COLECÇÕES, MUSEUS, PÚBLICOS E LITERACIA
ANA LUÍSA JANEIRA (1)









I - INTRODUÇÃO
A exibição para um público empenhado, ou as formas de manipular com habilidade circuitos fúteis, ao associar a demonstração divertida, os salons éclairés e os Gabinetes de Curiosidades, concorreram para uma globalização, com raízes remotas nos Descobrimentos-Renascença e com condições próximas às do Iluminismo-Enciclopedismo, aspectos também presentes nas intenções atribuídas às colecções pacenses-eborenses, ao longo da correspondência que as descreve.

Esta Naturalia serve sectores cultos, alertados para a necessidade de reunir e de mostrar objectos, com o fim de aumentar a curiosidade, a atenção e a expectativa, ou levando sugestões de uma ciência, mesclada de sociabilidade mundana, aos sectores menos esclarecidos das elites sociais. E que servirá ainda para situar espaços e tempos específicos ou não, onde o gosto de saber se associa ao prazer, aquando da apresentação de objectos e de fenómenos, como parece acontecer em Frei Manuel do Cenáculo.

O Empirismo e o Racionalismo assumiam o estatuto de sistemas globais de pensamento, com foros de movimento social de opinião, porquanto contavam com sequazes cientes de que os produtos científicos materializavam um adquirido civilizacional com características dignas de propaganda. Esta propaganda, canalizada para aumentar as condições de adesão e de desenvolvimento das ciências, beneficiava uma cultura mais eficiente e uma felicidade mais real, o que parece evidente nos intuitos pedagógicos aliados à instrução do clero.

Aspecto integrado na tradição particular do catolicismo que sempre defendeu a importância de uma pedagogia associada ao estudo da Criação, para quem quer enaltecer o Criador. Por outras palavras, esta corrente defende que, numa propedêutica do sentimento religioso, a ligação aos entes naturais constitui uma via excelente na demanda da divindade, como era vivido pelo criador dos mendicantes, porquanto o mundo cósmico comporta caminhos para a transcendência.

Logo:

- o Museu de Beja destina-se prioritariamente ao clero diocesano;

- do ponto de vista social e apesar de provinciano, este clero faz parte de uma classe que se identifica com a guarda avançada de uma élite;

- élite que não deve esquecer o progresso cientifico;

- também por isso, o clero é um agrupamento de fiéis para os quais o discurso da natureza serve o discurso de fé, do ponto de vista religioso;

- assim sendo, a oração tem uma conotação religiosa que não deixa, por isso, de ser cultural.

A colecção uniu o antes e o depois daquilo que só emerge mais tarde. Pois são os museus das ciências e os museus das artes, como instituições separadas, que acabam com a configuração epistémica que havia originado os gabinetes de curiosidades. Gabinetes de curiosidades que retiravam a sua condição de possibilidade dentro de uma epistéme onde prevalecia a analogia entre a criação divina – na área da História Natural – e a criação humana – no campo das Artes -. Por isso, reuninam lado a lado: seres naturais, objectos artísticos e objectos artísticos criados pela acção humana exercida sobre os seres naturais.

Neste horizonte epistemológico, as curiosidades revelavam uma relação entre dois termos: por parte do sujeito – sou curioso, estou curioso, tenho curiosidade; por parte do objecto - sou curioso, sou curiosidade. Relação cuja especificidade comporta o leque de semelhanças e diferenças entre o amador e o profissional.

A colecção como um semióforo de Walter Benjamin. A colecção entre o saber e o domínio do conhecimento científico sobre o saber. A colecção entre a arte e o domínio da produção artística (perda da aura) sobre a arte.

Situação que vai inscrever no urbanismo de Viena uma representação paradigmática ímpar, dado o seu simbolismo: a estátua monumental da Imperatriz Maria Teresa, entre o Museu de História Natural e o Museu de Arte, separando-os. O saber-poder moderno dividindo as águas.

O processo que acabava de nascer, veio a comportar alterações: das museologias do objecto às museologias do visitante, passando pelas museologias do saber.

Logo:

- no princípio, tudo se dirigia para o objecto, enquanto a vitrine o recebia como o seu lugar maior;

- depois foi o conhecimento que mobilizou a montagem, numa imensa preocupação em torno do conhecimento;

- hoje é o visitante que surge como o alvo supremo, convidado a uma intervenção participativa.

- estas mudanças foram acompanhadas pelos elos que foram intervindo na transformação: uma lógica discursiva (estrutura enunciativa), uma lógica espacial (ordem das coexistências) e uma lógica gestual (configuração das performances).

II - PÚBLICO E LITERACIA
SEGUNDO A ORAÇÃO DO MUSEU PACENSE

Esta Oração (2), pronunciada em Beja, a 15 de Março de 1791, constitui um documento-testemunho de primeira grandeza sobre as circunstâncias envolventes e as ideias mobilizadoras, onde emergem as condições de possibilidade de um evento, considerado pivot inaugurante. O facto de o manuscrito não estar assinado favorece o seu lado misterioso e não menos intrigante. O anonimato contribui ainda para qualquer substrato de vox populi, entenda-se representação generalisante das ideias de uma determinada época, pese embora as hipérboles e encómios veiculados por expressões predominantemente apologéticas.

Como o nome indica trata-se de uma oração. À boa maneira da época havia inícios que mereciam ser assinalados por orações. Isso acontecendo, do religioso ao profano. Tenha-se presente, como as próprias academias sabiam usá-las a contento, como prova a Real Academia das Ciências de Lisboa, sob a pena e a voz de Teodoro de Almeida.

