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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
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Carlos A. Filgueiras
(Universidade Federal de Minas Gerais) |
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A EVOLUÇÃO DA QUÍMICA DO SÉCULO
XVI AO SÉCULO XIX
ATRAVÉS DE TEXTOS ORIGINAIS |
INDEX |
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1ª PARTE: A QUÍMICA DO SÉCULO XVI
AO SÉCULO XVIII |
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CAPÍTULO I: A QUÍMICA NO SÉCULO
XVI |
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O século XVI testemunhou mudanças profundas na sociedade
européia. A descoberta de novas terras com tantas coisas novas e
insuspeitadas aguçou o sentimento de que o conhecimento dos antigos,
fossem eles filósofos pagãos da antiguidade ou doutores cristãos do
medievo, era limitado e havia muito mais para se conhecer do que se
supunha até então. A dúvida sobre as certezas herdadas do passado teve
um papel fundamental na construção da Revolução Científica que se
desencadeou a partir do século XVI. Novas explicações tinham que ser
buscadas fora dos arcabouços tradicionais, para dar conta de tanta
novidade que aparecia. Simultaneamente, a ocupação e colonização de
vastos continentes levou a uma gigantesca expansão das atividades
manufatureiras na Europa, numa escala nunca vista. Com efeito, para a
tarefa de colonização global era preciso dispor de quantidades imensas
de armas e munição, inúmeros tipos de instrumentos metálicos, fossem de
ferro, bronze ou outros metais e ligas, usados na agricultura, na
construção de edifícios e em várias outras atividades, objetos os mais
variados de cerâmica, vidro, couro, quantidades imensas de papel, e
assim por diante. A atividade mineira e metalúrgica desenvolveu-se de
forma intensa na Europa Central, sobretudo nas regiões de cultura
germânica. Tudo isto produziu um importante corpo de conhecimento sobre
os metais, sua obtenção, propriedades, etc, assim como a descoberta de
novos metais, desconhecidos dos antigos. A comunicação entre pessoas e
povos se intensificou pela rápida difusão da imprensa a partir de meados
do século XV. Também a comunicação física entre pessoas aumentou, pelas
viagens por todo o planeta, pelas constantes guerras, sobretudo as
guerras de religião, advindas da quebra da hegemonia papal no Ocidente
com as reformas da religião cristã em suas diversas modalidades. Muitas
doenças novas, contagiosas ou não, difundiram-se rapidamente, como a
sífilis, no primeiro caso, e a avitaminose C, ou escorbuto, no segundo.
A medicina começou a mudar bastante nessa época, levando consigo a
química.
O começo da chamada "Longa Revolução Química", que duraria dois
séculos e meio, data da primeira metade do século XVI, e teve dois eixos
principais. O primeiro, nascido na primeira metade do século, começou
com o químico e médico prático suíço Filipe Teofrasto Paracelso
(1493-1541). Paracelso tinha um profundo senso místico e acreditava que
a função da química era curar as doenças humanas. Ele fundou aquilo que
se convencionou denominar iatroquímica, ou química medicinal. Para ele,
a função do químico era preparar compostos específicos para curar as
doenças. Ele foi o introdutor do conceito de etiologia das doenças, isto
é, cada doença tem sua causa própria. Para ele, as causas eram todas
químicas, por isso era com a química que as doenças deviam ser curadas.
O corpo humano era, na sua concepção, um verdadeiro laboratório químico,
onde um sem-número de reações eram processadas continuamente. Ele se
insurgiu contra a teoria galênica, vinda da antiguidade clássica, em que
a doença era encarada como uma perturbação no equilíbrio dos "humores"
existentes no corpo humano. Havendo, por exemplo, excesso do humor
sangue, o médico devia executar uma sangria no paciente. Estando este
debilitado pela doença, muitas vezes o tratamento piorava a situação. Os
medicamentos eram em geral de origem vegetal e se apresentavam como "panacéias",
misturas às vezes bastante heterogêneas contendo dezenas de
ingredientes. O conceito paracelsista de etiologia da doença levou a uma
busca por medicamentos precisos para cada enfermidade. Paracelso também
ampliou o leque de substâncias a usar, ao propor e praticar a síntese de
novos medicamentos sintéticos de natureza inorgânica, em geral sais
contendo mercúrio, ouro, antimônio, arsênio, enxofre e outros elementos.
É bem verdade que muitos desses compostos são altamente tóxicos, mas
alguns foram utilizados até o século XX, como o calomelano, ou cloreto
mercuroso, sintetizado e descrito por Paracelso. Há um aspecto em sua
química, contudo, mantidas as devidas ressalvas, que o aproxima de uma
química medicinal extremamente moderna, qual seja a química medicinal
inorgânica. Esta teve seu marco inicial em meados dos anos 60 do século
passado, com o advento do uso da cisplatina, ou
cis-diaminodicloroplatina(II), um composto totalmente inorgânico, no
tratamento de vários tumores cancerosos. A partir daí este ramo da
química medicinal se desenvolveu com grande vigor e hoje ocupa um lugar
de grande importância nos programas de pesquisa no mundo inteiro.
