Decorridos 47 anos
de exilio, no Brasil, eis que João Sarmento Pimentel, com 86
anos, regressou à Pátria, tendo sido recebido de “passadeira
vermelha”, em Lisboa e no Porto. Muitas foram as personalidades
que o esperavam, alguns velhos amigos e companheiros de luta,
outros, rostos jovens, alguns, figuras públicas, mas para todos,
o seu nome era a personificação de uma vida de resiliência, de
luta pela liberdade e democracia.
Após a Revolução de Abril, o nome de Sarmento
Pimentel começou a ser referido em notícias de jornal,
precisamente, no dia 5 de Maio, no “Diário de Notícias”, através
da nota intitulada, “Fala em Regressar um dos primeiros exilados
por causa da oposição à ditadura de Salazar”, constituindo
manchete, entre os dias 15 e 19, com anúncios referentes ao
regresso após o exílio e o intuito de vir a desempenhar a função
de deputado. A apoteose à chegada ao Porto, o comício
fervilhante na Invicta, a par de artigos de fundo: a
constituição do Governo Provisório e do seu Programa; as
expectativas em torno das medidas de carácter económico e
social, tomadas pelo governo; a realização de comícios de
homenagem a Catarina Eufémia, célebre camponesa morta há vinte
anos, pelo governo deposto; a prisão de Silva Pais, inspetor da
Pide, com a publicação de imagens das instalações da
subdiretoria da Pide/D.G.S., de camaratas inóspitas, de celas
individuais, de isolamento e as destinadas para três presos; a
chegada ao país de outros ex-exilados políticos; António de
Spínola, a assumir o cargo de Presidente da República; Mário
Soares em Dacar, a fim de conferenciar com o presidente do
Senegal; Álvaro Cunhal a preconizar a necessidade de consolidar
a aliança da população com as Forças armadas; a saída forçada,
de Marcelo Caetano, para o Brasil, entre a recorrente
publicidade do Banco Pinto & Sotto Mayor, com o auspicioso
“slogan”, “Deposite Confiança no Futuro!”
Divulgava-se a chegada ao país de Sarmento
Pimentel e os jornais davam a conhecer a luta no Brasil, com
destaque para a sua presença, na Universidade de São Paulo, no
dia 4 de Maio, em que presidiu a uma homenagem, promovida pelos
Diretórios Académicos e de apoio à Oposição Democrática
Portuguesa, considerada “a maior manifestação Pública realizada
no Brasil em apoio ao Movimento que pôs fim as fascismo em
Portugal” (1), perante cerca
de dois mil estudantes e duzentos e cinquenta professores.
Celebrou-se a queda da ditadura fascista em Portugal e o cravo
vermelho foi o ícone nos discursos, como símbolo da liberdade de
um povo, do sangue vertido pelos combatentes anti-fascistas e,
na confraternização dos soldados com o povo, nas ruas. Sarmento
Pimentel discursou, apresentando-se:
«Quatro anos na Grande Guerra de 1914,
três revoluções, quarenta e sete anos de exílio. Tudo foi por
amor a Portugal, à República, à Democracia, à Liberdade. Sempre
em defesa dos direitos do povo, da sua existência (…) Eu queria,
e ainda hoje continuo a desejar, que a nossa liberdade não seja
aquela liberdade burguesa que permite aos ricos continuarem cada
vez mais ricos e os pobres sempre mais pobres, mas a liberdade
que vós ambicionais, para todos os povos da terra e que lhes
garanta uma vida feliz, digna de ser vivida, sem humilhação, sem
ofensa às suas aspirações de independência, de saúde, de
instrução, regalias que nos tempos que vão correndo só usufruem
os cartolas, os grandes, os ricos (…) Foi restaurada a Republica
Portuguesa que eu há 64 anos ajudei a proclamar” – a
continuidade dos princípios, persuasivos, publicados na revista
Seara Nova. Concluiu, pelo vaticínio de um Portugal para todos os
portugueses, “uma democracia socialista como aquela que governa
os países mais cultos e desenvolvidos da Europa”
(2) e, pela abordagem primordial à problemática das colónias
portuguesas, desejando o término urgente da guerra colonial,
alicerçada, tal como todas as guerras,
“no interesse, por mãe a ambição, por
próximos parentes todos os vícios capazes de levarem os homens
ao mal, todas as crueldades que desonram os homens …» (4).
