Vós ouvistes, no primeiro capitulo d'esta historia, como depois da morte de Dona Ignez, ei-rei sendo infante, nunca mais quiz casar, nem depois que reinou quiz receber mulher, mas houve um filho de uma dona, a que chamaram Dom João. D'este moço deu el-rei cargo a Dom Nuno Freire, mestre de Christus, que o criava e tinha em seu poder, e que criando-o elle assim, sendo em idade até sete annos, veiu-se a finar o mestre de Aviz, Dom Martim do Avelal.
O mestre de Christus, como isto soube, foi-se logo a el-rei Dom Pedro, que então pousava na Chamusca, e pediu-lhe aquelle mestrado para o dito seu filho, que levava em sua companha, e el-rei foi mui ledo do requerimento, e muito mais ledo de lh'o outorgar.
Então tomou o moço o mestre nos braços, e tendo-o em elles, lhe cingiu el-rei a espada e o armou cavalleiro, e beijou-o na boca, lançando-lhe a benção, dizendo que Deus o accrescentasse de bem em melhor, e lhe desse tanta honra em feitos de cavallaria, como déra a seus avós: a qual benção foi em elle bem cumprida, como adiante ouvireis.
E disse então el-rei contra o mestre:
--Tenha este moço isto por agora, cá sei que mais alto ha de montar, se este é o meu filho João de que me a mim algumas vezes falaram, como quer que eu queira antes que se cumprisse no infante Dom João, meu filho, que n'elle; cá a mim disseram que eu tenho um filho João, que ha de montar muito alto, e por que o reino de Portugal ha de haver mui grande honra. E porque eu não sei qual d'estes Joões ha de ser, nem o podem saber em certo, eu azarei como sempre acompanhem ambos estes meus filhos, pois que ambos são de um nome, e escolha Deus um d'elles para isto, qual sua mercê fôr. Como quer que muito me suspeita a vontade que este ha de ser, e outro nenhum não, porque eu sonhava uma noite o mais estranho sonho que vós vistes: a mim parecia, em dormindo, que eu via todo Portugal arder em fogo, de guisa que todo o reino parecia uma fogueira, e estando assim espantado vendo tal cousa, vinha este meu filho João, com uma vara na mão, e com ella apagava aquelle fogo todo. E eu contei isto a alguns que razão teem de entender em taes cousas, e disseram-me que não podia ser, salvo que alguns grandes feitos lhe haviam de sair de entre as mãos.
Ora, assim adveiu depois, como dizemos, que, isto feito, tornou-se o mestre de Christus para a villa, e mandou seu recado aos commendadores da ordem de Aviz, que viessem logo alli, por haver de falar com elles cousas que eram de serviço de Deus e prol de sua ordem (e isto fazia o dito mestre porquanto a ordem de Aviz e a de Christus são ambas da ordem de São Bento), os quaes, por suas cartas e requerimento, vieram logo áquelle logar.
O mestre falou então com o commendador-mór, e com Fernão Soares, e Vasco Peres, todo o que era vontade de el-rei, dês-ahi entrou com elles em cabido, segundo costume de sua ordem, e o commendador propoz ao mestre, em nome seu e dos commendadores, dizendo que elle bem sabia como seu senhor, o mestre de Aviz Dom Martim do Avelal, era finado, e que elles não tinham mestre que os houvesse de reger como cumpria a serviço de Deus, segundo sua ordem mandava, nem entendiam de eleger outro, senão aquelle que lhes elle desse; e que pois elle era de sua regra e o fazer podia, que lhe pediam por mercê, que por serviço de Deus e bem da dita ordem, lhes desse mestre que os houvesse de reger segundo sua regra mandava.
O mestre respondeu que diziam mui bem, como bons cavalleiros e bem sisudos, e porque elle era tido de fazer e requerer toda causa que fosse serviço de Deus e prol de sua ordem, que porém queria tomar cargo de lhes dar mestre que os houvesse de reger segundo sua regra mandava, e que para ser seu mestre lhes dava Dom João, filho de el-rei Dom Pedro, que elle criava, que entendia que era tal senhor que os regeria como cumpria a serviço de Deus e prol de sua ordem. O commendador-mór, e os outros disseram então, que lhe tinham em grande mercê de lhes dar tão honrado senhor por seu mestre: e logo o dito Dom João foi chamado, e foram-lhe tirados os vestidos seculares, e lançado o habito da ordem de Aviz, e como lhe foi vestido, o commendador-mór e os outros lhe beijaram o mão por seu mestre e senhor. E isto assim feito, foi elle levado para a ordem de Aviz, de onde era mestre, e alli se criou alguns annos, até que começou de florescer em manhas, e bondades, e autos de cavallaria, segundo a historia adiante dirá, contando cada umas em seu logar.
E se alguns quizerem dizer que os poucos annos de sua idade e não legitima nascença embargavam de não poder ser mestre, a taes se responde que o Papa dispensou com elle, que posto que provido fosse antes do tempo, e nado de não legitimo matrimonio, que seus bons costumes e honroso proveito que d'elle vinha á ordem, corrigia tudo isto, e que o confirmava em elle.
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