FEIJÓ
NATURALISTA BRASILEIRO
EM CABO VERDE NO SÉCULO XVIII (1)
Maria Estela Guedes e Luís M. Arruda*

INTRODUÇÃO

João da Silva Feijó, militar de carreira, pertence ao número de portugueses nascidos no Brasil que se formaram na Universidade Reformada. Na Biblioteca Nacional, em Lisboa, existe um inédito dele, “Itinerário F(i)losófico”, constituído por sete cartas dirigidas ao ministro da Marinha e Ultramar, Martinho de Mello e Castro (1), que descreve a sua exploração em Cabo Verde. Nesta comunicação apresentamos o contexto cultural e económico em que se insere essa viagem filosófica e transcrevemos segmentos das cartas, vertidos para o nível de língua actual. Incidem na geografia física, topografia, portos, costumes e flora das ilhas do Fogo e Brava. Deu-se relevo às descrições do Pico do Fogo e Chã da Caldeira, feitas pela primeira vez.


O FILÓSOFO NATURAL E AS LUZES

No Brasil setecentista não se publicavam jornais, os livros estavam na maior parte proibidos, faltavam escolas e não havia universidade. Por isso Feijó veio estudar a Coimbra. Sobejavam, além destes, motivos de descontentamento entre os portugueses nascidos na colónia americana: impostos tão exorbitantes que o quinto de certas produções exigido pela Coroa gerou a injúria “Vá para os quintos dos Infernos!”; o facto de os impostos não reverterem em benefício do Brasil; e a atribuição de cargos relevantes apenas a metropolitanos.

Enquanto isto acontecia no sul, a norte verificava-se a independência da América (1777); na Europa, desencadeava-se a Revolução Francesa (1789), com os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, esses que a Maçonaria ainda hoje ostenta nos seus portais da Internet. Vindo já do Renascimento, o movimento das Luzes propaga-se de Paris até à Rússia, não sendo fácil isolar sentidos nas “Luzes”, isto é, distinguir iluministas de iluminados e libertins d’esprit de libertários; imbricado nestes movimentos, o liberalismo ajeita as asas, para chocar sob elas os ovos de ouro da História Natural: laissez faire, laissez passer - o quê? Deixai passar os produtos naturais, deixai-os gerar indústria e comércio, deixai o povo fruir a riqueza que criam.

Pelos autos de devassa relativos às Inconfidências, e de outras fontes, sabemos que obras susceptíveis de levarem os seus leitores a tribunal eram as de Rousseau e “as leis americanas”, ou seja, a Declaração dos Direitos do Homem proclamada na Revolução Francesa e a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. São estes os textos proibidos que lêem os jovens brasileiros em Coimbra, são estes os textos doutrinários pelos quais desejam orientar o futuro da colónia americana.

Com a reforma entra nos programas o laboratório. Experimentar e observar exigem livre arbítrio, ao contrário do ensino baseado no princípio da autoridade. Veremos Feijó manipular produtos naturais, e em consequência exprimir o resultado dos ensaios químicos sem citar Aristóteles nem Galeno. Uma vez criada a Faculdade de Filosofia Natural, na qual se leccionavam a Química, a História Natural e a Filosofia Racional e Moral, Domingos Vandelli vem a ser o primeiro lente das duas primeiras matérias, e por conseguinte não só o mestre da geração de filósofos naturais a que pertence Feijó, e seguintes, como a principal chave para conhecer o naturalismo português neste período.

Mas quem frequentou a Universidade Reformada? Os professores eram em grande parte italianos. Alunos metropolitanos, como Brotero, tiveram de se exilar, é na Itália que Verney publica “O Verdadeiro Método de Estudar”, Jacob de Castro Sarmento é da Inglaterra que manda sugestões para a reforma e textos científicos sobre a teoria das marés (os “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”, de Newton, são a grande obra de referência para estes homens), em suma: o período das Luzes é também o dos exilados, estrangeiros e estrangeirados. Quem sai do anonimato para as luzes da História, em Coimbra, são os portugueses nascidos no Brasil, que a vêm frequentar em número considerável. Então, como resultado natural da reforma, formam-se homens que ascendem à liderança intelectual, científica e política e estão na origem da independência da colónia americana. É o caso mais óbvio de José Álvares Maciel (2) e de José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado habitualmente o patriarca da independência do Brasil.

Acabados os estudos, os mais notáveis destes jovens formam dois grupos: uns viajaram pela Europa para se aperfeiçoarem (3), como o futuro Intendente Câmara e José Bonifácio, outros são encarregados das viagens filosóficas nas colónias, e neste grupo inclui-se a de Feijó a Cabo Verde, a menos conhecida, apesar de os seus trabalhos terem vindo a ser republicadíssimos. Mais estudada tem sido a de Alexandre Rodrigues Ferreira à Amazónia, sendo também conhecidas as de Joaquim José da Silva a Angola (4) e de Manuel Galvão da Silva à Bahia (5) , Goa e Moçambique.

