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PREFÁCIO - JOSÉ GUILHERME REIS LEITE |
Uma análise atenta do último quartel do século XIX nos Açores faz sobressair um surpreendente contraste entre uma sociedade marcada pelo ruralismo característico das periferias e uma dinâmica e actualizada elite urbana capaz de gerar personalidades que mostravam estar na vanguarda dos movimentos culturais da sua época. A cidade de Ponta Delgada é um claro exemplo disso. Por volta do início da década de 80, a cidade acompanhava activamente as grandes questões que agitavam a sociedade portuguesa e vivia com apreensão o clima de mudança que se implantava em Portugal. O ideal da Regeneração e o arranjo político que se impusera a partir de 1851 estava a chegar ao fim e parecia evidente que já não correspondia às necessidades da actualidade. Por toda a cidade viviam-se momentos de apreensão, uma quase agitação, devido àquilo que os micaelenses aceitavam como um momento de grave crise económica e social que devastava a ilha. Os sustentáculos económicos estavam abalados. O comércio da laranja definhava, perdia os mercados e afundava-se numa crise de produção acelerada pelas doenças que infestavam as plantações. A produção de cereais, essa também, era sacudida por dificuldades devido a deficientes colheitas, com consequente falta de milho para alimentar uma população em crescimento e agravava-se ainda por moléstias na vinha, nas batatas e, até, nas favas e feijões. O cereal que se podia exportar não encontrava, por outro lado, mercado compensatório no continente português, seu único refúgio, devido à concorrência dos produtos similares estrangeiros, produzidos a preços baratíssimo. Era, aliás, tudo isto que em linguagem alarmante especificava a comissão de ilustres personalidades que o governador civil fornlara para o aconselhar e para o auxiliar em medidas urgentes, a fim de se responder à crise. Mas a comissão era um grupo de eminentes personalidades da elite social que detinha o poder e estava longe de representar toda a sociedade micaelense, havendo outros grupos que, embora não sendo chamados à representação oficial e à roda do gover- nador, não estavam dispostos a acomodar-se e a silenciar o seus pareceres. A resposta social à crise era, mais uma vez, a tentação de regular a emi- gração, servindo-se dela como escape para garantir a permanência das linhas de força que mantinham a prosperidade da ilha na sua componente agrícola e comercial e que exigiam um equilíbrio sempre pronto a quebrar-se entre a mão-de-obra necessária e o excesso populacional tido por prejudicial aos interesses estabelecidos. As oposições viam, contudo, o panorama por outros prismas e protesta- vam pela falta de imaginação dos governantes para responder à crise, que admitiam existir. Alvitravam, porém, que a resposta teria que ir além das tradicionais medidas e que exigia outra dinâmica social, geradora de mais trabalho. Mas, de uma forma geral, encarava-se a crise como momentânea e capaz de ser ultrapassada, variando só a opinião sobre as medidas a tomar. Dela iria mesmo nascer um novo ciclo económico com incidência nos investimentos na indústria transformadora dos produtos agrícolas novos, como a batata-doce, e capaz, essa indústria, com destaque para a do álcool, de modificar a estrutura tradicional. A ilha tinha agora pretensões de acrescentar à centenária função de produtora de géneros primários animadores de correntes comerciais, produtos transformados que garantiriam uma mais-valia aos capitais investidos, mas também uma diversificada melhoria na utilização da mão-de-obra. A sociedade micaelense, mesmo vagarosamente, dava sinais de se modernizar e isso trazia consequências inevitáveis na estrutura social, económica e política, era por tudo isto que os sectores mais atentos da opinião pública se reorganizavam. As duas correntes de opinião agregadoras dos interesses e das aspirações políticas e culturais da Regeneração (os Regeneradores e os Progressistas) cada vez se mostravam mais incapazes de manter a sua supremacia e outras formações surgiam como concorrentes. De entre elas destacava-se a dos republicanos, que em 1880 se estruturavam na cidade e contribuíam activamente para animar o panorama. Passaram a ombrear com os outros, até mesmo ao nível do seu novo jornal, a República Federal, que denodadamente intervinha no quotidiano e se esforçava por agitar as águas. Pretendia encontrar uma resposta nova que libertasse a sociedade micaelense