É com Paracelso que se inicia uma nova fase nos estudos da
matéria e suas transformações. A antiga preocupação dos alquimistas com
a transmutação elementar é deixada de lado como algo totalmente
desimportante. O papel da química agora é entender o funcionamento do
corpo humano e produzir medicamentos em laboratório para combater
enfermidaddes específicas. A química chega a se confundir por vezes com
a medicina ou a farmácia. A doutrina química volta-se para a arte de
curar, dando à química um caráter ancilar à medicina, numa situação que
perduraria até finais do século XVII.
Em contraposição, a química dos mineradores e metalurgistas,
daqueles que denominaríamos muito mais "engenheiros" hoje em dia, não se
preocupa tanto com doutrinas e sim com resultados. É uma atividade
empírica, pragmática, que busca produzir cada vez mais e melhor, com
redução de custos e aumento de produtividade. Assim, podemos reconhecer
nitidamente no século XVI duas vertentes distintas na atividade química.
A primeira é representada pelos iatroquímicos, seguidores em maior ou
menor grau das doutrinas paracelsistas, e cuja maior preocupação é a
preparação de medicamentos químicos para a cura das doenças humanas. A
segunda vertente, dos mineradores e metalurgistas, não se preocupa tanto
com doutrinas, e sim com o aumento e a melhoria de seus resultados
práticos.
Paracelso, em que pesem seus méritos, foi também um grande
polemista, tendo feito inimigos em vários sítios por onde passou. Em
virtude dessas inimizades e da oposição que elas lhe granjearam, muitas
de suas obras só puderam ser publicadas após sua morte. A leitura de
seus textos é difícil, pela linguagem às vezes confusa e pelo grande
misticismo que os permeia.
A Figura 1 mostra o frontispício da obra de Paracelso
intitulada De Vita Longa, dividido em cinco "livros", ou capítulos,
publicada em Basiléia em 1566, embora a data não apareça no
frontispício. A obra é um texto de medicina recheado de prescrições para
remédios químicos.
A Figura 2 apresenta a portada de um segundo livro de Paracelso,
numa compilação de Leon Suábio, que contém ainda uma biografia do
médico suíço e um catálogo de suas obras. Este segundo livro se intitula
Philosophiae et Medicinae Utriusque Universae Compendium (Compêndio de
toda a Filosofia e Medicina), tendo sido também publicado em Basiléia,
porém em 1568, como se pode ler claramente no frontispício. Esta obra
amplia a anterior e está encadernada juntamente com a primeira numa capa
de pergaminho de época. A composição deste livro é certamente bem
anterior à data de publicação, pois um dos prefácios que antecedem o
texto é de autoria do famoso humanista da Renascença Erasmo de Roterdam,
(1466-1536), falecido em Basiléia pouco antes de Paracelso, que morreria
em Salzburg, onde está sepultado.
O prefácio do humanista holandês, reproduzido na Fig. 3, começa
com uma dedicatória reveladora da admiração de Erasmo pelo autor: "Ao
muito perito nas coisas médicas, doutor Teofrasto Eremita, Erasmo de
Roterdam". Ao final, vem a assinatura: "Erasmo de Roterdam, por sua
própria mão". |
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Figura 1. Paracelso, De Vita Longa, Basiléia,
1566 |
Figura 2. Paracelso, Philosophiae et
Medicinae Utriusque Universae Compendium, Basiléia, 1568 |
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Figura 3. Prefácio de Erasmo de Roterdam ao
livro de Paracelso Philosophiae et Medicinae Compendium |
Figura 4. Lazarus Ercker, frontispício de
1672, ostentando o título Aula Subterranea Domina Dominantium
Subdita Subditorum, Frankfurt |
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Como
exemplo da outra vertente da química do século XVI, apresenta-se aqui um
livro que foi um dos primeiros compêndios de química analítica e
metalúrgica. Seu autor, Lazarus Ercker, viveu entre 1530 e 1594 na
Alemanha e na Boêmia. Em 1574 ele publicou em Praga sua grande obra,
intitulada Beschreibung allerfürnemisten mineralischen Ertzt und
Berckwercksarten, que pode ser traduzido como Descrição dos principais
métodos de de mineração e tratamento de minérios. O livro teve uma
edição posterior, em 1672-1673, organizada por Christianus Berwardus,
que acrescentou um segundo frontispício (donde as duas datas de
publicação mencionadas, cada uma correspondendo a um dos frontispícios).
