CORRESPONDÊNCIA CIENTÍFICA DE FRANCISCO ARRUDA FURTADO
INTRODUÇÃO - LUÍS M. ARRUDA

Francisco de Arruda Furtado nasceu em Ponta Delgada (Açores), a 17 de Setembro de 1854. Com 22 anos, quando desempenhava funções de amanuense na Repartição de Fazenda daquela cidade, foi convidado por José do Canto para trabalhar como escriturário na sua casa comercial, cargo que desempenhou durante 7 anos.

Colaborador de Carlos Machado, com quem se relacionou a propósito da oferta de duas pedras que havia recolhido e julgava de valor científico, contribuiu para a fundação do Museu de Ponta Delgada (1880) e incluiu o grupo de naturalistas açorianos, que veio a organizar-se em tomo desta instituição, com Tavares Carreiro, Canto e Castro e Afonso Chaves.

Em 1882, integrou a comissão organizadora da exposição de artes, ciências e letras realizada no Liceu de Ponta Delgada, tendo sido expositor de trabalhos populares, de publicações e de desenhos a óleo e a lápis da sua autoria sobre paisagem e anatomia vegetal e animal.

Transferiu-se para Lisboa, em 1885, quando passou a trabalhar no Museu de Lisboa, na Escola Politécnica.

Foi membro honorário da Philosophical Literary Society de Leeds e da Sociedade de Geografia de Lisboa. Proposto por Barbosa du Bocage para membro da Academia das Ciências, não chegou a ser nomeado por entretanto ter falecido.

Segundo o assento n° 37 lançado no livro de óbitos da freguesia de S. Sebastião de Ponta Delgada, faleceu na Fajã de Baixo, arredores desta cidade, a 21 de Junho de 1887.

Como naturalista, Arruda Furtado foi um seguidor da teoria de Darwin que apareceu em 1859, com a publicação da obra On the Origin of Species by Means of Natural Selection, para explicar a evolução dos seres vivos, no prosseguimento da discussão sobre o dinamismo das coisas que vinha sendo sustentada desde a antiguidade clássica. A iniciativa de se dirigir por carta a este naturalista transmite não apenas muito apreço mas também o desejo de receber, directamente, orientação para o seu trabalho. Os 7 pontos, inscritos por Darwin na carta de 3. Jul. 1881, são um verdadeiro plano de trabalho tendo em vista apoiar os objectivos do estudo de Furtado inscritos por este na sua primeira carta: Mon but est de comparer avec Ia faune continentale americaine et européenne, afin de jetter quelque lumiere sur l'origine des espèces açoréennes.

A capacidade de observação e interpretação dos fenómenos da natureza proporcionou-lhe a elaboração de vários projectos de investigação científica, especialmente na área da Malacologia. Compreende-se facilmente o interesse que esta ciência terá despertado em Arruda Furtado, se tivermos em consideração a importância dos moluscos terrestres no averiguar da origem das espécies insulares à luz da teoria evolucionista. Ao tempo, os moluscos terrestres eram considerados mais próprios aos estudos zoogeográficos do que as aranhas, julgadas, pela sua suposta maior facilidade de transporte, servirem pouco ao esclarecimento daquele objectivo como refere em carta de 15. Nov. 1880, a Eugene Simon: Mon esprit s' est même détourné un peu de I' étude de ces animaux, sans contredit vraiment intéressants, mais dont les faits de distribution géographique ne parlent si haut que ceux qui ont égard aux mollusques terrestres, et comme Ia question de I' origine des especes, m ' a fortement saisi je me suis jeté dans I' étude de ces derniers (surtout I'anatomie interne), étude qui d'ailleurs est plus en harmonie avec mon gout, [...].