das peias e das consequências da intervenção das medidas gerais portuguesas, dentro da lógica do seu pensamento descentraliza- dor. Para os republicanos deste período, essencialmente teóricos e idealistas, a resposta para a problemática insular não se afastava da resposta geral às questões nacionais. O federalismo era para os Açores um caminho excelente, porque permitia nas condições tão características do arquipélago (distância da metrópole, isolado no meio do Atlântico e abandonado pelos poderes públicos em época de crise) permitia, dizia o jornal, encontrar respostas para todas as crises e para todas as liberdades inerentes à cidadania. Não explicavam muito claramente, é certo, como funcionaria essa nova orgânica, mas ficava a certeza de que ela só era possível numa nova organização política geral e para que tal nascesse, uma coisa se pressupunha: a substituição do caduco regime monárquico constitucio- nal por um regime republicano e a existência de um federalismo geral. Isto é, o federalismo para ser eficaz não podia existir só nos Açores. Mas o mais surpreendente é que tais opiniões faziam caminho e os monár- quicos não isolavam com clareza a propaganda republicana, aceitando conviver com ela e até, nalguns casos, concordar com os meios propostos, o que fazia que os teóricos da República Federal ascendessem ao círculo dos condutores acre- ditados da sociedade. Um sintoma claro deste fenómeno foi a participação conjunta nas comemorações locais do centenário de Camões, em 1880, e no do marquês de Pombal, em 1882, ficando a crítica e a oposição a tais movimentos cívicos e políticos para os sectores reaccionários da sociedade, ligados a uma hierarquia ultra-conservadora da Igreja Católica, que se exprimia através da Civilização. Assim, em vez do desânimo e do desalento que tradicionalmente as crises arrastam consigo, o tempo era de um fervilhar de ideias, de propostas e de soluções para sair do mau momento em que se vivia. Não se excluía mesmo que as propostas geradas fora do tradicional círculo do poder instituído fossem em parte aceitáveis e pedia-se até a colaboração de muitos desses críticos para se constituir uma nova sociedade. Se quisermos concretizar, o caso de Aristides Moreira da Mota, a quem estava reservado um papel proeminente no futuro, é exemplar. Jovem bacharel regressado de Coimbra, ia-se transformando num crítico lúcido e impenitente da burguesíssima sociedade da sua terra natal, que viera reencontrar, mas que analisava agora com outros olhos. Inclinava-se para soluções fora do sistema instalado e não se coibia de participar activamente na República Federal, mas bruscamente compreendeu que para ser eficaz teria de colaborar com o poder, que apesar de tudo o que se dizia estava de pedra e cal. Aproximou-se dos regeneradores e, a breve trecho, era aceite como um dos jovens promissores capazes de ajudar por dentro a transformar a sistema político e partidário, ao ponto de vir a ser eleito deputado, depois de ter presidido à Câmara de Ponta Delgada em 1884. Era bem verdade que (desde cedo a monarquia duvidava da sua eficácia como sistema político e ia relegando para lugar secundário a discussão teórica em volta desse assunto para preferir abordar a eficácia da acção. Chamemos-lhe um pragmatismo, talvez perigoso, mas que na década de 80 ainda não assustava suficientemente para que os monárquicos recusassem a colaboração dos republicanos e que estes não aceitassem também relativizar os seus ideais em nome da necessidade de colaborar para atingir por metas os fins últimos da tranformação social. Mas um fio condutor ia vingando nesta amálgama de propostas e de compromissos, a ideia de que os Açores, para se salvarem, teriam que contar antes de mais com os açorianos e que a experiência integradora na política do Reino havia falhado. A Regeneração fora incapaz de resolver os problemas básicos da sociedade insular e nem sequer a política de obras públicas conseguira equipar as ilhas com as infraestruturas indispensáveis. Os açorianos sentiam-se excluídos e marginalizados, abandonados mesmo, nos períodos mais difíceis e os governos centrais não só eram insuficientes para resolver os problemas, como surgiam aos olhos de todos (era isso um dos consensos que emergia) maléficos para as ilhas. A saída da crise pressupunha um afastamento corajoso. Em todas as correntes de opinião se podiam ler os sinais desta nova tentação, variando simplesmente o grau que tal afastamento devia atingir e o ritmo que se