O modo, talvez o mais simples, de apresentar o problema que aqui nos trás, será o de o apresentar sob a forma interrogativa, recorrendo ao “dilema de James”: o que é que permanece de mim na corrente da consciência? O que é que, na consciência, constitui o que eusou e que me “solidifica”, em contraposição ao que continuamente vou deixando de ser? O meu problema será então, para utilizar a expressão meridianamente clara de António Damásio, o problema da constituição “do sentido da existência de um proprietário e um espectador para esse filme” que é o filme da consciência (Damásio, 2000: 30), o sentido de um si que permanece na corrente evanescente da consciência, sabe que essa corrente corre e que lhe dá uma ordem e um sentido. Este problema é comummente tratado como o problema do self. O self será então o autor, ou, pelo menos, o espectador, ou o protagonista, consciente, do filme na consciência. Para simplificar, direi que self diz respeito ao problema da autoconsciência, da consciência da consciência, portanto.
Para alguns autores, porém, o problema do self, ou do si, não é ainda o problema da identidade pessoal. É o que acontece com António Damásio. Para Damásio, enquanto a identidade pessoal, ou a pessoalidade, é um exclusivo humano, pelo contrário, o sentido de si, a autoconsciência, não. A autoconsciência e a capacidade de planear intencionalmente o futuro à luz do passado (constituindo-se desse modo uma autobiografia) são partilhadas por humanos e não humanos, como por exemplo, os bonobo e até certos cães: “Certos primatas, como os chimpanzés bonobo, têm um si autobiográfico e estou disposto a apostar que o mesmo se passa com alguns cães com quem me dou” (Ibidem, 230). Esta capacidade de dirigir a atenção para estados mentais internos e de lhes dar sentido (que não tem que ser linguístico) não é, pois, segundo Damásio, um exclusivo dos humanos. Defendo, noutro local que, deste modo, Damásio não estabelece uma fronteira clara entre o humano e o não humano (Teixeira, 2002), o que cria tantos problemas como aqueles que resolve.
A minha proposta será, então, a de que o que distingue o humano do não humano é, ao contrário da proposta de Damásio, esta peculiar identidade entre o self, ou o si, e a identidade pessoal. No humano, o self, ou o si (que aqui serão usados indistintamente), tem que se actualizar numa configuração identitária particular, pois é isso que o distingue do não humano. A consciência de si, no humano, é a consciência de ser algo pessoalmente determinado. É essa configuração identitária que constitui o si humano, sem o que estaremos na presença de um si meramente somático ou orgânico, que tem pouco a dizer sobre o aquilo que é especificamente humano e que, de qualquer modo, não se diferencia, autoconscientemente, do não-si. Ou seja, não há si especificamente humano, ou self, sem identidade pessoal, por mais rudimentar que ela seja, como acontece no caso da identidade infantil.
Talvez a confusão à volta do “conteúdo” semântico do termo si, ou self, possa ser esclarecido, ou clarificado, aceitando o princípio segundo o qual se podem pensar várias modalidades, ou níveis, de si, como, aliás, também o fazem António Damásio ou William James (1). Assim, seguindo a tipologia de Francisco Varela, se procurarmos aquelas situações em que o para si mesmo (pour-soi) aparece e se constitui, poderemos discernir pelos menos cinco “si mesmo regionais”: “1) uma unidade mínima ou celular; 2) um ser corpóreo com a sua base imunológica; 3) um si mesmo perceptuo-motor associado à conduta animal; 4) um ‘eu’ sócio-linguístico de subjectividade e 5) o colectivo social composto pela totalidade das multi-individualidades” (2000: 79).
O que aqui me interessará será o si mesmo enquanto “‘eu’ sócio-linguístico de subjectividade”. Repare-se que, para Francisco Varela, a subjectividade, ou seja, a capacidade de atendermos intencionalmente aos nossos estados internos, é sócio-linguística. Ora, não é isso o que acontece, por exemplo, e mais uma vez, com Damásio, para quem a subjectividade, a autoconsciência, dispensa a linguagem.
