Morto el-rei D. Affonso, como haveis ouvido, reinou seu filho, o infante
Dom Pedro, havendo então de sua idade trinta e sete annos e um mez e
dezoito dias. E porque dos filhos que houve, e de quem, e por que guisa,
já compridamente havemos falado, não cumpre aqui arrazoar outra vez; mas
das manhas, e condições, e estados de cada um, diremos adiante, muito
brevemente, onde convier falar de seus feitos.
Este rei Dom Pedro era muito gago, e foi sempre grande caçador e monteiro, em sendo infante e depois que foi rei, trazendo grande casa de caçadores e moços de monte e de aves, e cães, de todas maneiras que para
taes jogos eram pertencentes.
Elle era muito viandeiro, sem ser comedor mais que outro homem, que suas
salas eram de praça em todos logares por onde andava, fartas de vianda,
em grande abastança.
Elle foi grande criador de fidalgos de linhagem, porque n'aquelle tempo
não se costumava ser vassalo, se não filho e neto ou bisneto de fidalgo
de linhagem; e por usança haviam então a quantia que ora chamam
maravidis, dar-se no berço, logo que o filho do fidalgo nascia, e a
outro nenhum não.
Este rei accrescentou muito nas quantias dos fidalgos, depois da morte
de el-rei seu padre, cá não embargando que el-rei D. Affonso fosse
comprido de ardimento e muitas bondades, tachavam-no, porém, de ser
escasso, e apertamento de grandeza. E el-rei Dom Pedro era em dar mui
ledo, em tanto, que muitas vezes dizia que lhe afrouxassem a cinta, que
então usavam não mui apertada, porque se lhe alargasse o corpo por mais
espaçosamente poder dar; dizendo que o dia que o rei não dava, não devia
ser havido por rei.
Era ainda de bom desembargo aos que lhe requeriam bem e mercê, e tal
ordenança tinha n'isto, que nenhum era detido em sua casa por cousa que
lhe requeresse.
Amava muito de fazer justiça com direito. E assim como quem faz
correição, andava pelo reino, e visitada uma parte não lhe esquecia de
ir vêr a outra, em guisa que poucas vezes acabava um mez em cada logar
de estada.
Foi muito mantenedor de suas leis e grande executor das sentenças
julgadas, e trabalhava-se quanto, podia das gentes não serem gastadas
por azo de demandas e prolongados pleitos.
E se a Escriptura affirma que, por o rei não fazer justiça, vem as
tempestades e tribulações sobre o povo, não se póde assim dizer d'este,
cá não achamos, em quanto reinou, que a nenhum perdoasse morte de alguma
pessoa, nem que a merecesse por outra guisa, nem lh'a mudasse em tal
pena por que pudesse escapar a vida.
A toda gente era galardoador dos serviços que lhe fizessem, e não
sómente dos que faziam a elle, mas dos que haviam feitos a seu padre, e
nunca colheu a nenhum cousa que lhe seu padre desse, mas mantinha-a e
accrescentava n'ella.
Este rei não quiz casar: depois da morte de Dona Ignez, em sendo
infante, nem depois que reinou, lhe prove receber mulher; mas houve
amigas com que dormiu, e de nenhuma houve filhos, salvo de uma dona,
natural de Galliza, que chamaram Dona Thereza, que pariu um filho que
houve nome Dom João, que foi mestre de Aviz em Portugal e depois rei,
como adiante ouvireis, o qual nasceu em Lisboa onze dias do mez de
abril, ás tres horas depois do meio dia, no primeiro anno do seu
reinado. E mandou o el-rei criar, em quanto foi pequeno, a Lourenço
Martins da Praça, um dos honrados cidadãos d'essa cidade, que morava
junto com a igreja cathedral onde chamam a praça dos Canos, e depois o
deu, que o criasse, a Dom Nuno Freire de Andrade, mestre da Cavallaria
da ordem de Christo. |