FEIJÓ
NATURALISTA BRASILEIRO
EM CABO VERDE NO SÉCULO XVIII (3)
Maria Estela Guedes e Luís M. Arruda*

FRAGMENTOS DAS CARTAS DE FEIJÓ PARA O MINISTRO
MARTINHO DE MELLO E CASTRO

PRIMEIRA CARTA

Ilha Brava, 1 de Junho de 1783

Feijó presta logo á entrada uma informação pouco conhecida, por em geral pensarmos que Vandelli estava directamente ligado aos viajantes, o que não acontecia, dadas as suas muitas ocupações. Quem, no caso pelo menos de Feijó, dava instruções técnicas, era outro professor de Coimbra, vindo também de Itália, Miguel Franzini: a relação que eu tenho a honra de apresentar a V.Exª das muitas viagens na real expedição a estas ilhas de Cabo Verde, de que, por ordem de Sua Majestade F.F. e sábia direcção de V.Exª, fui encarregado, não é por ora mais do que um itinerário das minhas primeiras observações, as quais, conforme as últimas instruções que recebi do Dr. Franzini, por ordem de V.Exª, compreenderão em suma a Orictografia, a Geografia física, com a Moral destes povos, sem as longas, e particulares explicações, que se me não perderão de vista para as comunicar a V. Exª quando me permitir.

Relata de seguida a sua viagem, desde a saída de Lisboa até chegar à ilha Brava. Tendo saído de Lisboa a 3 de Fevereiro de 1783, chegou à Madeira após 16 dias de viagem, e à ilha do Sal 11 dias depois de ter deixado aquela. Ficou no Sal durante dois meses, mas não fez quaisquer observações filosóficas, por impedimento do Bispo das ilhas, D. Francisco de S. Simão, a quem ia recomendado.

A 16 de Abril, na companhia do prelado, partiu para Santiago, com escala na ilha de Maio, onde chegou a 17 e se demorou 8 dias. Desembarcaram na Praia e aí passaram a Páscoa. Passada a última oitava recebeu o dito Prelado a posse do governo interino destas ilhas, em que Sua Majestade tinha feito a honra de o promover e, deixando em seu lugar para o governo da ilha o oficial de maior patente, partiram para a Ribeira de Prata, sítio junto ao Tarrafal, que ele havia escolhido como o mais saudável daquela ilha para a sua residência e fundação de um seminário (21) que devia servir para educação da mocidade destas ilhas [...].

Mais adiante, subestimando as opções do Bispo, de cujos movimentos vai dando conta ao Governo, Feijó anota a presença de macacos em Cabo Verde, que só recentemente foram alvo de estudo científico (22) : Num lugar muito desabrido, muito cálido, estéril, doentio, e deserto, onde se vêem rochas escarpadas, povoadas de inumeráveis cabras bravas, e chusmas de macacos devoradores e destruidores de todos os frutos que ali se pudesse produzir: eis aqui, Senhor, em poucas palavras, a verdadeira descrição do belo sítio que este prelado, contra o parecer de todos os principais da ilha, tem escolhido para uma plantação de Letras, desprezando então um dos sítios mais aprazíveis, mais frescos e mais férteis daquela ilha, qual é a Ribeira da Trindade, de que a mesma Mitra é senhora.

Dias passados, D. Francisco de S. Simão tentou chegar outra vez à ilha de Maio, ali deixando Feijó com três rapazes da sua família, durante 8 dias. Voltou a 16 de Maio com a intenção de o levar para a Brava. Com efeito, no dia 19 embarcaram para a Brava, a onde chegaram na manhã de 21. Passados 6 dias, aos 26 do mesmo mês tornou Sua Exª a embarcar no mesmo porto para a Ribeira de Prata, com a intenção de abordar a ilha do Fogo, para fazer conduzir consigo oficiais de pedreiros e carpinteiros, para onde deu à vela no dia seguinte, ficando eu ali para dar princípio, segundo as suas determinações, às minhas observações, com ordem de logo que as acabasse me passasse à ilha do Fogo, onde se encontraria comigo por todo o mês de Agosto; e dali a 7 dias, tempo que se gastou em aprontar gente, e fazer conduzir as cargas que estavam no porto, dei princípio ao meu trabalho, que vai a fazer o objecto das seguintes cartas [...].

SEGUNDA CARTA

Ilha Brava, 1 de Julho de 1783

Feijó situa a Brava geograficamente. Considera a ilha, de modo geral, composta de montes, os quais correm com a direcção de Noroeste para Sueste pouco mais ou menos, e estes são compostos de bancos de cós assentados sobre outros de pedra areenta dura e pesada, em que se observam cristais de basaltos de diferentes cores; entre estes bancos se descobrem veios de várias qualidades de terras e pedras, pela ordem que logo mostrarei quando ocasião o permitir.

