Hopkins Forest, de Yves Bonnefoy

 

 

 

 

 

LUÍS SERRANO
Tradução 


Yves Bonnefoy nasceu na cidade francesa de Tours em 24 de Junho de 1923 e faleceu em Paris a 01 de Julho de 2016. Entre as obras de Bonnefoy, citem-se a título de exemplo: Du mouvement et de l’immobilité de Douve (1953), Hier régnant désert (1958), Pierre écrite (1965), L’Arrière-pays (1972), Dans le leurre du seuil (1975), Rue Traversière (1977), Ce qui fut sans lumière (1987), La vie errante (1993), Les Planches courbes (2001). Para além das obras de poesia, é autor de numerosos ensaios e traduções, nomeadamente de Shakespeare (Hamlet, O Rei Lear, Romeu e Julieta, Macbeth, A Tempestade, António e Cleópatra, e  poemas do mesmo autor). Toda a sua obra se encontra publicada em  Éditions Gallimard (nrf).


Luís Serrano nasceu na cidade de Évora (Portugal) em 1938. Exerceu a docência universitária até à sua aposentação no domínio das ciências da terra. Coordenou a actividade cultural aberta à comunidade na Universidade de Aveiro (1996 – 2001). Foi co-fundador do Caderno de Poesia Êxodo (Coimbra, 1961). Livros publicados: Poemas do Tempo Incerto, 1983; Entre Sono e Abandono, 1990; As Casas Pressentidas, 1999; Nas Colinas do Esquecimento, 2004; Quando se Apagam as Cerejeiras, 2012; Calavam-se as Estrelas na Mágoa Daquele Inverno, 2017 e Viagem ao Silêncio das Ervas Adormecidas, 2019. Traduziu Dieu Face à la Science de Claude Allègre, 1998. Publicou mais de uma centena de artigos em jornais e revistas (crónicas e crítica literária)


Hopkins Forest

Eu tinha saído

A buscar água ao poço, perto das árvores,

E fiquei em presença de um outro céu.

Desaparecidas as constelações de há um instante apenas,

Três quartos do firmamento estavam vazios,

Reinava aí sozinho o negro mais intenso,

Mas à esquerda, acima do horizonte,

Confundido com o cimo dos carvalhos,

Havia um conjunto de estrelas avermelhadas

Como um braseiro, donde subia mesmo algum fumo.

 

Reentrei

E reabri o livro sobre a mesa.

Página após página,

Mais não eram que sinais indecifráveis,

Agregados de formas sem nenhum sentido

Ainda que vagamente recorrentes,

E por baixo uma brancura de abismo

Como se o que se denomina espírito caísse aí, sem ruído,

Como neve.

Virei, no entanto, as páginas.

 

Muitos anos mais cedo,

Dentro de um comboio no momento em que o dia nasce

Entre Princeton Junction e Newark,

Isto é, dois lugares de acaso para mim,

Caem por duas vezes flechas vindas de parte nenhuma,

Os viajantes liam, silenciosos

Na neve que varria as vidraças cinzentas,

E de súbito,

Num jornal aberto a dois passos de mim,

Uma grande fotografia de Baudelaire

A toda a página

Como se o céu se esvaziasse no fim do mundo

Para consentir a desordem das palavras.

 

Aproximei este sonho e esta lembrança

Quando caminhei, primeiramente todo um outono

Através dos bosques onde em breve caiu a neve

Que triunfou, em muitos destes sinais

Que se recebem, contraditoriamente,

Do mundo devastado pela linguagem.

Chegava ao fim o conflito de dois princípios,

Parecia-me, fundiam-se duas luzes,

Fechavam-se os lábios da ferida.

A massa branca do frio caía em rajadas

Sobre a cor, mas um tecto ao longe, uma tábua

Pintada, de pé contra uma grade,

Era ainda a cor, e misteriosa

Como alguém que saísse do sepulcro e, rindo:

“Não, não me toques”, diria ele ao mundo.

 

Em boa verdade devo muito à Hopkins Forest,

Guardo-a no meu horizonte, na parte

Em que deixa o visível pelo invisível

Pelo sobressalto do azul lá longe.

Escuto-a, através dos ruídos, e por vezes mesmo,

O verão, empurrando com o pé as folhas mortas

De outros anos, claras na penumbra

Dos carvalhos muito juntos por entre as pedras,

Paro, creio que este solo se abre

Para o infinito, que estas folhas caem aí

Sem pressa, ou então voltam a subir, não havendo mais

Nem alto, nem baixo, nem ruído, salvo o leve

sussurro dos flocos que em breve

se multiplicam, se aproximam, se enlaçam

-.E eu revejo então todo o outro céu,

Entro por um instante no grande nevão.


Yves  Bonnefoy,  Début et fin de la neige, Gallimard, 2003