Chronica do senhor rei D. Pedro I oitavo rei de Portugal
*CAPITULO XIII* _ Por que guisa el-rei Dom Pedro de Castella começou de juntar thesouro_.

Por outra maneira juntou el-rei Dom Pedro de Castella mui grão thesouro, sem mudar moeda, nem lançar peitas ao povo: e vêde de que guisa foi, posto que fallemos dos feitos alheios.  

Assim, adverti que el-rei Dom Pedro estando na aldeia de Morales, que é uma legua de Toro, jogava um dia os dados com alguns de seus cavalleiros, e tinha-lhe um seu reposteiro-mór, a cerca d'elle, uns huchotes pequenos com alguma prata e dobras, que seria por todo até vinte mil: el-rei disse que aquelle era todo seu thesouro, e que mais não tinha.  

Aquelle dia, logo á noite, estando el-rei em sua camara, Dom Samuel Levi, seu thesoureiro-mór, lhe disse:

-- Senhor, hoje foi vossa mercê dizer, perante aquelles que aqui estavam, que vós não tinheis mais thesouro que vinte mil dobras, de que jogaveis, e com que tomaveis sabor. E isto, senhor, entendo que o dissestes contra mim, por me avergonhar, pois que sou vosso thesoureiro-mór, e não ponho melhor recado em vossa fazenda. Porém, senhor, vós sabeis bem que, posto que fosse eu vosso thesoureiro depois que vós reinastes até ora, que póde haver uns sete annos, sempre em vosso reino houve taes boliços por os quaes os recadadores de vossas rendas se atreveram a fazer coisas que não deviam, por guisa que eu não pude tomar d'ello conta socegadamente como era razão; mas ora se vossa mercê fôr de me mandardes entregar dois castellos, quaes eu disser, eu vos quero pôr n'elles, antes de muito tempo, thesouro com que bem possaes dizer que mais tendes juntas de vinte mil dobras.  

A el-rei prouve muito d'isto, e foram lhe entregues o alcaçar de Torjillo e o de Fita. Dom Samuel poz logo alli homens de que se fiava, e mandou cartas por todo o reino, a todos os que foram e eram recadadores das rendas de el-rei, des que elle começara de reinar até então, que viessem logo dar conta; e tomava-lh'a d'esta guisa. Por el-rei eram livrados a um cavalleiro, ou outro qualquer, certos mil maravedis de seu poimento, ou d'outra maneira, e Dom Samuel fazia vir perante si todos aquelles a que alguns dinheiros foram desembargados por aquelle a que tomava conta, e dava a cada um juramento, aos Evangelhos, quantos dinheiros receberam d'aquelle recadador por cada uma vez, e quantos lhe deixara por haver d'elle desembargo e não ser detido, e aquelle a que taes dinheiros foram livrados dizia que não houvera mais de tantos, e que os outros lhe déra, de peita, pelo desembargar, porque lhe faziam entender que d'outra guisa não poderia haver pagamento.  

Então, se o recadador não mostrasse lugar certo onde lhe todo fôra pagado, mandava Dom Samuel que a metade de quanto assim levara fosse para o thesouro d'el-rei, e a metade para aquelle que recebera tal engano.  

E todos os que taes livramentos houveram, eram mui contentes de dizer a verdade, por cobrar o que tinham perdido. E elle juntou, por esta guisa, antes de um anno, n'aquelles castellos, tão grande thesouro, que era estranha cousa de vêr.  

E este foi o começo do mui grão thesouro que el-rei Dom Pedro depois teve junto, segundo adiante contaremos.