Uma leitura pelos
periódicos “República”, “Diário de Notícias”, “Diário Popular”,
“Diário de Lisboa”, “A Capital”, “O Século”, “O Comércio do
Porto” e “O Primeiro de Janeiro” demonstram que Sarmento
Pimentel era um nome respeitado e prestigioso dos portugueses,
conotado inexoravelmente pela luta contra o Estado Novo, que
ditou o seu exilio, no Brasil, de onde, continuou a contenda
ideológica, quer através dos seus textos publicados em Portugal
pela Revista “Seara Nova”, quer no país de adoção ao integrar a
Unidade Democrática Portuguesa de São Paulo e o jornal “Portugal
Democrático”, editado na mesma cidade.
Em Portugal, a comunicação social divulgou a
sua biografia, realçando os feitos em momentos cruciais da
história do país: anunciavam-no como figura representativa da 1ª
República, um dos únicos sobreviventes, tendo sido galardoado,
por duas vezes, com a “Torre e Espada” e herói das campanhas em
África e Flandres. Emigrou para o Brasil, mantendo ativa a luta
contra o Estado Novo, numa coerência com os ideais pelos quais
tinha pautado a vida. Mencionava-se a sua intervenção no país
irmão, ao ter apresentado um programa de descolonização para
África (5). Aquiescia-se a sua
verticalidade, que mesmo em terras brasileiras, continuou a
“pugnar pelo retorno à liberdade de um povo traído e esmagado”(6).
Na verdade, Sarmento Pimentel foi um combatente político
frenético, na ação e no pensamento. No jornal “Portugal
Democrático”, de Janeiro de 1963, o capitão, surgiu, em duas
notícias, uma a propósito do lançamento do livro “Salazar visto
do Brasil”, que consistiu numa seleção de textos, escritos
durante os últimos anos, por intelectuais brasileiros que
testemunharam contra o ditador, a que se associaram intelectuais
portugueses, entre eles, Jorge de Sena, Casais Monteiro, Victor
Ramos e o próprio Sarmento, entre outros; e a outra, no
lançamento, do livro “Angola através dos Textos”, no dia 14 de
Janeiro, na sede da União Brasileira dos Escritores, pela
editora Felman-Rêgo. Uma compilação de artigos de opinião sobre
a guerra de Angola, da autoria de democratas portugueses,
nacionalistas angolanos e escritores e jornalistas de outros
países, constituem a obra, apresentada por Victor da Cunha Rego
e João M. Tito de Morais. O evento reuniu intelectuais dos dois
países nomeadamente, o jornalista Miguel Urbano Rodrigues,
Manuel Sertório, Tito de Morais e Pedroso de Lima, além, do
próprio Sarmento Pimentel. O jornal encerrou o número com a
publicação do comunicado distribuído à imprensa, em São Paulo,
no dia 26 de Janeiro de 1963, intitulado “Apoio de democratas
portugueses do Brasil”, com o nome de João Sarmento Pimentel a
encabeçar a lista dos signatários, seguido de Augusto Aragão,
Cunha Rego, do seu irmão, Francisco, Armindo Blanco, Miguel
Urbano Rodrigues, João Manuel Tito de Morais, António Bidarra
Fonseca, Miguel Urbano Rodrigues, João Manuel Tito de Morais,
Manuel Moura, Alexandre Leal …
Durante esses dias que se seguiram ao “25 de
abril”, o crepitar das máquinas fotográficas seguiu o capitão e
os jornais deram eco das suas palavras e movimentos. No dia 15
de Maio, anunciavam, para o dia seguinte, a sua chegada, ao
aeroporto da Portela, seguindo-se um almoço no hotel Tivoli. No
dia 16, pouco depois do meio-dia, chegou ao aeroporto e, entre
lágrimas e abraços, referiu que a maior homenagem que poderá ter
“é a liberdade e a democracia” (7), vangloriando-se com “uma
República com a liberdade que Portugal sempre se orgulhou ter”
(8). Aos jornalistas, referiu a esperança no futuro,
confidenciando que se sentia quão feliz como no dia 5 de Outubro
de 1910, em que desceu a Avenida da Liberdade … Esperavam-no
elementos em representação da Junta de Salvação Nacional,
representantes de grupos e partidos políticos, amigos e
conhecidos, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares,
exilado até há menos de um mês e a quatro horas da posse de
ministro dos Negócios Estrangeiros, o Ministro da Comunicação
Social, Raul Rego, Miguel Urbano Rodrigues, Urbano Tavares
Rodrigues, Maria Barroso, Lúcio Tomé Feteira, Cascão de Ansiães,
Alvaro Salema, Manuel Serra, o general Silvino Silvério Marques,
Tito de Morais, Francisco Balsemão(8)
… e outros nomes, também alguns ex exilados e políticos.