Caso que mostra como os modernos continuam a procurar a sacralização e o aparato das cúrias, apesar de se confessarem abertamente anticlericais. Assim, os tempos modernos propagam uma panóplia de ritos provindos de ciclos eclesiais, convertem-nos em signos ou em espectáculos e motivam sinergias que retiram imagens de origem no baptismo. Que o digam as festas republicanas propagadas pela Revolução Francesa.

Acrescente-se, ainda, que faz parte da categoria de discurso fundador, mais especificamente, discurso fundador pertencente ao género englobante da oratória e à espécie determinante de uma função de tipo institucional. Na verdade, corresponde ao estilo comunicativo erudito, ao procurar colher a adesão empolgada da assistência por via de maneirismos favoráveis à perceptividade emocionante do ouvir.

Munindo-se, para o efeito, de uma história integradora, onde a singularidade do acontecimento faz elo com cadeias multi-seculares que a precedem, ao mesmo tempo que dispara para garantir a solidez institucional futura.

Contexto que favorece a palavra prolixa e a desmesura das autoridades citadas, ao mesmo tempo que articula labirintos, elaborados aquém e além de sucessões com redundâncias e destinos; as quais recorrem quer a factualidades merecedoras de memória, quer a alusões de somenos importância. A ponto de parecer que o autor não distingue devidamente entre a referência histórica que merece ser perpetuada e a recordação de valor menor, ou até sem qualquer valor.

A sonoridade da voz procura efeitos de apologia, quando discorre sobre os termos do elogio, onde todos se associam conformes, mas que, nem por isso, é considerado supérfluo. Muito pelo contrário. A legitimidade da sua adequação retira sentido, insista-se, da circunstância de estar a ser dito, por forma eloquente, aquilo que todos são unânimes em proclamar, mesmo calados: a excelência da acção religiosa e cultural do Primeiro Bispo de Beja, “util sem interesse, virtuozo sem ostentação” (3), é merecedora da mais excelsa homenagem pública.

O apelo à memória que encima o texto reflecte bem um período durante o qual a lembrança, corporalizada em património, instaura uma historicidade com pessoas e factos dignos de serem recordados, de molde a constituírem cabedais de cultura. São exemplo disso os espaços académicos:

“O trabalho com valor digno de ser lembrado, pelo que apresentava no presente e pelo que representava como exemplo(ar) para ser lembrado no futuro, tomou o nome genérico de Memória, pelo que as suas publicações são frequentemente designadas assim.

Além disso, exercitavam-se no Elogio do candidato a sócio ou do sócio falecido. Escolhendo sessões específicas, o colectivo dos académicos vincava os sentimentos de homenagem, complementados por publicações, onde mostrava (re)conhecimento.

Por elas, dizia-se com conhecimento de causa sobre as qualidades dos pares, de quem reconhecia o justificado valor. Paralelamente, difundia (con)tributos, ao reiterar quanto a instituição em particular e a sociedade em geral recebera deles contributos importantes, obrigando-se a tributos públicos. Muitas destas tradições foram perdurando, até hoje.

Acrescente-se ainda que não deve ter sido sem significado que a árvore enciclopédica das ciências, das artes e dos ofícios, proposta pela Encyclopédie, inclua os ramos seguintes: a razão (filosofia), a memória (história) e a imaginação (belas-artes), identificadas com as três divisões do sistema figurado e com os três objectos gerais do conhecimento.

Na verdade, cabe-lhes a honra de serem escolhidas como ramificações primeiras de um tronco comum robusto - o entendimento -.

Paralelamente, é óbvio que concorreu para o ajoeiramento do que merecia ser lembrado, utilizando canais de comunicação tais que os resultados conseguidos, pela dinamização de Diderot e D’Alembert, foram a pedra básica do modelo de globalização, por onde o fim do século XVIII apostou com investimento e muita energia.” (4)

Por isso é que não surpreende em nada que a pedagogia latente destaque como são de valorizar todos os meios apostados em “conservar as Memorias”, que servem as “Artes, Sciencias, custumes, e Religião” e quem as serve, pois podem equivaler a fontes de mimetismo relativamente a personagens de outrora, dignas de imitação nas suas atitudes.

A que se acrescenta também um outro elemento, sugerindo a época que passa a conhecer os incómodos das teorias fixistas e já se propõe “correr a radiante escada da natureza”, associando-se por certo à ideia no ar de uma scala naturae, quando anuncia a descontinuidade que virá minar a crença em espécies adémicas num paraíso imobilizador do que virá a seguir.

Sugerindo igualmente a mudança prosseguida por séculos vindos de trás, onde a exuberância dos Novos Mundos forçaram as estruturas do Velho Continente, exigindo reminiscências perdidas.

“Muzeo = herão escollas geraes que se governavão por Mestres, e encerravão Livrarias com todo o genero de objectos em que se podia estudar. Ali, digo tudo, o milhor livro, todas as memorias dos tempos, todas as preciozidades raras da natureza, e do ingenho das siencias e artes dos homens se guardavão para nelles se aprender o que não convem ignorar.”

E que determinam a necessidade de espaços, abertos pelas portas de um conceito inovador - o Museu Moderno.

“Na lição da antiguidade, Deos Jmmortal que superioridade. Que magnificencia! Que fundamentos para a Historia Sagrada! Que artes! Que conhecimentos das Regiões e Lugares! Que homens! Que artes! Que custumes! Que erudição sagrada e humana! Que imprevistas mudanças da natureza, e dezengano do mundo!