No que toca à malacofauna dos Açores, Arruda Furtado, duvidando da hipótese da dispersão das espécies por icebergs, no período pós Würm, formulada por Darwin, em 1878, entendia que a maior parte das espécies devia ter alcançado o arquipélago, segundo os meios naturais de dispersão, que outras teriam resultado de modificações causadas pelas condições do solo, ainda outras por hibridação, e que uma pequena parte teria sido introduzida pelo homem durante as escalas feitas nestas ilhas. Assim, por exemplo, algumas espécies de caracóis foram, segundo a teoria de Woodward, introduzidas por marinheiros portugueses que as usavam a bordo como alimento fresco. Outras espécies originárias da Madeira teriam sido introduzidas com a cana do açúcar e com o lastro dos navios. Mas, Furtado necessitava de provas como refere numa carta, com data de 02. Fev. 1882, a A. O. Wetherby: [...] pour arriver moi-même à quelque conclusion, il me faut une étude comparative de Ia coquille, comme fil conducteur pour arriver à découvrir les espèces dans lesquelles il sera permis de supposer les relations qui pourront nous mettre en évidence la filiation spécifique probable. Il me faut donc posséder les espèces continentales (américaines et européennes) qui sont communes aux Açores et les especes des deux continents qui sont comparables aux espèces endémiques de l'archipel que j'habite.

Nestas circunstâncias, anunciou, no lntemational Scientist's Directory, a sua disponibilidade para trocar conchas dos Açores por outras de qualquer parte do mundo, tendo em vista organizar uma colecção geográfica, como refere ( conferir carta de 31. Out. 1883 a R. Büttner). Estes interesses explicam que os seus correspondentes fossem, principalmente, da costa atlântica dos Estados Unidos e da Europa. A correspondência trocada com G. Nevill, do museu de Calcutá, quando pretendia encontrar relação de parentesco entre o que naquele tempo era entendido ser Viquesnelia atlantica, nos Açores, e V. dussumieri, na Índia, procurava explicar origem mais longínqua. Assim, a 30. Mar. 1882, Furtado escrevia a Nevill: L' lnde, comme vous savez, a été un lieu de communications portugaises directes quelquefois avec les Açores; aussi est-il permis de supposer que quelques espèces malacologiques indiennes seraient distribuées sur nos îles dans des bois des constructions, qu' on importait pour les églises et pour des meubles, tonneaux, etc; la Viquesnelia est peut-être un de ces cas. Todavia, o desejo de constituir reserva de material para troca levou-o a propor e a aceitar conchas de outras origens como a costa leste dos Estados Unidos, as ilhas Sandwich (Hawai) e a Nova Caledónia. Deste modo, uma parte considerável da correspondência recolhida nas páginas seguintes trata do comércio de troca de conchas que Furtado manteve, tendo em vista organizar uma colecção que lhe permitisse estudar a origem das espécies insulares à luz da teoria evolucionista.

Arruda Furtado conhecia, dos seus trabalhos, as modificações provocadas pela insularidade sobre os moluscos terrestres e tinha notícia das modificações sobre a flora e a entomofauna. Mais, entendia que os efeitos da insularidade deviam influenciar também o homem açoriano mas que este estava completamente por estudar do ponto de vista antropológico. Introduziu-se na área da Antropologia para estudar a origem do povo micaelense, actividade que desenvolveu em paralelo com a divulgação daquela ciência. Neste contexto escrevia, em carta com data de 18. Out. 1882, dirigida a Adolfo Coelho: [...] as condições económicas e sociais de existência são tão outras do que eram há apenas vinte anos, que eu cuido assistir à transformação de que o grupo humano micaelense pode ser susceptível. Agarrar o mecanismo da transformação, tal é a preocupa ção metafísica ( ? ) de nós outros. Eis o que explica a minha febre.