Esta edição saiu à luz em Frankfurt. O primeiro frontispício do livro,
de 1672, está mostrado na Fig. 4 e se intitula Aula Subterranea Domina
Dominantium Subdita Subditorum, ou Aula Subterrânea, Senhora dos
Dominantes, Súdita dos Súditos). O segundo frontispício do mesmo livro,
do ano seguinte, é uma belíssima gravura com aspectos do que se discute
no livro e com alegorias. Este segundo frontispício tem o título de Aula
Subterranea alias Probier Buch Herrn Lazari Erckers (Aula Subterrânea,
aliás Livro de Ensaios do Senhor Lazarus Ercker). Como o livro de Ercker
é uma obra composta no século XVI, optou-se por sua colocação no
presente capítulo, mesmo que a edição aqui mostrada seja do século XVII.
Berwardus também acresentou à obra de Ercker sua própria
composição, intitulada Interpres Phraseologiae Metallurgicae, ou
Intérprete da Fraseologia Metalúrgica. A edição de Berwardus mantém
todas as belíssimas xilogravuras da primeira edição, num total de 41
pranchas, das quais muitas ocupam praticamente uma página inteira do
fólio. Estas gravuras mostram minas, laboratórios, equipamentos
variados, fornalhas, em cenas populadas por personagens usando roupas do
século XVI. Além da beleza desta edição, o presente exemplar ainda se
encontra encadernado numa folha em pergaminho de um antifonário do
século XVI. Na impossibilidade de apresentar todas as gravuras do livro,
mostram-se aqui algumas delas, que ilustram como este é ao mesmo tempo
um livro técnico e uma obra de arte. |
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Figura 5. Lazarus Ercker, frontispício de 1673, com o
título Aula Subterranea alias Probier Buch Herrn Lazari Erckers,
Frankfurt |
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Fig. 6. Introdução aos 5 "livros" em que se
divide a obra de Ercker |
Fig. 7. A mineração do cobre, de Ercker |
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Fig. 8. A mineração do chumbo, de Ercker |
Fig. 9. A mineração do ouro, de Ercker |
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Fig. 10. O tratamento do minério, de Ercker |
Fig. 11. O laboratório para ensaios com
minério de ouro, de Ercker |
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Embora o século XVI tenha testemunhado, como
já foi dito, o aparecimento de duas vertentes da química independentes
da alquimia, esta ainda se manteve viva e ativa pelo menos até o final
do século XVII. Por isto, existem muitos livros do que se poderia
denominar uma alquimia tardia, alguns dos quais bastante interessantes.
Mesmo no século XVIII, pelo menos em sua primeira metade, produziram-se
várias obras de alquimia, a qual, todavia, foi desaparecendo lentamente
com o extraordinário progresso da química dos setecentos.
A Figura 12 mostra o frontispício de um desses livros de
alquimia tardia, "De Veritate et Antiquitate Artis Chemicae et Pulveris",
ou "Da Antiguidade e Verdade da Arte da Química e do Pó". O livro é de
autoria do médico e alquimista Robertus Vallensis e foi publicado em
Leiden, na Holanda, em 1593, como se pode ler na portada. É também
interessante reparar no subtítulo da obra, "sive Medicinae Philosophorum
vel Auri Potabilis", que se traduz como "ou da Medicina dos Filósofos ou
do ouro Potável". O livro é uma coletânea de textos de muitos escritores
do assunto desde a antiguidade, com comentários do autor. É
interessante observar uma mudança que já se havia operado há bastante
tempo, pela qual as palavras alquimia e química são usadas
indiferentemente com o mesmo sentido. O livro é uma verdadeira história
da alquimia, ou pelo menos uma resenha de um grande número de autores
sobre o assunto, desde o Antigo Testamento, chegando à Grécia e à Roma
clássicas, e atravessando toda a Idade Média, tanto por seus autores
islâmicos como latinos. Uma curiosidade interessante é que Isaac Newton
possuía um exemplar deste livro em sua biblioteca, que compreendia um
bom número de obras de alquimia.
A Figura 13 reproduz as duas primeiras páginas do livro de
Robertus Vallensis, com um poema encomiástico sobre o autor e o início
do prefácio da obra. Este começa com uma descrição da origem por ele
atribuída ao vocábulo química, aludindo à grande habilidade dos antigos
artesãos alexandrinos na arte de fundir e trabalhar metais: "O nome da
arte química foi tomado do vocábulo grego chemeia, que significa fusão."
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Fig. 12. Frontispício do livro de Robertus Vallensis, De
Veritate et Antiquitate Artis Chemicae et Pulveris, Leiden, 1593 |
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Fig. 13. Prefácio do livro de Robertus Vallensis,
1593 |
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Engenheiro químico, UFMG (1967), com
doutorado em química, Universidade de Maryland (1972), pós-doutorado
também em química, Universidade de Cambridge (1980-81), estágios curtos
em várias universidades de diversos países. Foi professor titular de
química inorgânica na Universidade Federal de Minas Gerais (1968-1997) e
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997-2010). Atualmente é
pesquisador da UFMG. Dedica-se á pesquisa em química de coordenação e de
organometálicos, como também ao ensino da química e à pesquisa e
ensino em história da ciência. Tem publicado ao longo desses anos em
todas essas áreas. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Química no
biênio 1990-1992.
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