Todas estas grandezas se comprehendem no Muzeo, e não direis que o seu estudo he somente o conhecimento da Fizica natural, dos saes, sucos oleozos, pedras, \petrificações/ christaes, Mineraes, Metaes, plantas e todas as mais produções maravilhozas da natureza: eu me esqueço de todos estes magnificos objectos, ou milhor eu os ajunto todos hum. O estudo do Museo he estudo de todas as siencias \para conhecermos a Deos e sua Religião, com utilidade nossa,/ donde provem fortes rezões para nos applicarmos a elle.”

É indiscutível que o discurso usa a palavra “Muzeu/Museo”.

Se a usa é porque isso tem sentido no seu contexto semântico: quando se recorre a um vocábulo preciso, é porque se quer referir uma realidade precisa, e não outra.

Todavia cabe, no caso, à História e Filosofia das Ciências ir mais longe e medir da sua justeza conceptual. Por outras palavras, cabe-lhe aferir até que ponto a designação se ajusta ao conteúdo, ou se, mesmo que isso aconteça, se a realidade em causa seria coberta pelo termo, como o usamos na actualidade.

Reflexão que até não é difícil, porquanto o próprio texto revela uma mistura de realidades incompatíveis com os espaços do museu moderno.

“Com effeito, Snrs., que apinhoados conhecimentos me trás a memoria o nome de Muzeo. Elle nas producções da natureza me reprezenta a grandeza de seo Creador. \nos idolos a falcidade do gentilismo, e a verdade da nossa Religião./ Nas Jnscripções profanas, a erudição das lingoas, a historia dos seculos passados, e a noticia da fabula. Nas Sagradas Jnscripções a authoridade e poder de Moyses, as virtorias de Josue, os castigos dos impios, a fraqueza dos Jmperios, a alternativa da fortuna, o abatimento da prezumpção humana, o zelo e intrepidêz dos Martyres, e hum gloriozo argumento contra os delirios da arrogante filozofia, que duvidando das verdades, nega tudo por effeito da propria fraqueza que em si desconhece.

Que bem! Que utilidade Santa! Quantos gozarão desta magestade nas letras! A quem deveremos tantas venturas?....”

Anote-se, pois, quanto o próprio texto parece apontar para a nossa hipótese de trabalho maior: esta Naturalia é uma entidade mediadora entre o Gabinete de Curiosidades renascentista e o Gabinete de História Natural oitocentista.

Comportando a necessidade de lidar com uma complexidade, síncrese para nós hoje, mas que se apresenta como síntese ao tempo. “o estudo do Museo” é útil (“utilidade do estudo do Museo”) e proveitoso (“o proveito do estudo do Museo”).

“O estudo do Museo he hua dispozição para qualquer homem ser completamente Sabio. Hua raridade deve preparar o animo para outra raridade. Hera percizo que o Exmo. Sr. Bispo de Beja, de quem somos fortunados subditos, preparasse hum Museo para ver nascer ingenhos raros deste fecundo paiz. O ceo o destinou para ser o primeiro fundador do que elle foi o primeiro Mestre com grande estudo, e erudição muito profunda.

Emfim chega o dia que o Altissimo predestinou do principio do mundo. Aparece em Portugal hum Heroe que só dá passos para honrar os Altares do Eterno, aparece brilhando no tempo da nuvem, como hua estrella no meio das trevas. Eu busco desde os primeiros dias do mundo hum homem que em Portugal offrecesse hum publico Museo: busco-o entre o Monarcas, entre os Prelados, entre os Nobres e ricos. Porem innutilmente o busco. O Exmo. Sñr. Bispo de Beja he o primeiro que o conhece, e o primeiro que o faz conhecer. Elle he quem primeiro faz com groças despezas transportar das trez partes do mundo desconhecidas curiozidades, busca raridades da natureza nas entranhas da terra, e ajunta toda a antiguidade dos mais remotos seculos, e entre estas fadigas elle he o primeiro que faz ouvir em Portugal estas consolantes palavras. = Eu vos offreço hum rico Museo para que tambem estudeis nelle, meo disvello merece o vosso reconhecimento = Ex aqui aquellas coizas que estavão no meio de vós, e que vós não conhecieis, he hua lúz de conhecimentos e de saber. Essas pedras quebradas, dinheiros pizados, letras desconhecidas, e peças dezenterradas são preciozos meios que conhecendo-os vós sabereis o muito que se ignora. Que glorioza, Sñrs., que glorioza vos parece aqui a Siencia e amor do nosso Prelado? Que singular privilegio vos parece termos tão preciozos conhecimentos dos quaes muitos carecem? O exceder os nossos antigos, e instruir os prezentes, o ser Prelado e amarnos mais do que Pai? Sim amarnos mais do que Pai. Porque que cousa há tam remota de toda a nossa utilidade que S. Exa. não tenha cuidado em dar e offrecer?”

Assim sendo, este espaço pacense recolhe, guarda, armazena, identifica e expõe objectos muitos diferentes das artes às ciências, para “entender Medalhas, e contemplar peças exquizitas na natureza na Arte, admirar as diversas produções da natureza, sua força ligada na perturbação dos monstros, e sua belleza na ordem perfeita.” Fá-lo, na sequência de uma colecta e de uma venda-compra, actuando a uma larga escala mundial. Existe, pois, um intercâmbio-comércio cultural de inscrições, medalhas ou fósseis, que faz parte da rede de saberes-poderes instituídos, onde Frei Manuel do Cenáculo ocupa um lugar de destaque, a nível nacional. Lugar que lhe vem de ser um alto dignitário da Igreja, uma personalidade cimeira da Academia e uma peça fundamental do Governo pombalino. Sendo, de facto ponto de intercepção entre esses três termos, é indiscutível que está capacitado para jogos muito destacados na estrutura portuguesa. Por isso mesmo, é-lhe possível reunir condições para fazer emergir inovações no contexto envolvente, ao mesmo tempo que as orienta para fundações com continuidade futura, muitas delas chegando até hoje.