Apresentada esta tese inicial (a defender e a sustentar mais à frente), outro modo, então, de colocar o problema do self e, correlativamente, da identidade pessoal, é perguntar pelo que é que, em mim, me é próprio, particular, essencial, para lá da contingência das minhas relações sociais? O que é que faz com que eu seja eu e não outro ou outros? Qual é minha diferença específica? Este é, em grande parte, o problema a que George Herbert Mead tenta responder (insatisfeito com as respostas de James). Para Mead o self constitui-se como uma unidade dual de um “eu” e um “mim”. Pelo “eu” o self individua-se, pelo “mim” o self socializa-se. Estes dois pólos são operativamente independentes mas referem-se necessariamente um ao outro (Mead: 1999). Diferentemente de James, no entanto, Mead vai pôr o acento tónico da sua investigação e das suas propostas não tanto na subjectivação espiritual do self mas na sua capacidade de introjectar os valores e as regras sociais, sem o que o self não pode constituir-se. Assim, a minha diferença específica resulta de um processo holístico de significação de si em que há um outro generalizado contra o qual eu reajo e pelo qual eu me constituo, através de uma circularidade necessária, em que nem o outro generalizado nem a reacção se podem dispensar. O eu é, de algum modo, a reacção visceral do corpo ao eu generalizado (ao ‘mim’), numa curiosa aproximação à tese, a defender mais à frente, segundo a qual o si mesmo se constitui através de uma modulação de um universal narrativo por parte do corpo: “O ‘eu’ é a reacção do organismo às atitudes dos outros; o ‘mim’ é a série de atitudes organizadas dos outros, que eu mesmo adopto. As atitudes dos outros constituem o ‘mim’ organizado e, logo, eu reajo contra elas como um ‘eu’” (Mead, 1999: 202).
Temos, então, que o problema da identidade pessoal, se pode dividir, ou, mais exactamente, subdividir, em várias abordagens ou perspectivas. A primeira delas diria respeito à consciência de mim, a uma espécie de consciência monadológica, de tipo cartesiano ou leibniziano. Eu sou quereria dizer, aqui, ter uma pulsão interna de mim, autorreferencial, que dispensa o mundo. Mas, eu sou, num segundo tempo, quer dizer, também, que eu não sou algo, ao qual me refiro (não sou, por exemplo, res extensa). Ou seja, de mim eu vou até ao outro. Não que o movimento seja este, obrigatória e geneticamente, de mim ao outro. Mas a verdade é que a referência de mim a mim é sempre um passo (à frente ou atrás) num movimento de externalização e diferenciação.
O problema do si não é só, porém, um problema psíquico, um problema do universo psí, mas, mais amplamente, um problema marcadamente ontológico e, claro, epistemológico. E isto é assim não só porque a emergência de um si pessoal nos obriga à consideração epistemológica do um novo objecto (de um novo ser), mas, também, porque conforme o modo como eu decida responder àquelas perguntas diferirão as minhas respostas (e as minha perguntas) sobre, como diria Merlau Ponty, o “estofo” do mundo. Ver-se-á, então, como todo o conhecimento do mundo é um conhecimento de si ou, mais exactamente, uma construção de si e, logo, uma construção do mundo. E isto é assim porque, na medida em que todo o conhecimento constitui uma experiência, os seres humanos (e os outros seres vivos) não podem alienar-se de si no acto de conhecer. Pelo contrário, e aceitando os aforismos de Maturana e Varela segundo os quais “todo o fazer é conhecer e todo o conhecer é fazer” e “tudo que é dito é dito por alguém” (Maturana e Varela, 1990: 21), ver-se-á que a construção de si, ou da identidade pessoal, configurará o modo pelo qual se tem acesso à realidade, sendo que a informação sobre o mundo consistirá sempre num constructo que dirá tanto sobre o mundo como sobre o si mesmo. Mais simplesmente, pode dizer-se que qualquer concepção do mundo carrega sempre consigo uma concepção de si e que, inversamente, qualquer concepção de si envolve uma concepção do mundo. De facto, como nos diz Vittorio Guidano, inspirado em Maturana “qualquer observação – longe de ser ‘externa’ e, portanto, ‘objectiva’ – é auto-referencial. Sempre se reflecte a si mesma, quer dizer, à ordem perceptiva em que se baseia, mais que às qualidades intrínsecas do objecto percebido” (Guidano, 1994: 16). O que aqui queremos salientar é a vinculação íntima entre a construção de si e a construção do mundo, através de uma circularidade virtuosa.