Como estava previsto, seguiu-se o almoço, no
hotel Tivoli, a que presidiu, organizado por António Amorim,
exilado no Brasil há 48 anos, Paradela de Abreu, editor do
“Portugal e o Futuro”, o jornalista António Valdemar, Nuno
Marques Ribeiro e Pedroso de Lima, Lúcio Feteira, Pedroso de
Lima, Nuno Marques Ribeiro, Palma Inácio e Piteira Santos …
alguns dos atuais membros do Governo Provisório, jornalistas e
personalidades de todos os quadrantes da sociedade portuguesa. A
sala, decorada, ao fundo, pela bandeira nacional, tinha sobre a
mesa, cravos vermelhos, também ostentados no peito, por alguns
dos convivas. Apresentaram-lhe cumprimentos o ministro sem
pasta, Sá Carneiro, o ministro da Administração interna,
Magalhães Mota e o ministro da Justiça, Salgado Zenha.
Depois dos discursos de Mário de Castro e
Lúcio Feteira, que enalteceram as qualidades do homenageado,
enquanto militar e democrata, mas também como escritor, autor
das “Memórias de um capitão”, livro incluído nos textos
selecionados da cadeira de Literatura Portuguesa, nas
universidades brasileiras, o comandante, tomou a palavra, com
voz firme e segura, apesar da idade, emocionado por encontrar
amigos “emigrados” no seu próprio país, num “sacrifício que
considerava maior que o seu, pois, embora exilado, vivera num
país amigo, fraterno, onde a sua família proliferara”. Mencionou
as perseguições, a si e à família, movidas durante o tempo de
Salazar e posteriormente, no de Marcelo Caetano. Apontou, como o
principal erro da I República, a negligência para os aspetos
económicos e sociais, que conduziu ao regime salazarista (10).
Invocou aos novos para que olhassem pela República e pelo povo,
afirmando que “é preciso que telhamos uma liberdade, não uma
liberdade de burgueses, mas sim uma liberdade de fidalgos,
porque o são todos os portugueses de lei” (11). Após o
almoço, Sarmento Pimentel dirigiu-se ao Palácio de Belém, onde
assistiu à tomada de posse do Governo Provisório, apresentando
cumprimentos ao general António de Spínola e Prof. Dr. Adelino
da Palma Carlos (12).
Folheando os periódicos, ressaltam registos
de Sarmento Pimentel, notícias pequenas ou extensas, ora se
expôs o encontro, no aeroporto, com Nuno Simões, antigo ministro
do comércio antes da Ditadura, amigo e cúmplice de luta, quando
não conteve as lágrimas e, com amável comiseração pela sua
presença, objetou: “Escusavas de cá vir, que eu ia já a tua
casa” (13); ou, em destaque,
frases em que comparou os tempos que se viveram no país como ao
tempo da dominação dos Filipes, tempos de atropelo, e, apelou
aos “novos” para se comprometerem, porque lhes competia,
“governar e conduzir Portugal para os seus verdadeiros destinos”
(14). Da entrevista intimista concedida à “Capital”, focou os
tempos de estudante, de revolucionário, na Escola do Exército.
Em Angola, nos dois anos e meio que passou no sul, na zona do
planalto de Huila, junto com uma coluna de “boers”, recordou o
facto de ter sido dado como desaparecido e, a sua mãe, na
Metrópole, ter mandado rezar missas, pela sua alma; o regresso a
Portugal e a luta, entre a vida e a morte, desencadeada contra a
pneumónica; a visita do irmão Francisco, então comandante de uma
companhia da Guarda Republicana, com as notícias calamitosas da
reimplantação da Monarquia. Confessou que, apesar de ter no
Brasil os quatro filhos e seis netos, pretendia ficar no país
até à efeméride do “5 de Outubro”, comemorada com os
compatriotas, durante quarenta anos, no Centro Republicano
Português, e sempre, com a convicção de que no próximo ano,
estaria em Portugal. Sarmento teve uma aspiração, que coexistiu
com o facto de, de se julgar com direito: ser deputado,
apresentar-se às eleições legislativas, “subir ao Parlamento
para pedir Paz, Liberdade e Justiça para todos” (15). Nos anos
que lhe restavam, tencionava passa-los entre Portugal e o Brasil
para, “viver no verão todo o ano”.