"Os montes que correm pelo centro da ilha têm figura em Y, compreendendo em cada ângulo uma planície, a primeira que olha para o N chamada da Povoação, a 2ª que olha para o Este que se chama Campo, e a 3ª que fica para o Sul, que os habitantes denominam do Cachaço.[...] A cadeia de montes que eu disse atravessar a ilha vem a terminar imediatamente na Ribeira de Fajã (23) dÁgua, na ponta do Carvoeiro (24), terminação do monte do Risco Vermelho, que fica ao Este de Sorne (25), nome que lhe dão por ser a terra ocrácea; de sobre este monte se descobre uma grande baixa ou vale semicircular, cheia de verdura, a qual lhe chamam Lavadura e toda aquela ribeira da Fajã d'Água, que dali continua até ao mar. [...]. Esta me parece não ser mais do que uma grande rotura de um só monte, que ou o mar, na sua formação, ou outra alguma revolução natural, fazendo-a abater aquela porção, deixou ficar aquele plano; na elevação de todo este despenhadeiro deixa a natureza ver melhor a formação interior daqueles montes; ali se vêem bancos de pedra calcária confusamente misturada com lava, isto é, pedras queimadas, e cristais de schorl pretos, verdes, etc., os quais se desfazem facilmente à primeira pancada do martelo.

A nascente que dá origem à Ribeira do Vinagre e a sua água merecem relato detalhado: ela tem a sua origem em uma fonte que emana de entre umas grossas rochas, a qual correndo vai desaguar a uma enseada na mesma costa do Leste junto à ponta do Carvoeiro (26), formando a sua embocadura entre esta ponta, e a outra que lhe fica da parte do Norte, com o mesmo nome da ponta do Vinagre.

A água desta fonte tem um sabor ácido vitriólico muito forte, donde lhe vem o nome de água do vinagre. Porém não deixa sedimento algum de terra marcial: misturados com qualquer dos seus sais alcalinos, faz uma pequena efervescência e muda em vermelho a cor azul do tornesol. Parece que ela vem por alguma mina de sal da natureza da do Epson; porque com o tempo deixa um sedimento branco salino com o sabor amargo, e adstringente.

Refere ainda um veio de terra calcária, numas rochas sobre o mar, no porto da Furna, o chamado salitre da ilha Brava, que não é outra coisa mais do que um sal de base térrea semelhante ao que se chama sal de Epson, ou amargo de Inglaterra: o seu sabor é amargoso; exposto ao contacto imediato do ar liquefaz-se; lançado sobre brasas ardentes, depois de ele tomar tanto calor, detona, ou ferve como o nitro; dissolvido no ácido vitriólico faz uma pequena efervescência, o que não faz com alcalinos; eis aqui em suma a análise que o tempo permitiu fazer neste sal.

Este, quando fosse um produto de consideração, se fazia pouco apreciável, tanto pela pouquíssima quantidade que dele há nesta ilha, porque só se acha neste lugar, e entre pedras, como pelo grave perigo em que se expõe quem vai a tirá-lo, por ser necessário descer pela rocha atado pela cintura e dependurado como vai tirar urzela, por causa da eminência e despenhadeiro daquela rocha.

A terminar: Esta ilha é toda construída de montes de 2ª e 3ª classe: estes, como já disse, correm com a direcção quase de Leste Oeste e, à proporção que vão formando o centro da ilha, vão tomando também maior elevação. Os da 1ª classe são formados de uma pedra areenta rija muito compacta que sustenta bancos de cós e de outras pedras calcárias confusamente dispostas, nas quais se vêem embutidos pedaços de outras pedras heterogéneas de diferentes grandezas; ali bem deixam ver, juntamente pelos grandes vales que entre eles se observam, terem sofrido alguma revolução natural; todos os mais montes da 3ª classe são de uma natureza calcária e areenta a que chamam cós.

TERCEIRA CARTA

Ilha Brava, 8 de Julho de 1783

Na última carta eu tive a honra de relatar a V. Exª, o mais resumido que pode ser, a descrição geográfica física desta ilha; agora resta-me, para complemento deste mesmo objecto, mostrar qual seja o seu clima pela situação em que demora, qual a sua fertilidade, quais as doenças endémicas que se experimentam aí, os medicamentos de que se servem os seus habitantes, qual a natureza, carácter, vida e costumes deles, e como foi o seu descobrimento, etc. [...].

