|
Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
|
|
|
|
|
Carlos A. Filgueiras
(Universidade Federal de Minas Gerais) |
|
A EVOLUÇÃO DA QUÍMICA DO SÉCULO
XVI AO SÉCULO XIX
ATRAVÉS DE TEXTOS ORIGINAIS |
INDEX |
|
CAPÍTULO II: A QUÍMICA NO SÉCULO
XVII |
O século XVII
testemunhou uma enorme expansão das atividades químicas, continuando o
fenômeno registrado na centúria anterior. Tanto as atividades empíricas
foram incrementadas, como a química medicinal também ganhou enorme
impulso, começando a penetrar as universidades, sobretudo dos países
germânicos, desde o início dos anos seiscentos. Pela primeira vez,
então, a química passa a ser uma matéria estudada nas academias, mas
como uma disciplina ancilar à medicina. Por isto se pode afirmar que só
é possível estudar a evolução da química se considerarmos o conjunto de
várias atividades. Entre estas, a medicina e a farmácia têm um papel
capital. Muitas obras químicas se tornam gradualmente menos obscuras,
comparativamente à maioria dos textos alquímicos anteriores, ou mesmo a
autores como Paracelso. Esta tendência, todavia, coexistiu com uma
continuidade na prática da alquimia e da publicação de textos
alquímicos. Basta lembrar o caso de Isaac Newton, um devotado alquimista
ao longo de boa parte de sua vida, ao mesmo tempo em que desenvolvia a
física e o cálculo infinitesimal. No século XVII surgiram químicos que
deram à luz obras de grande abrangência e que influíram bastante sobre
seus sucessores, como Johann Rudolph Glauber (1604-1670), Jan Baptist
van Helmont (1577-1644) e Robert Boyle (1627-1691). O século XVII na
exposição começa com a obra de um químico francês, Jean Béguin
(1550-1620), autor de um livrinho que granjeou enorme popularidade e
teve inúmeras edições. Trata-se do livro intitulado Tyrocinium
Chymicum, cuja primeira edição data de 1610. A edição mostrada aqui
é de 1659, o que mostra a durabilidade da obra no apreço dos químicos da
época. A razão disto é que Béguin produziu um verdadeiro manual de
laboratório, com a preocupação de dar um grande número de receitas para
a preparação de medicamentos, sem muitas veleidades teóricas, o que
permitiu a longevidade do livro. Todavia, ele mostra grande
meticulosidade em citar um grande número de autores, sejam do passado,
como Paracelso, ou contemporâneos, como Hartmann. Sua química medicinal
é por ele referida como quimiatria, outra versão do termo iatroquímica,
muito em voga na época. No prefácio, Béguin dá uma profissão de fé
naquilo que ele considera o objetivo da química: "E seguramente o médico
não produz nada de importância de que a quimiatria não seja grande
parte".
As Figuras 14 e 15
mostram, respectivamente, a gravura que ilustra a página de abertura do
livro de Béguin e o frontispício do mesmo. |
|
Figs. 14 e 15.
Página de abertura e frontispício de Tyrocinium Chymicum,
de Jean Béguin, Genebra, 1659 |
Um outro autor de grande
importância no Século XVII foi Jan Baptist van Helmont, médico e químico
flamengo, que viveu e trabalhou em Bruxelas e suas imediações. Ao se
designar philosophus per ignem, ou filósofo pelo fogo, van
Helmont queria dizer que se considerava acima de tudo um químico, pois
as operações principais levadas a cabo nos laboratórios eram conseguidas
por meio do fogo, como as destilações, no caso dos líquidos, ou as
calcinações, no caso dos sólidos. Van Helmont foi um importante adepto
da química medicinal e a ele se atribui a criação da palavra gás, da
palavra caos, de origem grega, que expressaria a "desordem" inerente a
um gás, que não tem nem forma nem volume definidos.
Muitos autores
trabalharam com o conceito da conservação da matéria, muito antes de
Lavoisier expressá-lo claramente ao final do século XVIII. Van Helmont
talvez seja o mais conhecido, por causa de seu experimento do salgueiro.