devia utilizar. Contudo, estava encontrada a causa principal da situação de crise e delineado o caminho a seguir. Daqui saíram também, em paralelo, os ideiais de aprofundar as diferenças que caracterizavam os açorianos e os Açores e, por isso, no meu prisma, não é separável a política da cultura e da ciência. O pensamento sobre a identidade do açoriano, que inevitavelmente levava ao acentuar das diferenças, é um todo e só pode ser compreendido se for abordado pelos seus diversos prismas. Aliado a isto está, é óbvio, o espírito característico do século XIX, de abordar estas questões pela ciência e pelo experimentalismo. É assim que se compreende que um homem como Carlos Machado, em 1880, alie profundamente a sua actividade de naturalista empenhado na montagem de um museu das ciências naturais, com uma actividade política muito participativa. Como cientista estudava os Açores nos seus particularismos e aprofundava aquilo que individualizava as ilhas e, como político, pugnava por soluções específicas para atalhar aos problemas insulares, que a experiência mostrava não puderem ser as mesmas que respondiam à problemática continental. Haviam levado mais de meio século para chegar a esta conclusão, mas ela agora surgia com uma clareza meridiana. Ora, Arruda Furtado não é uma excepção a esta interpretação e se esta complementariedade não surge tão claramente na sua actividade, fica a dever-se às condições da sua formação de autodidacta, ao seu afastamento da sociedade micaelense e à sua morte precoce. Mas Arruda Furtado foi um homem do seu tempo, autodidacta por imposição das condições sociais, militante das fileiras republicanas, certamente por escolha ditada também por condicionalismos sociais e económicos e cientista das correntes que procuravam ler na Natureza e nos homens uma explicação para compreender os Açores e os açorianos. As cartas que o Prof. Luís Arruda agora publica são, na minha leitura, bem demonstrativas disso mesmo, pelos temas científicos que o entusiasmavam, pelos interlocutores que privilegiava, pelo contínuo aprofundamento das linhas de investigação que procuravam o particular do mundo das ilhas, enfim, por tudo o que ocupou a vida deste cientista que a sociedade micaelense, apesar da sua abertura, não foi capaz de fixar e aproveitar inteiramente. Arruda Furtado é uma personalidade central da cultura açoriana do último quartel do século XIX e principalmente por ser um pioneiro no desbravar do mundo apaixonante da nossa identidade. Apreendeu, como, aliás, muitos outros antes e depois dele, que os açorianos eram diferentes e pretendeu encontrar explicações para essa diferença. Foi, contudo, menos feliz ao apontar um caminho para o aproveitamento das diferenças que outros, seus contemporâneos, desesperadamente procuravam, mas a explicação para tal estará nas próprias conclusões a que chegou. Ao estudar os micaelenses, os camponeses micaelenses, a que propositada- mente reduziu o seu campo de pesquisa, não se pode dizer que tenha gostado daquilo que viu. Julgou ter encontrado uma "raça" inferior e procurou explicar a causa desse fenómeno. Aí, temos hoje a percepção disso, falhou porque seguiu o caminho do evolucionismo e não explorou explicações sociais e económicas, como outros tentaram fazer. Ao decidir-se pela explicação positivista de que a selecção natural não fora suficiente em S. Miguel e, como tal, levara ao degenerar da raça, estava a optar por um caminho sem saída e eivado de incongruências, mas abria uma interessantíssima polémica cultural que havia de chegar aos nossos dias. Mas é bem claro que o caminho da diferença pela inferioridade não era entusiasmante e muito dificilmente poderia servir de fundamento para futuras opções políticas, sociais, económicas ou culturais. Isto, creio bem, explica porque Arruda Furtado foi abandonado à sua sorte e o seu nome esquecido pela intelectualidade açoriana e só agora ele é ressuscitado para a nossa cultura, mas essencialmente como um naturalista e só recentemente nas áreas em que a sua obra, contudo, é mais estimulante, a antropologia cultural. Os mestres que lhe seguiram o caminho separaram-se dele e vieram a construir a imagem do açoriano, também pelo prisma da diferença, mas pela positiva e até pela superioridade e, consequentemente, vieram a ditar as orientações teórias e justificativas das novas opções para os Açores. A Arruda Furtado, nesse campo, coube somente a função de pioneiro, mas um pioneiro propositadamente votado ao esquecimento. |