Realisando corajosamente a boa, a piedosa idea de republicar as
chronicas impressas do--Pae da Historia Nacional,--como Herculano
apellidou Fernão Lopes, Mello d'Azevedo, o editor d'esta modesta e
patriotica bibliotheca podera, hoje, ainda! suprir qualquer explicação
prefacial com as palavras do nosso grande historiador moderno, quando ha
mais de meio seculo tracejava o perfil do encantador--«escripvam»--do
bom Rei Dom Duarte:
--«Tão raros, ou tão pouco lidos andam os antigos escriptores
portuguezes que muitas pessoas ha, não de todo hospedes nas letras, que
apenas de nome os conheçam, _e frequentes vezes nem de nome_.»
Hoje, ainda!...
Fernão Lopes é quasi exclusivamente conhecido de nome, e já agora
arejemos toda a nossa idea, mais exactamente toda a nossa observação
positiva e directa: nem de nome o conhece muito litterato gloriosamente
emproado pelas novas camarilhas do elogio mutuo na fama e na faina da
renovação da Historia e da Arte nacional... por estampilha francelha.
Uma das causas da mingua, a bem dizer, absoluta, de vulgarisação dos
nossos antigos escriptores, dos nossos melhores monumentos litterarios,
da nossa historia, até, indicamol-a já n'outra publicação d'esta
bibliotheca: é o espirito estreitamente, inconsequentemente monopolista
dos eruditos ou dos que se querem dar ares de taes; é a superstição das
reproducções mais ou menos arbitrariamente chamadas fieis, conservadoras
de uma ortographia, de uma disposição typographica até, obsoleta,
indigesta, inacessivel á leitura corrente, á assimilação immediata,
actual, affectiva da multidão.
Em volta d'esta causa ou concorrendo e emparelhando com ella, muitas
outras se teem accumulado e subsistem, por tal maneira renitentes e
acrescentadas, que póde affirmar-se, como facto incontestavel, que as
palavras doridas de Herculano teem hoje, mais do que quando elle as
escreveu,--ha 56 annos!--uma applicação perfeitamente exacta e justa.
Conhecia-se mais, muito mais, então, Fernão Lopes, ou qualquer outro dos
nossos antigos escriptores, do que hoje se conhecem e leem. Basta citar
ou vêr o trabalho litterario d'esse tempo, comparando-o com o do nosso.
Quando eu, e certamente muitos dos leitores, iniciámos a nossa vida
intellectual, lia-se, estudava-se, explicava-se o Camões nas escolas.
Naturalmente, insensivelmente iam penetrando nos nossos corações e nos
nossos cerebros em formação as ideas e os sentimentos de honra, de
intrepidez, de amor da Patria, com tantas outras lições generosas,
estimulantes, grandes, que as bellas estrophes transvasam nos espiritos
sãos e frescos. Lia-se tambem o Freire d'Andrade, um massador de grandes
discursos e de grandes bombardadas rhetoricas, d'accordo, mas que nos
encantava, que nos ensinava muitas cousas interessantes, que nos
enlevava, que nos fazia pensar em grandes cousas: nas terriveis batalhas
da vida, nos sacrificios e nos esforços valentes com que ellas se
vencem.
Um dia, era eu ainda um rapaselho, apanhei entre os velhos livros de meu
pae:--que sabia de cór o Virgilio, o Camões, e que me recomendava o Tito
Livio, o João de Barros, etc,--apanhei, pois, um volume, que nunca mais
vi, e que era uma edição em 8.° da _Chronica de Dom Pedro_ por Fernão
Lopes, exactamente a que vamos lêr agora.
Devia ser a edição do Padre Pereira Bayão, do seculo 18.°, inferior á
chamada da Academia sobre a qual é feita a nossa.
Como eu li sofregamente, deliciosamente, o velho livro!
Como me soube bem aquella prosa simples, ampla, forte--permittam-me a
expressão;--aquelle _contar_ ingenuo, vivo, e ao mesmo tempo tão
magestoso pela sincera e nobre lealdade do chronista--que não era um
adulador Real, nem um _fingidor_ litterario!
Chronista! Historiador é que póde francamente chamar-se-lhe.
Foi a primeira revelação que tive de Fernão Lopes e só desejo que tão
agradavel seja a dos que pela primeira vez travarem agora conhecimento
com elle.
Poderia dizer que a vão travar simultaneamente com outros escriptores,
de que Fernão Lopes se serviu ou que se serviram d'elle, mas como já
disse n'outra publicação, a nossa _Bibliotheca_ não pôde ainda entrar na
tentativa das edições criticas e por isso estes pequenos prefacios não
devem ensaiar essa feição que os levariam longe.
Nem mesmo podemos dar do author mais do que uns breves traços dispersos
que aliás se encontram facilmente em publicações muito accessiveis.
Fernão Lopes nasceu não se sabe onde, ainda no seculo 14.°, parece, como
diz Herculano, que pouco antes ou durante--«a gloriosa revolução de
1380,»--sendo collocado por Dom João I, juncto d'algum ou d'alguns dos
filhos. Em 1418 confiou-lhe o Rei de Boa Memoria, a guarda e
serviço,--constituido então independente,--da--«torre do castello da
cidade de Lisboa,»--a primitiva Torre do Tombo.
Ali começou a fazer-se entre as--«escripturas»--dos velhos e modernos
tempos, o grande historiador, a quem Dom Duarte por carta de 19 de março
de 1434,--isto é por uma das suas primeiras iniciativas de Rei,
dava--«carrego de poer em caronyca as estorias dos reys que antigamente
em Portugal foram»,--com 6$000 reis de tença annual, uns escassos 60$000
de hoje. No cargo o confirmou o cavalleiroso Affonso V por Carta de 5 de
junho de 1449.
Teve uma longa vida Fernão Lopes, sendo em 1455 substituido por Gomes
Eannes de Azurara que, briosamente e sem favor, lhe chama:--homem de
communal (descomunhal) sciencia e authoridade.»
Fez-se a substituição--«por seu prazimento e por fazer a elle mercê como
é rasom de se dar aos boõs servidores,»--sendo--«já tão velho e fraco
que por si non podia bem servir»--e sobrevivendo ainda, 5 annos, pelo
menos.
Andaria nos 80.
É uma complicada questão, a de ter Fernão Lopes escripto outras
chronicas além das que teem logrado chegar, sob o seu nome, até nós, e a
de se terem outros escriptores apropriado, mais ou menos de trabalhos
d'elle. As conhecidas são a de Pedro I que vamos republicar, a de Dom
Fernando, e a de João I. Como diz, justamente, Herculano:--«para a
gloria de Fernão Lopes são monumentos sobejos»--estes tres monumentos.
Mas que pena que não tenhamos d'elle a historia d'aquelle--«grande
desvayro»--dos amores de Ignez de Castro e que a gentil figura nos
apareça apenas como uma obsessão cruel do extraordinario monarcha que
procurara já distrahir-se um pouco nos braços de Theresa Lourenço, a
bemaventura mãe de Dom João I.
_L. C_. |