Como se trata de um coleccionador culto, munido de sensibilidade histórica e apetrechado financeiramente, pode estabelecer uma relação privilegiada com o Museu, e a partir deste com a sociedade. Na verdade, esta inauguração culmina um processo, onde ressalta a materialização de um estudo pessoal e a preocupação de o transformar num bem social, dado que o “Exmo. Sñr. Bispo de Beja he o primeiro que o conhece, e o primeiro que o faz conhecer”.

A dimensão colectiva desta atitude integra-se nas características de outras iniciativas propostas pelo Iluminismo, quer em dinâmicas dirigidas para a conservação do passado, quer na preocupação de generalizar o acesso a esse passado. Nota-se, pois, como que uma responsabilização dos “Sabios”, convidados a porem os seus estudos ao serviço dos demais. Aspecto que revela já o dealbar de um destino mais abrangente para o saber.

“Em hum Museo há hua siencia que encerra todas as outras. Os Sabios a conhecerão mais claramente do que ao commum dos homens he permitido, e com tudo este conhecimento he raro. Os Sabios o respeitão e venerão, inda que não se possão aperfeiçoar. Quanto mais elles estudão, tanto mais dezejão saber. He hum labyrinto de encantos em que a rezão se acha e a alma se illustra, e a Religião triunfa.”

Neste momento, tem significado orientar a descriçãoisa no sentido de averiguar o “labyrinto de encantos”, onde se articula “a rezão”, “a alma” “a Religião”, porquanto passa por aí o caminho para elucidar a definição do público-alvo.

Neste particular, Frei Manuel do Cenáculo, intervém na sua qualidade de Bispo e na sua qualidade de Cidadão: o Museu abre as portas para intervir na formação do clero, ou seja, no sentido de contribuir para um clero moderno. Isso acontecendo, porque a alma não pode esquecer a razão, mesmo quando instrumentalizada para a religião. Ou seja, a actividade anímica - nas suas vertentes sensorial, intelectual, volitiva – não pode ser protelada, mesmo quando se desenrola sob a dominância da razão. Todavia, ela não é soberana, mas deve funcionar em prol da religião.

Logo, o Museu Pacense assenta num pressuposto filosófico dominante apetrechado por:

- uma cosmologia analógica = a Criação retrata o Criador, tudo está em todos.

Logo, o Museu Pacense aponta ainda para uma literacia museológica precisa que coloca as ciências ao serviço de:

- uma pedagogia global = o conhecimento de qualquer ente da História Natural e da Filosofia Natural ajuda à elevação até ao Ser.

Logo, o Museu Pacense postula finalmente que os pastores eclesiais precisam de:

- uma didáctica específica = a mensagem da Boa Nova requere o contributo adequado de uma catequese, apetrechada por conhecimentos fornecidos pelas Ciências da Natureza.

Se o Clero deve representar uma classe ilustrada, suprema maneira de ser exemplo para o Povo de Deus, cabe-lhe uma literacia multifacetada, conjugando a Cultura e a Natura.

É neste contexto que a visibilidade museo-gráfica dos signos, “faz agradavel a vista”, contribuindo para um espaço-espectáculo, concorrendo ainda para uma melhor admiração do espectáculo da Criação e tendo como resultado sequente uma adoração mais fundamentada do Criador.

Mas além disso, concretiza-se, mais uma vez aqui, um efeito estratégico que resulta da articulação entre dois papéis maiores vividos pelo Reformador da Ordem dos Franciscanos e pelo Reformador da Universidade de Coimbra. Segundo esta perspectiva, o clero é somente um entre os destinatários que Frei Manuel do Cenáculo incentiva à mudança.

De facto, os pressupostos teóricos que norteiam este Museu contêm pontos culminantes de um projecto de vida vocacionado para a inovação. Por outras palavras, estamos perante conteúdos programáticos inovadores, criados por uma personalidade destacada e actuante. A qual teoriza e actua em favor de um projecto para revitalizar a sociedade. O que quer dizer: modernizar Portugal.

Modernizar Portugal, através de uma intenção predominantemente cultural.

Modernizar Portugal, através de uma intenção cultural, incluindo os “estudos Fizicos”, a “siencia da Natureza”.