Feijó viveu em Cabo Verde desde 1783 até talvez 1797 (6). Catorze anos no arquipélago não se destinaram só a recolher terras e pedras, plantas e animais. Nas ilhas, devia ficar sob a tutela do governador, D. Francisco de S. Simão, para ali destacado com o fim de proceder ao povoamento das ilhas. Logo a seguir o Bispo morre, e Feijó tem de recorrer à Justiça para se proteger de ameaças de morte (7).

O século XVIII é o do utilitarismo e da economia, o que se reflecte na História Natural: o naturalista fala do que é útil ou inútil, do que pode ou não dar lucro. Os governantes mais esclarecidos aspiram à felicidade dos povos, de acordo com um ideário materialista, segundo o qual as riquezas naturais serão tanto melhor aproveitadas quanto melhor e mais completo for o conhecimento científico delas, como aconselha Vandelli (8). É possível criar um paraíso na Terra, eis a grande utopia do tempo de Rousseau. As Luzes estão assim directamente ligadas ao naturalismo: os governantes são membros das academias, muitos passam pelas faculdades de Filosofia Natural, fazem por isso dela um instrumento de poder e uma questão de Estado. A maior parte do memorialismo é económica, exemplo das Memórias Económicas da Academia Real das Ciências, do “Ensaio Económico sobre as Ilhas de Cabo Verde”, de Feijó, exemplo ainda de muitas memórias de Vandelli. Perto de uma centena delas, na maior parte inéditas, foi publicada recentemente, de tal forma que remete para os economistas o trabalho de maior envergadura até agora empreendido acerca dele (9). O naturalismo promove a agricultura, as pescas, a indústria, a multiplicação de seres vivos e produtos naturais úteis, estuda novas aplicações para eles, visa o bem estar e riqueza das nações, e para isso dispõe de uma técnica moderna de catalogação, a sistemática de Lineu. No seu horizonte brilha um mundo ignoto, fonte de bens difícil de avaliar na sua grandeza, e que ainda é preciso conquistar: as colónias, que então justamente se chamavam “conquistas”. A Europa promove as viagens filosóficas, sequiosa de conhecimento desses estranhos mundos para os poder dominar, Portugal segue-lhe os passos, com muito atraso.


CONTINUA



* GUEDES, Maria Estela & ARRUDA, Luís (2000) - João da Silva Feijó, naturalista brasileiro em Cabo Verde. In: As Ilhas e o Brasil. Região Autónoma da Madeira, pp: 509-524.


NOTAS

(1) "Itinerario f[i]losofico que contem a rellaçaõ das ilhas de Cabo Verde disposto pelo methodo epistolar” / dirigidas ao Illº e Exmº Senhor Martinho de Mello e Castro pello Naturalista Regio das mesmas ilhas Joao da Sylva Feijó -1783”. [26]f.,[51],7p., enc. : 2 mapas estatísticos color. ; 26 cm. - Ms. - Mapas estatísticos dos habitantes e produtos da ilha do Fogo . - Inclui uma lista de plantas. Secção de manuscritos da Biblioteca Nacional, Lisboa.

(2) Maria Estela Guedes - José Álvares Maciel. In Diana Soto Arango, Miguel Ángel Puig-Samper y Mª Dolores González Ripoll (Editores): “Científicos Criollos e Illustración”. Ediciones Doce Calles, Madrid, 1999.

(3) A Academia de Minas de Freiberg era então escala obrigatória. O autor do neptunismo, Werner, dava aí um curso de Geognósia.

(4) William J. Simon - “Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century”. Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983.

(5) José Augusto Mourão, Ana Luísa Janeira e Maria Estela Guedes - A paixão do coleccionador: as viagens filosóficas de Manuel Galvão da Silva. Encontro sobre Alcipe e as Luzes, Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, Lisboa, 1997. Actas em publicação.

(6) Carta de Feijó para Domingos Vandelli. Lisboa, 23 de Julho de 1797. Arquivo histórico do Museu Bocage. CN/F-21. Oferece a Vandelli uma colecção de sementes de Cabo Verde, daqui se depreendendo que acabava de chegar a Lisboa.

(7) Feijó declara-se vítima de ameaças, segundo as quais o haviam de matar como tinham morto o Bispo D. Francisco de S. Simão. Carta para Júlio Mattiazzi, de S. Filipe da Ilha do Fogo, 16 de Fevereiro de 1784. Arquivo histórico do Museu Bocage, CN/F-5.

(8) Domingos Vandelli - Memória sobre a utilidade dos museus de História Natural, s/d. Ms. vermelho, Academia das Ciências de Lisboa.

(9) Domingos Vandelli - “Aritmética Política, Economia e Finanças”. Colecção de Obras Clássicas do Pensamento Económico Português. Banco de Portugal, Lisboa, 1994. Prefácio, notas e direcção editorial de José Vicente Serrão.