No dia 17, sexta-feira, viajou para o Porto,
de comboio, acompanhado de um sobrinho, António Pimentel das
Neves, de António Macedo e de outros socialistas que o foram
esperar a Espinho. Na viagem de Aveiro para a Invicta concedeu
uma entrevista ao jornalista Daniel Rodrigues, do “Comércio do
Porto”. Da conversa, com enfoque nos ideais da “Liberdade,
República e Democracia”, Sarmento Pimentel partilhou a opinião
sobre a personalidade evangélica do “fradalhão de Santa Comba”,
que acreditava ser infalível e inspirado celestialmente.
Reiterou a disponibilidade para integrar a campanha eleitoral e,
tal como qualquer português, sentia-se, de facto, no direito de
se apresentar ao povo como candidato a deputado pela
Constituinte. Relativamente à posição de Portugal no Ultramar,
questão controversa, o capitão tinha esperança de que o governo
Provisório resolvesse esse problema insano. Referiu ter
sugerido, há vinte anos atrás, por ocasião das comemorações do 5
de Outubro, uma confederação de nações de língua portuguesa com
capital simbólica em Nova Lisboa, tendo sido, considerado um
ultraje, por parte dos “analfabetos do regime deposto”. Aludiu
ainda, a figura de Humberto Delgado, mártir do país, mandado
assassinar, de metralhadora, pela PIDE, facto esse que constava
no processo, mas, cuja sentença, Franco, tinha mandado
suspender, após ter sido dada pelos juízes espanhóis (16).
Estação das
Devesas,
18.45 horas, entre a multidão que aguardava a chegada do
comandante Sarmento Pimentel, encontrava-se José Luis Nunes,
Beatriz Cal Brandão e José Neves. Às 19.05 o comboio deu entrada
na gare da estação da Campanhã e um clamor de vivas ecoou por
parte da “imensa multidão”, constituída pelos dos democratas
presentes, alguns familiares e uma representação de Eixes, sua
terra natal, identificada por cartaz que dizia “Eixes presente”,
que impossibilitou a aproximação à carruagem, do repórter do
“Primeiro de Janeiro”. Numa janela da composição, o Capitão
acenava, registando a “alegria pura, a do povo que o aclamava”(17).
Na gare, a bandeira do Partido Socialista balançava ao vento,
“sobressaindo, em braços, um busto da República”. O povo
proferia o slogan “o povo unido jamais será vencido”
(18) e, de novo, através de um megafone, se ouviram as palavras,
tantas vezes repetidas: “temos por obrigação defender a
República e a democracia”; felicitou, no discurso, o movimento
das Forças Armadas e ambicionou, um Portugal feliz e, para todos
os portugueses, o direito de viver, de ter uma família e de não
estar na angústia de saber se no dia seguinte “têm pão para os
seus filhos” (1). Dirigiu-se, então, com dificuldade, entre as
alas de militares da Polícia Militar, ao som das palavras
entoadas pela multidão “O Povo unido”, sendo conduzido ao
Quartel-General, onde foi recebido no salão nobre, dirigindo-se
de seguida, para casa.
Às 21.30 h, presidiu a um comício do Partido
Socialista, no pavilhão do Palácio de Cristal, onde se reuniram
“muitos milhares de pessoas”, que afluíram antes da hora
marcada. Sentados a seu lado, “Mário Soares, António Macedo,
Salgado Zenha, Ruy Luís Gomes, Maria Barroso, Mário Sottomayor
Cardia, Tito de Morais, Ramos da Costa, Vilhena de Andrade,
Mário Cal Brandão, Coelho dos Santos”, entre outros … vindo
Sarmento Pimentel, “com o coração rejuvenescido” a encerrar o
comício, ao som do cântico da “Internacional” e o Hino Nacional.
As notícias apressuradamente tornam-se
efémeras e breve foi a que divulgou a ocorrência de um jantar de
homenagem ao Capitão, no dia 22 de Maio, prestada por um grupo
de democratas, numa estalagem em Aboinha, na estrada marginal do
Douro.
No mês seguinte, o seu regresso a Portugal
foi saudado “comovidamente” pela “Seara Nova”[19],
que enfatizou a “figura exemplar de português” e o facto de ter
sido um dos fundadores da revista, tendo integrado o primeiro
corpo diretivo. Uma pequena biografia encerrou a notícia, com
ênfase para o confronto contra o regime, através do “Portugal
Democrático” de que era diretor, condenando a política colonial
salazarista e a guerra do Ultramar.
Terminou o périplo em território nacional e
regressou a São Paulo. Sarmento tencionava, nos anos que lhe
restavam, passa-los entre Portugal e o Brasil. Não foi deputado.
O homem que fez surgir cravos em Maio, em Portugal e no Brasil,
desejou um país novo, para o Homem novo.
Ilda Crugeira
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