Ele tomou uma tina cheia de terra e pesou-a meticulosamente, obtendo um
valor de 200 libras. Nessa tina plantou uma muda de salgueiro de 5
libras. A partir daí regou a planta apenas com água pura de chuva
durante 5 anos. Ao cabo desse tempo, retirou o salgueiro e verificou que
a tina com a terra seca continuava pesando 200 libras. O salgueiro havia
crescido e agora pesava 269 libras e 3 onças. A interpretação
helmontiana do ocorrido foi que a diferença na massa do salgueiro era
devida à água adicionada, que se havia transmutado nos materiais
que compunham a árvore. Embora a conclusão, em termos da reação ocorrida
não satisfaça a um químico moderno, a preocupação quantitativa e o uso
implícito do princípio de conservação da matéria sim. Van Helmont foi
também um autor prolífico e teve seu filho Francisco Mercúrio como
seguidor. |
|
A Fig. 16 reproduz a portada do magnífico fólio de sua grande
obra, intitulada Ortus Medicinae (A Origem da Medicina),
publicada postumamente por seu filho em 1667.
O livro busca abranger toda a medicina da época, tratando-a sob
um ponto de vista químico. Na página de rosto, de grande beleza,
veem-se acima os retratos de van Helmont e de Francisco
Mercúrio, este modesta-mente atrás do pai. A portada é
ladeada por brasões heráldicos e conta ainda com duas alegorias
femininas na parte de baixo, com inscrições latinas que podem
ser traduzidas como "a natureza que pare" e a "sabedoria que
nutre". |
Fig. 16. Frontispício
de Ortus Medicinae, de Jan Baptist van Helmont, 4ª edição,
Louvain, 1667 |
|
A figura 16 reproduz, portanto, o frontispício do livro Ortus Medicinae,
de van Helmont. Serão abordados agora três químicos do século XVII cujas
edições aqui apresentadas saíram à luz no século XVIII. São eles,
respectivamente, Robert Boyle (1627-1691), Johann Joachim Becher
(1635-1682) e Nicolas Lémery (1645-1715).
Robert Boyle foi uma
figura singular na Inglaterra do século XVII. Amigo pessoal de Newton,
sócio fundador da Royal Society, ele circulava entre cientistas
devotados à matemática, à física e à astronomia, que incluíam, além do
próprio Newton, Robert Hooke, Edmond Halley, Christopher Wren e muitos
outros. A ciência boyliana, empírica ou não, caracteriza-se por uma
ausência quase total de matemática, ao contrário daquela de seus amigos.
Boyle escreveu sobre uma enorme variedade de assuntos em química e em
física, além de incursões pela filosofia e pela teologia. Ele deu seu
nome à lei que diz que a uma temperatura constante a pressão e o volume
de um gás são inversamente proporcionais. Em química sua obra mais
importante é sem dúvida "The Sceptical Chymist", obra
marcadamente anti-paracelsista, publicada em 1661 em inglês, e não em
latim como era mais comum.
Um ano antes, em 1660, saíra
sua obra denominada "New Experiments Physico-mechanical, Touching the
Spring of Air and its Effects".
Desses estudos sobre a
elasticidade do ar surgiu sua lei dos gases referida acima. Boyle
apresentou também uma teoria corpuscular que muitas vezes se considera
como precursora da Teoria Atômica de Dalton, do início do século XIX. As
partículas constituintes da matéria podem rearranjar-se de várias
maneiras, de sorte que a transmutação elementar é possível. O ajuste das
diferentes partículas de matéria explicaria a afinidade química,
conceito bastante influenciado pela física newtoniana.
As figuras mostradas
são da primeira coletânea póstuma das obras de Boyle, publicada em três
volumes, em 1725, por Peter Shaw. A coleção traz um bom número de
ilustrações, realizadas com esmero e maestria. A Figura 17 traz o
frontispício do primeiro volume, enquanto a Figura 18 mostra a gravura
do 2º volume que ilustra sua bomba de vácuo original. |
|
|
Fig
17. Frontispício do 1º volume (de um total de três) de The
Philosophical Works, Robert Boyle, Londres, 1725 |
Fig. 18. A bomba de vácuo
original de Boyle, 2º vol. de "Works", Londres, 1725 |
|
O próximo autor a ser considerado é Johann Joachim Becher, médico e
químico alemão do século XVII. Becher admitia três classes de "terras",
que constituíam as diversas substâncias químicas. Os compostos eram
formados por diferentes proporções de cada "terra", as quais eram
denominadas por ele como "gorda", "vítrea" e "fluida". A primeira dava à
substância a propriedade da combustibilidade, a segunda correspondia à
propriedade da solidez e da incombustibilidade, como na maioria das
rochas, e a terceira correspondia à fusibilidade e ao brilho metálico.
