceptível de ser descrito como detendo sentido. Piaget, aliás, coincide integralmente com Maturana e Varela no seu projecto de biologização do conhecimento:
“Começando pelo seu sentido geral devemos notar primeiro que não é contraditório considerar as funções cognitivas como sendo simultaneamente uma resultante ou um reflexo das auto-regulações orgânicas e como um órgão diferenciado que reciprocamente as determina no campo das trocas com o meio” (Piaget, 1978: 37).
Esta é mesmo a primeira tese da obra magna de Piaget, “Biologia e Conhecimento”, para quem e pela qual o conhecimento reflecte a “organização auto-reguladora da vida”. Piaget, aliás, é suficientemente taxativo, na sua habitual clareza: “as funções cognitivas reflectem os mecanismos essenciais da auto-regulação orgânica” (Ibidem, 38). O ponto de vista de Piaget é, então, o de uma imbricação íntima entre o conhecer e o mecanismo biológico, pelo que o “sujeito” “penetra” no “objecto” com o seu organismo, até ao ponto de impossibilitar uma disjunção entre ambos (sujeito e objecto gnoseológicos), fazendo reverter integralmente aquele dualismo inicial (3).
Como se especificará mais à frente, poder-se-á dizer, do ponto de vista do observador, que os sistemas autopoiéticos, ou os sistemas orgânicos, do ponto de vista do seu funcionamento, imbricam biologia e cognição, transformam desordem em ordem ou ruído em sentido, na medida em que aquilo que são elementos perturbadores do ponto de vista do sistema são, a posteriori da sua resposta estrutural, transformados em conduta. Assim, quando se fala no sistema nervoso como um sistema de processamento de informação, está-se quase sempre a esquecer o carácter sistemicamente determinado dessa computação, que impede qualquer tipo de programa representacionista. Justamente, no entanto, e tendo em conta a etimologia da palavra computar (cum-putare. Em latim putare significa considerar e cum, as coisas em conjunto), talvez se pudesse dizer que as unidades autopoiéticas se computam a si mesmas na medida que reagem às perturbações do entorno como sistemas holísticos e autorreferenciais de significado, em que cada mudança numa parte do sistema acarreta sempre reordenações nalguma ou na totalidade das outras partes.
Mais estritamente, vale a pena chamar aqui à colação um texto seminal de Heinz von Foerster, em que este demonstra de modo claro que “o princípio da computação recursiva está na base de todo o processo de conhecimento e da vida mesma” (1998: 44), já que os sistemas sensoriais
“são cegos à qualidade da excitação e respondem unicamente à quantidade daquela. Isto é assombroso mas não deve surpreender-nos, já que, ‘ali fora’, efectivamente, não há luz nem calor, só existem ondas electromagnéticas; tão pouco há, ‘ali fora’, som ou música, só existem flutuações periódicas da pressão de ar; ‘ali fora’ não há calor nem frio, só existem moléculas que se movem com maior ou menos energia cinética média, e por aí adiante. Finalmente, ‘ali fora’ não há, com toda a certeza, dor” (Ibidem, 42).
Esta indiferenciação qualitativa do mundo “externo” (que não se apresenta, de facto, como mundo “externo”, para o sistema) é aquilo a que Heinz von Foerster chama “princípio da codificação não diferenciada”. A sua proposição (que o próprio estima como escandalosa) é, então, a de que o conhecimento consiste na computação de quantidades sensoriais qualitativamente indiferenciadas em ordem a uma “‘homeostáse cognoscitiva’: ‘o sistema nervoso está organizado (ou organiza-se a si mesmo) de maneira que computa uma realidade estável’” (Ibidem, p. 54). O que aqui está em causa é pois, como nos assinala, von Foerster, um tipo de conhecimento, o conhecimento próprio do vivo, que “regulamente a sua própria regulamentação” e em que a desregulamentação equivale à morte do sistema, à quebra da sua identidade organizacional e à sua provável redefinição sistémica em novos termos que não os termos de um sistema autopoiético.
A tese desta secção é de que a vida envolve necessariamente o conhecimento, de que o acto de se auto-sustentar através da computação de si mesmo a partir de perturbações externas, produzindo, correlativamente, conduta, a que um observador atribui sentido, é a essência mesma do conhecer. Sem esta dobragem permanente de si sobre si, produzindo-se, o vivo não é capaz de manter a sua organização autopoiética e desintegra-se. Veremos, a seguir, que viver, conhecendo, é, no início, uma função identitária, ou seja, um movimento que tem por “objectivo” auto-constituir-se, distinguindo o si do não si. Veremos, então, como a autopoiesis do vivo se cruza com a construção da individualidade enquanto unidade sistémica diferenciada do ambiente.