Pontos subjacentes ao modo tão expressivo como termina a Oração Inaugural:

- “Eu devera tambem tratar da outra parte d[[o]] estudo do Museo que he a Natureza. Mas depois de S. Exa. ter escrito com a mais alta Sabedoria sobre os estudos Fizicos do seo Reverendo Clero, tenho a honra de repetir compendiozamente a sua \Descobre a cabeça/ a Sabia e Religioza vóz = A natureza tudo fala entre si com consonancia, que bem merece toda ella nossos cuidados. O entendimento nestes assumptos he gloria para Deos, he ruina da ociozidade, Sabedoria que recomenda as pessoas dotadas desta virtude, e utilidade para o publico. Justamente se emprega que ve pela natureza, e respeita a providencia Divina. S. Bazilio dis que hum feno e qualquer herva, pode exercitar toda a alma meditando sobre a arte que a produzio. Os homens Apostolicos tam bem uzão de conhecimentos naturaes para servirem a seos pensamentos de doutrina Religioza = Esta vóz de S. Exa. eu lhe chamo voz prodigioza: vóz que depressa se faz ouvir no meio do fundo do coração humano: vóz formidavel que, fará desmaiar toda a contradição. O estudo das produções da natureza depois de ter sido hua virtude util, passa tambem a ser hum exemplo de zello. Assim se evita a Jgnorancia em huns, e a superstição em outros. O povo groceiro se submerge na ignorancia por que não sabe: os ricos perguiçozos se entregão ao ocio tanto mais livremente quanto menos sabem. Porem o Eccleziastico que conserva o seo esplendor, já não ama couza mais respeitavel que os descobrimentos \da oculta/ verdade. oculta. Pela siencia da Natureza o Eclesiastico se prepara para aparecer no mundo. Ex aqui hum homem cujo coração he o centro do saber. Nelle se vem dois corações unidos, que só a ignorancia sepára. Lembrando do que deve a si mesmo, não se esquece do que deve ao proximo. Os seos dezejos ordenados são a regra da sua conducta; e por que hum util trabalho lizongea seos cuidados; elle se faz autorizado para os fertilizar. Elle produzirá aquelle segredo que está nos Lyrios do campo, que crescem com natural liberdade. No silencio do seo estudo ouve a maravilhoza natureza; nada se demora em lhe aparecer, tudo vem a sua prezença. Que expectaculo! Aqui vejo hum homem zelozo que trabalha em entender o que vê, hum amigo da vida que ajuntando em si reflexões de experiencias, avança pela numeroza siencia da vida. Já com hum concelho maduro descobre desconhecidos segredos do bem e do mal. Que falta, Srs,! Se não que vos peça o mesmo que a natureza vos está rogando.

A que alegre narração me conduz naturalmente o meo objecto!

A verdade declara-se, e a rezão triunfa. Que maravilha! Quebremse, quebrense as prizões que hua afrontoza ignorancia faz olhar com desprezo a siencia da antiguidade Natureza, e Antiguidade Deos Jmmortal! Esqueça-se a minha mão direita que isto escreve, se eu me não lembrar de vos.

Eu bem digo ao creador pelos conhecimentos que alcanço das suas esculturas admirando as graças e enLeios com que tece a Lei da Natureza, e por ella reconheço hum Deos que adoro.”

- “Eu bem digo ao Creador pelas suas creaturas admirando as graças e enLeios com que teceo a Natureza, e por ella reconheço a existencia de hum Deos que adoro.

Quando vejo os Jdolos quebrados e mudos, então bemdigo o meo Redentor, e respeitando seos Divinos prodigios os instrumentos da firmeza dos Martyres, os monumentos dos prodigios da Religião, e da confuzão de seos inimigos: de seos inimigos, então por eu não nascer entre Nações cegas, e viver na Jgreja com tam grandes Luzes, agradecido a tantos bens bemdigo o meo Redemptor.

Quando noto nas Jnscrições dos antigos Barba[[ro]]s a Luz da Divindade, a esperança da vida eterna, a industria das siencias Naturaes, e suas bellas Artes, e virtudes moraes, e tudo isto escutado da natureza que Deos deo ao homem para se justificar: então eu bemdigo ao Eterno por abençoar suas obras que todas mostrão \apregoão/ a gloria de Deos. \Levantado/

A vista de tudo isto eu lhe rendo infinitas graças por tão prodigiozos conhecimentos com que me illustra que confeço dever só á sua piedade. Que incomprehensiveis vossos Decretos! Eu adoro nelles impenetravel providencia, só por este instante que desde a vossa eternidade marcaste no circulo do tempo, para eu vos louvar no prezente.

Logo, Srs., vede se justamente devemos abraçar o estudo onde a instrução do entendimento, o esplendor da doutrina, e o triunfo da Religião tem a conveniencia mais util. Aproveitaivos, Sr., de hua occazião que a grandeza de S. Exa. vos offrece. A vossa diligencia decidirá a recompensa de hum bem de tanto proveito. Deixai ao espirito levarse aos ultimos conhecimentos, e ver com hum gosto virtuozo aquella historia da antiguidade, descobrir novas verdades, penetrar segredos, e conhecer a industria do engenho humano engenho. Deixai a rezão aplaudirse da sua vitoria, afirmarse nas santas verdades do triunfo da Religião, levantar os seos trofeos sobre os inimigos vencidos. Deixai a creatura conhecer o seo Creador pelas maravilhozas luzes da natureza nos brilhantes dos seo<s> chrystaes, na sua armonia, e naquelles descuidos onde a negligencia mais casual contem maiores admirações onde o mesmo desfigurado he a mais engraçada e encantadora figura. Hum descobrimento prodúz mil descobrimentos. Hua utilidade Lizongea. Hum trabalho recompensa.”

III - COLECÇÕES, MUSEUS E PÚBLICOS
DA MODERNIDADE ATÉ MUSEUS NORTEAMERICANOS ACTUAIS

A arqueologia-genealogia do gesto de coleccionar revela uma realidade muito antiga e complexa.

Na verdade, esta realidade é ancestral e concretiza diversas intercepções entre quem colecciona e aquilo que colecciona.

Desenha-se, assim, uma estrutura cognitiva-afectiva, onde jogam factores do saber e do bem-querer.