Becher foi conselheiro comercial do Imperador Leopoldo I em Viena, e foi
essencial no estabelecimento de várias manufaturas químicas no Império
dos Habsburgo. Ele escreveu muitos livros sobre os assuntos mais
diversos, como química, economia, matemática e mineração. Sua obra
química mais influente, a Physica Subterranea, está aqui
representada. O livro teve uma primeira edição em 1667 e várias edições
posteriores. A edição aqui apresentada é a última, de 1738, e foi
organizada por seu discípulo, o também médico e químico Georg Ernst
Stahl (1660-1734), do qual nos ocuparemos mais adiante. Stahl foi também
o autor do prefácio desta edição.
A Figura 19 mostra a
portada do livro, com uma bela mas enigmática gravura repleta de
simbolismos de sabor alquímico. Em seguida, a Figura 20 mostra o
frontispício em preto e vermelho do livro, o qual é apresentado por
Stahl, à época também já falecido. |
|
|
Fig. 19. Johann Joachim Becher,
portada de Physica Subterranea, plena de alegorias
alquímicas |
Fig. 20. Johann Joachim Becher,
frontispício de Physica Subterranea, Leipzig, 1738 |
|
O último autor do século XVII abordado nesta resenha é o francês Nicolas
Lémery, autor de um dos livros mais longevos e vendidos da época, o
Cours de Chymie. Sua primeira edição saiu em 1675, e a ela se
seguiram várias edições francesas, assim como traduções em latim,
inglês, alemão, holandês, italiano e espanhol. A edição mostrada aqui é
a última, de 1757. Trata-se de uma edição póstuma, organizada pelo
químico Théodore Baron d´Hénouville (1715-1768). Curiosamente, a morte
de Baron em 1768 abriria uma vaga na Academia das Ciências de Paris, que
viria a ser preenchida pelo jovem Lavoisier.
Voltando ao livro de
Lémery, seu texto é direto e claro, razão pela qual se tornaria tão
popular. Ele respondia muitas das perguntas feitas na época, como se
pode ver em sua definição de ácido: "...eu direi que a acidez de um
licor consiste nas partículas de sal pontudas, as quais estão em
agitação; e não creio que se me possa contestar que o ácido não tenha
pontas, pois todas as experiências o mostram; basta prová-lo para sentir
esta sensação: porque ele faz comichões na língua semelhantes ou muito
parecidas com aquelas que se receberiam de alguma matéria cortada em
pontas muito finas..."
O livro de Lémery
traz ainda uma bela gravura inicial, representando um químico em seu
laboratório, e uma sequência de pranchas desdobráveis ao final, com
ilustrações de equipamentos e operações de laboratório.
A Figura 21 mostra o
frontispício do livro, ao passo que a figura 22 apresenta a gravura que
representa o laboratório. A Figura 23 reproduz o trecho em que aparece
sua definição de ácido, que contém várias outras "evidências" para
sustentar seu conceito. Finalmente, a Figura 24 corresponde a uma das
pranchas desdobráveis do final do livro. |
|
|
Fig. 21. Nicolas Lémery,
Cours de Chymie, Paris, 1757 |
Fig. 24. N. Lémery, Cours
de Chymie, instrumentos de laboratório |
|
|
Fig. 22.
N. Lémery, Cours de Chymie,
O Laboratório do Químico
|
|
|
Fig. 23.
N. Lémery, Cours de Chymie,
definição de ácido |
|
Engenheiro químico, UFMG (1967), com
doutorado em química, Universidade de Maryland (1972), pós-doutorado
também em química, Universidade de Cambridge (1980-81), estágios curtos
em várias universidades de diversos países. Foi professor titular de
química inorgânica na Universidade Federal de Minas Gerais (1968-1997) e
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997-2010). Atualmente é
pesquisador da UFMG. Dedica-se á pesquisa em química de coordenação e de
organometálicos, como também ao ensino da química e à pesquisa e
ensino em história da ciência. Tem publicado ao longo desses anos em
todas essas áreas. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Química no
biênio 1990-1992.
|
|
|