Naulila, por Sarmento Pimentel
[…] E o Roçadas, supondo que ia defrontar-se com indígenas amotinados,
encontrou pela frente uma organização militar perfeita e aguerrida de
tropas alemãs
da Damaralândia.
E foi derrotado. Os alemães aproveitaram a animosidade que existia contra
os portugueses, atravessaram o Cunene e chacinaram as guarnições
portuguesas. Internaram-se, mesmo, até Naulila, onde a resistência das
nossas tropas foi heróica, e tomaram a posição. […]
Eu oferecera-me como voluntário para tomar parte na expedição que ia
partir para Angola. A viagem do «Cabo Verde», que
transportou o 3º esquadrão de Cavalaria 9, de que eu fazia parte como
alferes, as muares de uma companhia de metralhadoras e as montadas dos
oficiais do Estado-Maior da expedição, foi uma verdadeira tragédia.
Não havia um médico para os homens, embora houvesse um veterinário para os
animais. E, depois duma viagem tormentosa, chegou o contingente a
Moçâmedes onde assinalaram o desembarque peripécias de toda a ordem. E a
coluna rumou para o Sul, já sob o comando do
general Pereira de Eça.
A guerra em África não era nenhuma brincadeira. O terreno é difícil. As
distâncias imensas. E os recursos de que dispúnhamos eram insuficientes.
Basta dizer-lhe que, em determinada altura, fui
encarregado de ir a Ruacaná para fazer um reconhecimento até onde fosse
possível. E deram-me quinze
dias para ir e voltar. Em quinze dias ainda lá não tinha chegado – através
da selva, que era preciso vencer, que era o pior inimigo. Quando o Roçadas chegou a Angola,
viu este triste espectáculo: as guarnições portuguesas, brancas e pretas,
tinham sido chacinadas. Não escapou um homem. Num recontro com os alemães
da Damaralândia, as suas forças foram derrotadas.
[Pereira de Eça, armamento moderno, alemães…]
A campanha durou ano e meio. Durante esse tempo, nunca me deitei numa
cama. Dormi sempre no chão ou numa tarimba, uma destas camas de campanha
que nos deixam os ossos num feixe.
P. – Foi em meados de Agosto de 1915 que a coluna Pereira de Eça iniciou
a marcha para o Sul e as operações completaram-se em Fevereiro de 1917 com
a entrada das tropas portuguesas em N’Giva, quartel-general do soba
Mandumbe e capital do Cuanhama. Assistiu ao combate da Môngoa?
R. – Não assisti. Antes dessa marcha para o Sul, o general Pereira de Eça
mandou fazer dois reconhecimentos: um comandado pelo tenente Sebastião
Roby, descendo pelo vale do rio Cunene. E outro pelo comandante dos boers,
que era eu, a corta-mato direito a Ruacaná e a Naulila, que eram postos
ocupados pelos alemães. Do sul de Angola não havia
nenhum mapa e, naquele tempo, o que era pior, não havia uma ponte, uma
estrada, uma via de penetração no mato. Era tudo selva virgem.
Infestada de leões e de caça grossa. Os boers, na sua linguagem pitoresca,
chamavam-lhe o kaucfelt. E eu
fui nessa missão de reconhecimento. O Roby caiu numa emboscada e foi morto
– o segundo Roby que morreu em África, irmão do outro que também lá ficou.
Eu não apareci no prazo estipulado porque o Estado Maior não tinha feito
bem os cálculos. Decorrido o tempo que estava previsto, ainda esperaram
mais um mês. Apareceu, então, no Quartel-General um preto que fazia parte
do contingente a dizer: «Morreram todos. Só escapei eu.» E deram-me como
desaparecido, receando que tivesse ficado prisioneiro dos alemães. Foi
alertada a Cruz Vermelha, que informou, depois das investigações a que
procedeu, que não havia nenhum prisioneiro com o meu nome. Afinal,
eu tinha cumprido a missão que me fora determinada: verificar a ocupação
dos postos de Ruacaná, de Dongoena, de Naulila e de Roçadas, posições que
tínhamos abandonado e que haviam sido ocupadas pelos alemães.
Cumprida a minha
missão, meti-me a caminho, de regresso ao Quartel-General. Eu levava um
carro de abastecimento e cheguei à conclusão de que me embaraçava a
marcha. Resolvi mandar o carro para Otchinjou e sustentar-me, eu e os meus
homens, dos recursos naturais: caça, pesca, frutas do mato e duma certa
cultura de mandioca que os pretos faziam. E conseguiam sobreviver. Cada um
dos meus homens levava uma porção de sal, que era uma coisa preciosa, e
algum arroz, embora em pequena quantidade, para não sobrecarregar os
animais. Nos cantis levávamos reserva de água, que em África é difícil de
obter. As distâncias a percorrer eram enormes e só raramente se encontrava
água. Obtidas todas as informações de que necessitava, pus-me a caminho,
de volta. Como tinha pressa de chegar, disse ao sargento: «Tu ficas como
superintendente e eu vou adiante para ganhar tempo.» E, como o meu cavalo
era mais veloz, aí vou eu pelo sertão fora sem mais companhia. Eles só
chegaram ao acampamento dois dias depois de mim. Calcula o estado em que
eu vinha: roto, sujo (não havia água para beber, quanto mais para me
lavar), com a barba crescida, num mísero estado. Quando me viram assim,
calcularam que a missão tinha redundado em desastre e que eu conseguira
escapar. E perguntaram-me pelo resto da tropa. «O resto da tropa vem aí.»
Julgaram que vir ali era daí a dez minutos ou uma hora. Passou um dia e a
tropa sem aparecer. «O Pimentel não conta a verdade – pensavam. – Esconde
qualquer coisa.» Mas os pretos têm processos de comunicar rapidamente, e,
um dia antes de chegar o resto do destacamento, soube-se, pelo telégrafo
indígena [talking drum], que os boers vinham, realmente, ali. Foi uma
festa quando eles chegaram. Uma festa que me comoveu, que me enterneceu.
Apresentei-me ao
chefe do Estado-Maior, o major Ortigão Peres, que era um homem bom. «O
general recebe-o amanhã» - disse-me. Mas eu não tinha indumentária para
substituir os farrapos que me cobriam o corpo.
Um deu-me uma camisola, outro umas calças, outro um jaleco. E assim
me apresentei ao general Pereira de Eça, encadernado de novo. Devo dizer
que fiquei desapontado pela frieza com que o general me recebeu. Comecei a
expor o resultado da minha missão com aquela loquacidade que me
caracteriza e, a certa altura, Pereira de Eça cortou-me a palavra:
«Deixa-te de discursos e diz só o que interessa.» Contei isto aos
camaradas dizendo que não valia a pena fazer sacrifícios, passar fome e
sede, arriscar o pelo, para chegarmos ao fim e termos aquela recompensa.
Eu vinha magro como um palito. O médico, o dr. Vasconcelos e Sá, que era
muito meu amigo e um excelente camarada, observou-me e submeteu-me a um
tratamento rigoroso para me restabelecer. No dia seguinte foi publicada a
ordem de campanha onde vinha a notícia da minha apresentação e a proposta
do general Pereira de Eça para ser condecorado com a medalha de Valor
Militar.
In:
Diálogos com Norberto Lopes, pp.: 87-92
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