O processo entre a posse inicial de um indivíduo e a aquisição continuada de um conjunto estigmatiza passagens que evocam géneros, espécies e diferenças específicas, nos termos da lógica aristotélica.

Assim sendo, o coleccionador é alimentado por uma pulsão alargada a horizontes nas margens dos sem-limites. A ponto da colecção concluída ser quase uma sensação paradoxal: o que garante estarem reunidos todos os entes pertencentes à essência de um determinado ser? E no entanto, é nesta mira que o desejo de coleccionar se deseja.

Esta paixão concretiza também uma outra relação comummente referida em casos similares: a relação entre saber e poder.

Na verdade, para se coleccionar são precisos dispositivos financeiros que permitam mecanismos de aquisição (colecta, compra, troca) e conservação, ambos requerendo conhecimentos que facultem as opções de escolha, os requisitos de manutenção e a disponibilidade de apropriação dos objectos.

A par de tudo isso, a vontade de mostrar. E do coleccionador se mostrar, também. A vontade de mostrar move-se desde os ciclos de intimidade - familiares, amigos - aos circuitos mais alargados - visitantes, público –, e comporta alvos que desdobram objectivos informativos e objectivos educativos. A ponto de ela ter sempre em mira um qualquer público, imaginário ou real, e uma qualquer literacia, imediata ou a longo prazo. Ou seja, a colecção é para ser (ad)mirada, do possuidor aos demais, e inscreve-se nas margens de um(a) aprendiz(agem): é esperado que a colecção potencialize um ensino, quando ultrapassa os ausentes e os distantes, mundos passados e outros mundos desconhecidos. Pela presença. E pela proximidade.

Configuração que se processou a partir do encontro entre o Velho Mundo e o Novo Mundo, com incidência na viragem humanista-renascentista. Comportando dinâmicas várias, como o processo ocorrido entre a superação progressiva de algumas dualidades paradigmáticas, a mudança demonstrou capacidade para gerar sequências nunca demais lembradas: ouvir-ler --» olhar-ver --» observar-comparar.

Como a Idade Média, centrada no púlpito e no comentário, ficou para trás! Como a Escolástica, incapaz de se munir de uma percepção representativa, foi sendo abandonada!

Em contrapartida, irrompia o universo exótico, das diferentes raças aos costumes sociais distintivos, das plantas milenárias à diversidade animal.

Ao mesmo tempo, era dada uma maior viabilidade à ligação entre a colecção, a pilhagem ou o roubo colonial. Os barcos chegavam carregados de preciosidades múltiplas, porque o controle comercial dos europeus possibilitava um mercado nunca visto de objectos, através de redes com circulação transoceânica.

Diz-se que Aristóteles coleccionava seres vivos, Dioscórides também. O Museu de Alexandria também os teria. E os hortos dos conventos medievos conservariam as suas maravilhas florais, acompanhadas por herbários de plantas medicinais. Todavia, o alargamento da riqueza acumulada dentro das colecções revela ainda uma descontinuidade histórica digna de ser identificada, em termos modernos. Aos bens culturais, até então maioritários, juntam-se, agora, os bens naturais: ter uma árvore exótica no jardim engrandece o proprietário tanto quanto um quadro raro no salão.

A Natura conquistava, pois, um espaço muito especial nas colecções europeias, materialidades da Cultura. Melhor, as colecções apoderavam-se, também elas, das coisas naturais. E esses gestos requeriam uma metodologia científica, consequentemente. Metodologia que vai abrigar, a partir de agora, o mundo animal, vegetal e mineral, contextualizando-os, por forma privilegiada.

Estrutura que vai desenvolver um conjunto de mecanismos onde o conhecimento se desdobra entre o respeito pela identidade dos Três Reinos e a racionalidade que os vai esquartejar, dissecar e pulverizar, cada vez mais, pelas mesas e bancadas de mármore.

Os minerais e os minérios sobranceiramente impositivos, do ouro à prata e diamantes. Até porque o paraíso reconquistado, destino que movia as demandas americanas, era vislumbrado como promissor, neste particular.

Os seres vivos sob a lupa do observar e do comparar. Primeiro, por fora. Mais adiante, por dentro. As ilustrações complementando os rasgos descritivos, em demanda de uma proximidade maior, para além daquilo que quer fugir ao modelo impositivo da tendência classificatória moderna.

A colecção como um semióforo de Walter Benjamin.

A colecção entre o saber e o domínio do conhecimento científico sobre o saber.

A colecção entre a arte e o domínio da produção artística (perda da aura) sobre a arte.

Situação que vai inscrever no urbanismo de Viena uma representação paradigmática ímpar, dado o seu simbolismo: a estátua monumental da Imperatriz Maria Teresa, entre o Museu de História Natural e o Museu de Arte, separando-os. O saber-poder moderno dividindo as águas.

Águas que tinham tido a função de servir encontros, enquanto permanecerem unidas. Encontros seguidos de diálogos, marcados pela agudeza daquilo que está áquem do disciplinar, porque as disciplinas modernas ainda não estavam criadas, ou daquilo que está para além do disciplinar, porque respeita «uni-versos» dotados com uma ancestralidade globalizante.

Apesar de haver exposição sem colecção, dificilmente haverá museu sem colecção.

Já se terá percebido quanto a identidade da própria colecção beneficiará de atitudes que a mostrem enquadrada pela sua configuração histórica.

Todavia, como nem sempre é dada muito visibilidade a esta realidade, ela é muitas vezes pouco percepcionada pelo grande público, isso acontecendo nomeadamente quando o museu tem uma longa história, como no mundo europeu: se é comum referir a origem de um museu a partir de uma colecção e de um coleccionador, esvaem-se as memórias resgatadas relativas a este tipo de gestos, em tempos posteriores.