Numa outra carta com data de 13. Nov. 1882, dirigida a Teófilo Braga, explica: [...] na ilha [de S. Miguel], [...], há diferenças capitais no tipo fisionómico, na moral, no vestuário, no timbre e inflexão de voz, de freguesia para freguesia. De ilha para ilha há também diferenças ainda mais profundas. Isto reveIa um vivo interesse, revelando origens diversas, e, autorizadas pela insularidade do meio, fazendo-nos esperar resultados de muito valor: [...] Nós sabemos, e todos os viajantes notam, que o aspecto físico e mental do fundo da população micaelense difere dos do fundo da população portuguesa do continente mesmo dos povos do norte, de onde é opinião geral que descendemos. Parece pois haver uma diferenciação da raça. Como formulá-la de um modo seguro sem documentos sobre o povo continental ? De que elementos se formou a população actual? Pelo que respeita à classe mais ou menos ilustrada temos um grande elemento para conhecer seguramente a sua origem étnica e os factos mais directos da sua constituição mental, nas genealogias. Mas o povo, o camponês, aquilo exactamente que eu devo e quero estudar?

A este gosto de Furtado pela Antropologia, que o colocou entre os seus pioneiros, em Portugal, não são estranhos os estudos de Gustave Le Bon e do seu conterrâneo Francisco de Paula e Oliveira, ambos seus correspondentes.

Mas os estudos malacológicos e antropológicos não o impediram de se dedicar a outras áreas científicas. Assim, tendo verificado que as aranhas dos Açores não tinham sido estudadas, orientou a sua atenção para estes animais, formando uma colecção que enviou ao aracnologista francês Eugène Simon, o primeiro dos seus correspondentes, que aceitou determinar exemplares e cujos resultados publicou em 1883.

Com o objectivo de conhecer a distribuição de algumas plantas, e numa iniciativa a que não foram alheios os conselhos que recebeu de Darwin, Arruda Furtado efectuou duas excursões que forneceram material com que organizou dois pequenos herbários, remetidos, por indicação de Darwin, a J. Hooker, então director dos Jardins de Kew, com quem se correspondeu a propósito. O estudo destas colecções foi feito por J. G. Baker e a lista respectiva encontra-se junto da correspondência que trocou com este.

Com o objectivo de divulgar a fauna açoriana enviou coleópteros e hemípteros a Maurice Sédillot, a Richter Lajos e a A.-L. Montandon, convidou Edmond Perrier e Odo-Morannal Reuter a estudarem minhocas e poduros, respectivamente, e C. O. von Porath a receber uma colecção de miriápodes.

Esta actividade de Arruda Furtado aparece certamente relacionada com a passagem de naturalistas estrangeiros pelos Açores, desde meados do século XVIII, que se dedicavam, principalmente, ao estudo da fauna, da flora e da geologia. Mais, esse interesse pelo arquipélago aumentou desde que Darwin publicou a sua obra, tendo mesmo originado um número considerável de publicações. Essa circunstância relacionou-se com o facto de estas ilhas, nascidas do mar, poderem suportar formas faunísticas e florísticas de transição entre as regiões Paleártica e Neártica.

Não obstante o interesse da comunidade científica internacional pelas ilhas açorianas, apenas alguns poucos açorianos se manifestaram pelo estudo das ciências da natureza, pois só na segunda metade do século XIX, em Ponta Delgada, aconteceu ter convivido um pequeno grupo de naturalistas, em torno do gabinete de ciências naturais do liceu da cidade, depois museu, e de alguns jardins particulares.

0 museu incluía preferencialmente espécies açorianas, interessando simultaneamente aos alunos, ao público em geral e aos naturalistas que procuravam os Açores. Todavia, segundo Furtado, os naturalistas do Talisman, Fischer e Perrier, queixaram-se-nos de que o Museu de Ponta Delgada não fosse um museu local exclusivamente, e disseram-nos que sob este ponto de vista ele estava longe do Museu das Canárias (conferir espólio de Arruda Furtado, Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, plano para História da Zoologia, livro 3, o ensino, e Revue Scientifique, Les Açores au point de vue scientifique, Gazette Française du Portugal, 2: 3,2 Dez. 1884). Mais, foi um centro de pesquisa, principalmente taxonómica, como era uso na época, com alguma projecção internacional. De modo idêntico, o ambiente intelectual, em Portugal, era dominado pela classificação zoológica, sem interesse pela problemática do evolucionismo e da anatomia. Esta circunstância marcou a actividade de Arruda Furtado no Museu de Lisboa quando aparece envolvido com a organização de colecções, geral e típica, e com a descrição de espécies vindas de África.