A propósito do clima, diz ele que Esta ilha quase sempre está coberta de espessas névoas, e por isso é fria como nenhuma das outras; a humidade ali é tanta que não se pode conservar papel algum, pelo que os seus cartórios estão na do Fogo; os mesmos, faltos de uso, apodrecem com facilidade e por isso mesmo é das mais férteis também: ali produz muito milho, muito feijão, muita hortaliça, muita batata, muita banana, e muito vinho; este se faz duas vezes no ano, porque duas vezes dá uvas no ano; além disso os seus montes quase se vêem cobertos de diferentes qualidades de plantas particulares, como em uma lista eu fiz ver a V. Exª, e algumas tão esquisitas como novas ao conhecimento dos naturalistas; em uma palavra, de todos os víveres é muito abundante, de sorte que uma galinha nunca passa de 2 vinténs, um porco, por maior que seja, dois mil réis, um alqueire de milho um tostão e o mais à proporção disto.

Certamente é muito sadia e a única doença que nela se experimenta mais perigosa é o carbúnculo, de que morrem muitos dos seus habitantes; será talvez pelo mau método de os curar; o remédio geral que para eles se aplica é o ferro logo no princípio e depois um emplastro de pez alcatrão e azeite de peixe; há também algumas febres nos tempos das novidades e estas são curadas com sangrias, sarjas e quintilio, de sorte que a este último, pelo grande uso que dele fazem, lhe chamam por antonomásia o Santo Quintilio, tanta é a fé que todos os naturais destas ilhas põem neste mal introduzido remédio, e posso assegurar que muitos morrem por tomarem intempestivamente este medicamento, pois por qualquer coisa de opressão, ou do estômago, ou de cabeça, que experimentem, logo tomam 10-12-16 até 24 gr. dele; tudo isto por falta de quem saiba conhecer as doenças, explicar-lhes o devido medicamento; porque se algum cirurgião por aqui aparece é certamente daqueles que nem ler o curso sabem; tal é a miséria em que vivem os pobres habitantes destas ilhas.

Este mesmo clima influi tão visivelmente nos temperamentos dos seus habitantes que logo que eles deixam aquela ilha para outra são imediatamente atacados de febres agudas que depois se transmutam para a classe das intermitentes, e por isso receiam muito sair para outra, principalmente para a de Santiago, para a de Maio e Boavista.

São quase todos os naturais desta ilha, fulos, dotados de um génio dócil e sincero, algum tanto maliciosos, muito obedientes aos brancos, principalmente inclinados à preguiça, excepto no tempo das águas, em que a necessidade obriga a todos procurar semear seu milho, feijão e abóbora, para terem que comer no restante do ano; são de mais a mais ignorantíssimos, libidinosíssimos, e lascivos em extremo, principalmente as mulheres, que de mais a mais são imodestas de todos os modos contempladas; todo o tempo empregam em bailes a que chamam zambunas (27), e outros divertimentos repreensíveis acompanhados de acções e movimentos licenciosíssimos, que desagradam à honestidade; finalmente são supersticiosos em alguns pontos de religião, como nas suas núpcias e funerais.

Termina descrevendo os casamentos e os funerais, o traje, a educação, o ensino, a alimentação e a administração civil e judicial.


CONTINUA


NOTAS

(21) D. Francisco tinha sido encarregado do povoamento de Cabo Verde. Várias ilhas estavam ainda desertas, como a que hoje é a mais importante, S. Vicente. Morreu pouco depois, por isso não viu a obra sonhada. A fundação do seminário de Cabo Verde, no qual se ministrava ensino de alta qualidade, veio a revelar-se um dos mais fortes motivos por que em Cabo Verde se gerou muito cedo uma literatura própria, à semelhança do Brasil, mas que não se verificou nas nossas outras colónias africanas.

(22) Alexandre Banha Sousa Andrade - “Estudo eco-etológico das populações de Cercopithecus aethiops na ilha Brava, em Cabo Verde”. Seminário de Investigação, Universidade Nova, 1999.

(23) O autor escreve “Feijão”, o que nos traz à lembrança remoques ao livro de Link & Hoffmansegg, “Voyage en Portugal”, por Link tratar Feijó por “Feijão”.

(24) O autor escreveu “Escarboeiro”. Na versão do “Ensaio Económico” de Feijó publicada n’ O Patriota (in Carreira), aparecem umas aves a que Feijó dá o nome de “escarvoeiros”, que os zoólogos não conseguem identificar. Embora o termo não esteja dicionarizado, é claro que o autor remete para o vocábulo português “carvoeiro", do latim “carbonarius”.

(25) Sorne-Portete, noutro lado.

(26) "Garboeiro” no manuscrito. Por vezes o autor sobrepõe um C ao g, o que propicia leitura dupla: Carboeiro e Garboeiro. O étimo é sempre o mesmo: “carbonarius”.

(27) Talvez “zamburras”.