Quando isso ocorre, quer dizer que o discurso expositivo esquece, lamentavelmente, um elemento (in)formativo importante, porquanto não explicita uma maior integração histórica dos objectos, ligando-os a escolhas com tempos, pessoas, meios, estilos e gostos precisos. Ou seja, empobrece a mensagem histórica que lhe deve estar ligada, o que diminui o alcance com outras preocupações mais abrangentes.

A propósito, convém destacar como os espaços norte-americanos funcionam diferentemente: cada colecção tende a ser igualada a uma unidade espacial, logo apresentada como um todo, e remetida à(s) pertença(s) de origem, personalidade(s) representando com frequência o papel de doador(es)-mecena(s).

Com esta presença individualizada, de cariz subjectivista, o público sentir-se-á mais motivado, aumentando a sua potencialidade apreensiva? Será que tal carga de comunicação contribuirá para uma maior literacia? A diluição do peso da colecção poderá diminuir o impacto dos conteúdos ligados à contextualização histórica? O que poderá significar uma redução da abrangência cultural emanada por essas estruturas?

Neste particular, vale a pena insistir no papel do “bilhete de identidade” e da “genealogia” da colecção, enquanto catalisadores historiográficos, formas de conhecimento que, aliadas à força visual dos objectos, servem horizontes epocais passados. Na verdade, trata-se de uma ocasião privilegiada para aliar materialidades concretas e configurações pretéritas, beneficiando do poder sugestivo da imagem e do volume, e daquilo que eles transmitem: estilos de vida ou ambientes sociais. Não existindo muitas outras oportunidades com virtualidades similares, mais se justificará a intenção que a museologia actual deve pôr nestes pormenores. Sendo assim, sempre haverá um empobrecimento quando se desprezam as configurações de onde provêm as colecções.

Aspecto útil para o visitante, mas também uma forma de contribuir para aumentar o mecenato, expressão neo-liberal, pragmática e capitalista. Aspecto que o outro lado do Atlântico maneja bem, através da função persuasiva desta táctica mobilizadora de novas doações, pois é sabido quanto o coleccionador sempre se mostra sensível à vaidade personificada na colecção. Estes aspectos relevam de uma tónica materializante que não favorece a cultura, em períodos especialmente consumistas. Mas, talvez por isso mesmo, possa corresponder a fontes de aliciamento para políticas culturais bem sucedidas.

Os objectos museológicos não são ícones (Disneyland), nem símbolos (interior de uma catedral medieva), mas índices. Por isso, os museus de ciências actuais estão centrados, quer na divulgação científica – procurando contribuir para a formulação de opiniões –, quer na civilização científica – procurando relevar o lugar representativo da ciência na sociedade. Concluindo, estas espacialidades não se limitam a transmitir conhecimentos, mas visam construir opiniões e preparar cidadãos. Ou seja, preparar uma sociedade futura mais crítica e eleitores mais conscientes.

Por isso, a implementação de estratégias governamentais incluindo o alcance destas instituições como veículos educativos, passíveis de serem manobrados por intuitos marcadamente pragmáticos. Por isso, a diminuição de núcleos museográficos em liceus e escolas, substituídos por espacialidades nacionais, regionais ou locais, servindo um número muito superior de crianças e jovens.

No âmbito do projecto Literacia científico-tecnológica e opinião pública: o caso dos consumidores dos Museus das Ciências (5,) convém destacar que não há unanimidade entre as políticas museológicas vigentes, sendo patentes intencionalidades articuladas com políticas científicas e tecnológicas mais amplas. Na verdade, os museus continuam a identificar-se com espaços privilegiados para a expansão da cultura científica. Privilégio contribuindo para a manutenção de uma mentalidade positivista, demonstradora de uma apatia acrítica em prol da neutralidade científica, ou favorecendo, pelo contrário, uma atitude reflexiva consequente e uma postura participativa.

Segundo a tipologia bipolar anterior, os museus representam uma intencionalidade social precisa, pois assumem uma vocação política complementar. Cabe-lhes, assim, uma intervenção nas demografias modernas, do Exploratorium de São Francisco, ao Musée des Civilisations de Ottawa, passando pelo Museu da República no Rio de Janeiro e o Shangai Museum. Em qualquer dos casos, ambientes dirigidos por intuitos políticos concretos, a que se aliam maiores ou menores oportunidades para o espírito reflexivo e crítico.

A ponto que a literacia revela uma das suas faces, neste particular: importa que o público demonstre apetência para seguir a exposição, ao mesmo tempo que a museografia deve oferecer uma actualização consequente de conhecimentos, mediante uma cultura científica concreta.

Contexto que explica como vários temas relacionados com catástrofes, sobrevivência e utopias sobressaem na museologia norte-americana (de New York a Montréal, passando por Providence e Boston), durante o Inverno de 2002-2003.

O desenvolvimento temático evoca situações que conduzem os públicos a serem confrontados com realidades fortes – das gigantescas imagens dos dinossáurios no Museum of Natural History de New York, às memórias do 11 de Setembro, numa exposição patente no Fine Art Musem da Brown University.

Os discursos expositivos exploram o lado emocional dos visitantes, reconfortando-os com enunciados incisivos, emanados frequentemente de um optimista e jubilante cientismo. Grave quando não se distingue ciência e tecnologia, e se apresentem pouco os bastidores mais polémicos, e também mais apaixonantes, do conhecimento científico. Por vezes, muitos e muitos botões. Demasiados. Criando ilusões de uma espectacularidade por demais enganadora.