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(1) O sistema nervoso não pode ser considerado um sistema autopoiético de primeira ordem porquanto lhe falta a capacidade de produzir os seus próprios componentes, ou seja, as células neuronais. Pode ser entendido, porém, como um sistema autopoiético de segunda ordem, já que coordena sistemas autopoiéticos de primeira ordem.
(2) Uma das questões que se pode pôr relativamente à diferença entre sistemas operacionalmente fechados e sistemas abertos diz respeito à razoabilidade da distinção entre input e perturbação. De facto, aparentemente, poder-se-á pensar que um input informacional pode funcionar como uma perturbação para determinada estrutura sistémica. No entanto, esta diferença é, do ponto de vista da biologia do conhecimento, estratégica. Enquanto um input especifica uma transformação sistémica, uma perturbação, pelo contrário, não especifica o “agente”, i.e., não tem em conta o seu efeito sobre a estrutura da unidade sistémica. Como nos refere Varela, “um input faz parte integrante da definição de uma unidade. Uma perturbação embora possa estar acoplada a uma unidade não faz parte da sua definição. Os diversos modos como uma perturbação pode ter lugar são em número indefinido. Um input dado não pode ter lugar senão de modo específico” (1989: 192).
(3) A natureza mais ou menos objectivista do pensamento de Piaget é, ainda, razão de grandes discordâncias. Mesmo Glasersfeld tem hesitações na sua interpretação, ora lendo-o como um “construtivista radical” avesso a qualquer tipo de realismo ou dualismo ontológico (1996a), ora confessando que “amiúde, tem-se a impressão de que, apesar das suas importantes contribuições (de Piaget) para o construtivismo, tem todavia uma ânsia de realismo metafísico” (Glasersfeld, 1998a: 26). Já Maria Manuel Araújo Jorge, não só na sua tese de doutoramento mas também na introdução à edição portuguesa de “Biologia e Conhecimento”, atesta a favor, na sua interpretação de Piaget, da “indubitável existência do objecto”, entendido este, embora, “como um limite no sentido matemático do termo” (Jorge in Piaget, 1987 e Jorge, 1995); já Ceruti (1995) aproxima-se, na interpretação piagetiana, do construtivismo radical, ao sustentar a ideia de acomodação como resultado de uma co-evolução entre o homem e o mundo, inspirado directamente no paradigma enactista enunciado particularmente em Varela et al, 1991, onde curiosamente, é defendida a tese de que Piaget, bom grado os seus esforços construtivistas, parece estar ainda excessivamente fascinado pelo objecto. Mas, independentemente da polémica quase irresolúvel acerca do realismo ou do construtivismo radical de Piaget (o que não deixa de ser natural num autor em que foram recenseados, segundo Glasersfeld, 1232 títulos), é impossível não referir os imensos paralelismos entre a sua obra e o paradigma construtivista dos autores que são centrais neste trabalho que, aliás, o invocam de modo reiterado. Queria aqui assinalar no entanto, e muito particularmente, o paralelismo entre a concepção piagetiana, que Piaget define como uma terceira-via entre o Lamarckismo e o Mutacionismo, e que diz respeito, portanto, à relação entre os factores endógenos e exógenos na constituição dos organismos vivos e a concepção autopoiética do vivo de Maturana e Varela, conforme a temos vindo a definir. Piaget é bastante explícito em “Biologia e Conhecimento” e, como nos lembra Ceruti, é, neste assunto, directamente devedor do pensamento de Conrad Waddington, que acentua e desenvolve particularmente o carácter sistémico do sistema genético, de modo muito similar ao que fazem Maturana e Varela a propósito da célula ou, mais exacta e amplamente, a propósito dos sistemas autopoiéticos. O problema deste paralelismo é o problema já enunciado atrás. Quando Piaget e Waddington falam em interacção com o meio ambiente, de que tipo de interacção falam? Em interacção informativa (de tipo representativo, postulando portanto o realismo, como o “deseja” Araújo Jorge) ou apenas em perturbação do sistema, como por vezes parecem fazer crer, e como o defendem, Maturana e Varela, para o funcionamento efectivo dos sistemas vivos? A opção deste trabalho vai, naturalmente, para esta segunda interpretação. |