Assim sendo, um problema adjacente ao da natureza ontológica do si (e que, de facto, o constitui) é o problema epistemológico, o de saber como é que aquilo que eu sou vem a ser, ou, claro, como é que eu posso não ser, aceitando, pelo menos como hipótese teórica virtual e contra toda a evidencia cartesiana, a possibilidade de que, afinal, eu não seja ou que, nas palavras estimulantes de Miguel Gonçalves, a construção da identidade pessoal aconteça melhor e mais sadiamente através de um processo de autodesconhecimento (Gonçalves, 1995), numa utilização invertida da máxima socrática, “Conhece-te a ti mesmo”.
Há, no entanto, quem não veja neste problema senão uma variante do problema, bem mais velho, do uno (ou da permanência) e do múltiplo (a da mudança), quer dizer, uma variante do combate entre Parménides e Heráclito, sendo que o uno configuraria o campo do essencialismo e da reificação do si e da identidade e o múltiplo configuraria o campo do construtivismo radical e do irrealismo, de que o Construccionismo Social seria o paradigma contemporaneamente dominante.
Vendo bem, o problema até poderá ser o mesmo, mas as soluções contemporaneamente propostas são claramente novas. Desde logo, ver-se-á como a biologia pode irromper na construção do si, sem que isso signifique, como o propõe António Damásio, uma reducionismo biológico. Pelo contrário, a minha proposta, muito em particular, será a de tematizar a natureza e a construção do si a partir da biologia, mas de um modo que assume radicalmente a disjunção entre a fisiologia e a identidade pessoal, ou, se quisermos, a fisiologia e a humanidade, o homo sapiens sapiens e o humano (que Maturana identifica como homo sapiens amans). Uma solução anti-reducionista, portanto, no que coincidirei integralmente com Maturana, para quem o problema do si e da identidade pessoal não é um problema do domínio da biologia e, portanto, da autopoiesis entendida enquanto domínio estrito do vivo. Não que o humano dispense o biológico ou que se institua como tal em virtude de um plus essencialista e ou espiritualista. Mais simplesmente, direi que a identidade pessoal que institui o humano se estabelece no domínio do relacional, quer dizer, num domínio operacional diferenciado e irredutível a qualquer domínio fisiológico, embora o fisiológico seja necessário para que o relacional possa operar.
Arriscando um pouco (ou um muito), no entanto, tentar-se-á extrapolar o conceito de autopoiesis (nascido da biologia) para o domínio do não biológico: o domínio do si e da identidade da pessoal, seguindo neste particular Niklas Luhmann. O objectivo não é, pois, o de introduzir um novo movimento de reducionismo biológico, mas o de estender o conceito de autopoiesis a um domínio em que, originalmente, ele não foi utilizado. A ideia é mostrar como é que a manutenção e constituição do sentido de si têm afinidades funcionais com a biologia e com a organização autopoiética, agora não num domínio molecular, mas num domínio de produção de sentido, em que é o sentido o substracto permanente de actualização e manutenção autopoiética. Propor-se-á, então, que o si mesmo se define como uma máquina psíquica autopoiética.
Este é, no entanto, um projecto não isento de dificuldades. Maturana e Varela, em particular, desconfiam deste tipo de projectos de extensibilidade do conceito autopoiesis para fora da biologia. Mas a verdade é que não o recusam completamente. Francisco Varela, por exemplo, num prefácio a “De Máquinas y Seres Vivos”, escrito em 1984, intitulado “Vinte Anos Depois”, depois de criticar aquilo que ele chama “uma utilização literal ou estrita da ideia” (de autopoiesis) fora do domínio da biologia, aceita uma “utilização por continuidade”, em que se “permite ver que o fenómeno interpretativo é contínuo desde a sua origem até à sua manifestação humana” (1998: 51-52). O meu projecto será, em parte substancial, esse; o de mostrar como se pode entender a constituição e a manutenção da identidade pessoal através de um processo de continua re-actualização interpretativa do si em ordem à sua manutenção.
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