Nem os museus universitários fogem à regra. Apesar de primarem por serem mais rigorosos e menos sensacionalistas, mostram-se demasiado descritivos, pouco remodelados e sem evidenciarem grande espírito crítico, como acontece com os núcleos museográficos espalhados pelo campus da Harvard University.

Outras unidades expositivas evidenciam problemáticas relacionadas não só com texturas e reciclagem – valorização de restos, superação da escassez -, mas também com os nexos manifestos que existem entre elas, num universo que retoma uma tradição de colonos e de emigrantes, necessitando de aproveitar tudo, e por isso conseguindo afastar o desperdício, na visibilidade espantosa de uma das salas do Fine Arts Museum de Boston.

É interessante verificar como este pormenor, mais desenvolvido por mulheres do que por homens, mais por americanas do que por europeias, contribui para a produção artística actual, na linha de uma sociedade da parcimónia, com quotidianos caseiros e ritmos espaçados, ao bom tom de quakers, e não só. Qual o significado utópico de ser a condição feminina a que mais revisita este valor longínquo, totalmente esquecido pelo consumo voraz?

Durante anos, a mulher emigrante teve de incorporar dentro de si um aforro especialmente omnipresente. Se lhe coube atravessar o Atlântico acrescentou-lhe uma economia doméstica especialmente estrita, onde o tecido teve um lugar especial. Redes, tramas e teias, nomadismos e cruzamentos. Linhas, pontos e percusos para a frente e para trás. Vindo de longe, este manuseamento impõe-se, agora, como gesto alternativo museografável, onde o patchwork, a tecelagem e o bordado representam uma contra-corrente anticapitalista. Aspectos civilizacionais muito criativos e sugestivos que Gilles Deleuze e Francis Guattari descrevem no capítulo final de Mille Plateaux.

As palavras e as coisas salientam, também, os certames científicos espalhados, amalgamados e dispersos dentro de cada Science Center. Não prima qualquer unidade interna. Estilhaçam-se, sim, temas prolixos, apoiados por lojas de venda extensas. Funcionam como realidades atractivas para captar multidões, por meio de núcleos projectados para públicos de cultura média ou baixa. Eles chegam às lufadas durante o fim de semana, especialmente durante o inverno, e olhando-os logo se detecta como não sabem separar este espaço do consumismo compulsivo no shopping. Tudo misturado com muita coca-cola.

Tentando contribuir para questionar, e superar, os conceitos que envolvem o Jardim Botânico ou o Museu de História Natural, as teses ecológicas contribuem para a necessidade de museografias holísticas, sistematizações integradoras montagens sofisticadas, onde vários aspectos da vida coexistem, como acontece no Biodôme de Montréal.

Paralelamente, a arquitectura envolvente, o design sofisticado, a biblioteca especializada e a loja bem apetrechada requintam na capacidade de atrair públicos, por um máximo de imagens e de infraestruturas que convergem para o espectáculo, realidade mais ao serviço da paixão cega pela tecnologia do que em prol da literacia científica ou artística.

Parecendo sintetizar tudo isto, num destaque por demais merecido, o virtuosismo do Going forth by day: First Light, de Bill Viola, no Guggenheim Museum de New York.

A tecnologia do video no seu melhor. A arte pelo video no seu melhor. A technê grega redimensionada, posta ao serviço de uma conceptualização esmerada entre a densidade vivencial do nascimento, da viagem, do dilúvio e da morte. Apreciados por si ou pelo conjunto. Um referente renascentista, para além das cronologias: as capelas de Giotto em Pádua.

O painel do dilúvio sobressai pelo fundo de onde emerge e pela cadência rítmica que propaga. Uma muita feliz harmonia entre o espaço ocupado por cenas intrigantes e o tempo percorrido por gentes atarefadas, numa qualquer urbanidade actual. Porque correm, acompanhadas por um pormenor específico, o transporte de objectos de pequeno porte? A imagem é sequenciada sem grandes novidades de maior. Até que irrompe o insólito da enxurrada de água desmantelando-se pelas janelas e porta.

Concluindo: “a powerful five-part projection-based installation that examines cycles of birth, death, and rebirth. Each "panel" — a projection seen directly on the walls of a space — is approximately 35 minutes long and was recorded in state-of-the-art High Definition Video. The suite of works creates an epic articulation of the passage of nature's cycles and offers mythic reflections on the temporal flow of birth and regeneration” (6).

Montemor-o-Novo, Abril de 2003.

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1 Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Rua Ernesto de Vasconcelos, 1700 Lisboa, tel. 351.217573141, fax 351.217500088
Investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)
Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral
Calçada Bento da Rocha Cabral, 14
1250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt e analuisajaneira@clix.pt

2 Oração do Muzeo. Dita a 15 de Março de 1791 em Beja com grande aplauzo, Biblioteca Pública de Évora, Manizola, Cod. 75, Nº 19. Devem-se à Dra. Alexandra Nascimento, ESEB, as diligências para a transcrição desta Oração.
3 Quando não é assinalada a origem, trata-se de citações da Oração Inaugural.
4 Ana Luísa Janeira - O lugar da memória na história do conhecimento e na comunidade científica e museológica actual, www.triplov.com.
5 Patrocinado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, no âmbito do Programa Sapiens 98.
6 John G. Hanhardt; Maria-Christina Villaseñor, www.GuggenheimMuseum.com