Neste volume está reunida a correspondência científica de Arruda Furtado encontrada na Biblioteca do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa e no Arquivo Histórico do Museu Bocage e ainda 3 outras, de um conjunto de 9, particulares, no fundo documental de Armando Côrtes-Rodrigues existente no Museu Carlos Machado. Aquelas 3 foram incluídas por referirem a colocação de Furtado no Museu de Lisboa. Foram inventariados 345 documentos, 12 considerados anexos, organizados por correspondentes num total de 78. A ordenação dos correspondentes segue a cronologia referida à data do primeiro documento inventariado. Aos documentos foram justapostas outras notas como auxiliares da leitura. A ortografia foi actualizada, segundo as normas em vigor, mas a grafia das assinaturas, a sintaxe e a pontuação originais foram respeitadas. A diferença entre American English e British English foi observada. Os binomes em latim foram escritos em itálico. Todas as palavras acrescentadas no texto, incluindo o desdobramento das abreviaturas, aparecem entre parêntesis rectos. As palavras apagadas ou cuja leitura não foi possível aparecem assinaladas com [?]. O travessão / significa que no original de Arruda Furtado se passou à página cujo número é indicado, a seguir, entre parêntesis recto. [sic] significa conforme o original. A cada documento foi atribuído um código referindo a instituição depositária (M. C., Museu de Ciência; A. H. M. B., Arquivo Histórico do Museu Bocage, M. C. M., Museu Carlos Machado) e um número. A apresentação do texto no original não foi respeitada.

Foram organizadas notas biográficas de correspondentes e de outras personalidades referidas nos documentos, relevando para os açorianos e para aqueles que se relacionaram com os Açores.

Os sumários dos documentos, organizados cronologicamente, têm por objectivo mostrar a sequência das matérias tratadas por Arruda Furtado e a evolução temporal do seu pensamento científico.

As referências das obras bibliográficas contidas nos documentos foram organizadas em lista ordenada alfabeticamente.

Com os nomes científicos referidos nos documentos foi elaborada uma lista, organizada alfabeticamente, incluindo ácaro, aves, briozoários, coleópteros, crustáceos, hemíptero, hidromedusa, moluscos, morcegos, peixe, plantas e répteis. A grafia dos nomes científicos e dos autores é aquela usada nos documentos.

A preparação deste trabalho foi apoiada pelas bibliotecas da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, do Jardim, Laboratório e Instituto Botânico da Universidade de Lisboa, do Departamento de Zoologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, do Instituto Geológico e Mineiro, do Centro de Zoologia do Instituto de Investigação Científica Tropical e da Câmara Municipal do Porto; pelo Arquivo Histórico e pela biblioteca do Museu Bocage da Universidade de Lisboa; pelo Arquivo Histórico Militar, pelo Director do Museu Carlos Machado e ainda pelos Professores Artur Teodoro de Matos, Jorge Eiras e Luís Mendes, pelos Drs Paulo Pinto, Maria Estela Guedes, Hugo Moreira, Fátima Veloso, Manuel Oliveira Silva e João Paulo Constância e ainda por Erik Ahlander e Ann-Katrin Gustafsson do Naturhistoriska Riksmuseet, Estocolmo, J.-F. Voisin do Museum National d'Histoire Naturelle, Paris, A. Leprêtre do Biologische Bundesanstalt fiir Land-und Forstwirtschaft, de Berlim e Elisabetta Cioppi do Museo di Storia Naturale, de Florença.

A revisão dos documentos para actualização das línguas francesa, inglesa e portuguesa foi das Dras Manuela Gamboa, Lídia Lopes e Maria Augusta Bravo.

O financiamento foi da Secretaria Regional da Educação e Assuntos Sociais (Direcção Regional da Cultura) do Governo Regional dos Açores (Projecto Levantamento e estudo da correspondência científica de Arruda Furtado) (50%) e do Instituto do Mar, IMAR (10%).

A todos se agradece.
Lisboa, Junho de 2000