Durante os 60 (sessenta) anos vividos no Brasil
(1927-1987), o Sarmento Pimentel em tudo e com todos tomava as suas
precauções; não dava um passo em falso, e também não aceitava ninguém no
seu convívio ao primeiro contato; quando conhecia ou lhe apresentavam
alguém, perguntava, observava e agia com cautela, só permitindo
proximidade após tomar pessoalmente conhecimento da pessoa em questão. No
convívio mais íntimo dava prioridade aos velhos conhecidos, apenas abrindo
as portas a quem lhe merecia inteira confiança. Apesar de a porta de seu
apartamento se encontrar sempre aberta – a filha residia no outro
apartamento do mesmo andar – jamais encontrei ali pessoas estranhas, até
porque quem não era íntimo não passava da portaria.
Quando a sua biblioteca foi inventariada para
seguir para Mirandela – encontra-se hoje em prédio construído para o
efeito, sede que leva o seu nome, situada na Avenida João Sarmento
Pimentel, que abriga ainda o museu – como era muito cauteloso, não enviou
para o container o que lhe era mais ‘caro’ e considerava mais precioso,
constituído por raríssima coleção de 33 miniaturas de antigas Bíblias,
preciosidades que me encarregou de levar para Portugal e entregar
pessoalmente ‘nas mãos’ do Presidente da Câmara, com a solicitação de ser
ele a catalogar e depositar no lugar adequado tão valiosa ‘relíquia’.
Assim fiz, depois de – já em Lisboa – combinar com o autarca o dia e hora
em que nos encontraríamos na cidade natal do Velho Capitão.
A mesma cautela ocorreu com a doação de outras
preciosidades, como as esporas que usava quando em 1919 prendeu os
monarquistas, enquanto almoçavam na messe do Porto, altura em que ali
restabeleceu a República, ato para o qual – estando muito doente e fraco,
hospitalizado com gripe ‘espanhola’ - sem licença abandonou a cama e
colocou-se à frente de seu esquadrão da Guarda Republicana do Porto, para
concretizar esse heroico ato. E essas esporas encontram-se no museu do
Quartel da Guarda Nacional Republicana, no Carmo, em Lisboa, onde a seu
pedido também as entreguei pessoalmente, junto com outras relíquias usadas
durante a sua brilhante carreira militar de cerca de quinze anos.
De Sarmento Pimentel recebi alguns livros de
presente, entre eles vários exemplares de “Memórias do Capitão”, cujas
dedicatórias iam ‘enriquecendo’ à medida que a nossa amizade se
consolidava. No primeiro exemplar que Sarmento Pimentel me ofereceu o
velho Capitão escreveu apenas: “Ao capitão José Verdasca dos Santos,
meu ilustre camarada, com um abraço”. Depois Sarmento Pimentel
ofereceu-me novo exemplar da mesma obra, com a seguinte dedicatória:
“Ao capitão José Verdasca dos Santos, meu ilustre camarada e amigo”.
Passado algum tempo, Sarmento Pimentel escreveu a seguinte dedicatória:
“Ao capitão José Verdasca dos Santos, meu ilustre camarada e amigo, com um
fraterno abraço do Velho Capitão”. Outras dedicatórias se seguiram,
evidenciando profunda amizade, por vezes carinhosas e até mesmo
paternalistas, em livros e retratos que guardo com gratidão.
O Velho Capitão que aqui tento retratar
fielmente, acabou abrindo o seu coração definitivamente quando, após a
minha ida ao Conselho da Revolução para solicitar a sua promoção a
general, a mesma foi concedida, e Marques Júnior veio a São Paulo
colocar-lhe nos ombros as respetivas estrelas, que ele já não esperava.
Foi no dia 25 de abril de 1980 (se a memória me não atraiçoa), talvez dez
anos após o início de nosso relacionamento. Mas, então, eu e minha mulher
já vínhamos sendo convidados para o almoço de seu aniversário, onde se
servia o famoso folar (salgado) de sua terra natal, apenas para a sua
família e os casais Verdasca e Baleizão, este último também refugiado
político e seu afilhado de casamento.
Homem de firme e reto carácter, cioso de seus
direitos e cumpridor de seus deveres, Sarmento Pimentel era um homem
objetivo e prático, de elevado prestígio e muito popular, mas que a poucos
concedia intimidade. À parte os almoços das quartas feiras, quando recebia
apenas seis comensais, a sua casa não era muito frequentada, exceção feita
a Jorge de Sena e mais uns poucos, que se valiam da sua rica biblioteca
para efetuar as suas pesquisas. E esses poucos eram os intelectuais
portugueses residentes e ou de passagem por São Paulo, normalmente seus
antigos companheiros da Seara Nova. Também recebia Mário Soares
quando ele – a serviço da oposição - se deslocava ao Brasil. Mas não
era homem de – como aqui se diz – jogar conversa fora.
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