Carlos A. Filgueiras
(Universidade Federal de Minas Gerais)

A EVOLUÇÃO DA QUÍMICA DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XIX
ATRAVÉS DE TEXTOS ORIGINAIS

INDEX

Introdução

         Os documentos escritos, seja qual for o meio material usado, têm uma "vida"  que se pode perceber com os sentidos. Quem tenha visto um papiro egípcio, o Código de Hamurábi, a Pedra de Rosetta, um manuscrito iluminado medieval, a Carta de Pero Vaz de Caminha, a Viagem Pitoresca de Debret, e tantos outros textos manuscritos, esculpidos, pintados, gravados ou impressos, reconhece imediatamente o poder de sedução que esses objetos têm sobre o ser humano. De todos os textos, os mais abundantes na bibliografia mundial são aqueles produzidos sobre o suporte de papel. Por isso serão os livros, periódicos e documentos em papel que serão aqui abordados. É claro que outros meios modernos existem e é impossível conceber a vida atual sem estes meios, sobretudo aqueles surgidos com o advento dos computadores. Estes novos meios e aqueles em papel se complementam de forma admirável. Engana-se, porém, quem pensar que os novos meios acabarão com os anteriores. Ao contrário, eles se reforçam mutuamente. A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro contém livros que datam desde o século XI, e existem no mundo outros muito mais antigos, e em perfeitas condições de legibilidade. Só este fato é suficiente para demonstrar a durabilidade dos livros. Além disso, quem já não experimentou inúmeras vezes sensações agradáveis ao folhear, ler ou manusear um livro? São sensações que pertencem aos sentidos do tato, ao folhearmos os livros, do olfato, pois os livros têm cheiros os mais variados, da audição, pelos ruídos que percebemos ao folheá-los, e sobretudo da visão, por meio da qual somos conduzidos à percepção dos mais profundos raciocínios científicos ou filosóficos, ao deleite literário ou artístico, ao aprendizado em todos os níveis, enfim, a uma variadíssima diversidade de conhecimentos, informações e sensações de todo tipo. A visão dos textos e imagens nos livros provém de luz refletida por eles, assim como na visão da natureza na maioria dos casos. A visão em uma tela de computador, assim como a visão do sol ou das estrelas, provém de uma emissão de luz. É por isso que ler um texto sobre papel é mais confortável a nossos olhos que a leitura numa tela de computador. Não quero aqui contrapor o livro ao computador, pois este é um falso dilema. Cada qual tem suas especificidades e ambos são ferramentas preciosas e inestimáveis. Quero apenas mostrar certas características do livro que o tornam único, e que fazem que ele se tenha mantido por tantos séculos praticamente no mesmo formato. O livro pode ser carregado facilmente, lido sobre uma escrivaninha ou no colo, levado em viagem, etc., sem necessidade de energia artificial para seu uso. Ele é um companheiro dócil e prestativo, que nos faz companhia quando queremos, e se presta às mais diferentes funções.

         É portanto sobre livros que escreverei aqui, mais especificamente sobre livros de química. Sobre livros de química, mas com uma visão diferente daquela das resenhas, revisões ou críticas que lemos com frequência. Procurarei mostrar, dentro de uma amostragem limitada, porém significativa, como se desenrolou a evolução da literatura química do século XVI ao início do século XIX. Isto será feito exclusivamente a partir de textos originais do período escolhido, que o leitor poderá ver pessoalmente na exposição promovida pela Sociedade Brasileira de Química em sua 33ª Reunião Anual. Contudo, qual a razão deste recorte temporal de três séculos? O período mais antigo representa aquele em que a química começa a surgir como uma ciência da natureza, separando-se lentamente da alquimia que, após vários florescimentos, atingira um patamar de exaustão, e seria eventualmente superada pela nova ciência. O século XVI é também aquele em que começam a disseminar-se livros de química na forma impressa, embora os livros de alquimia também continuem a ser produzidos, como se mostrará aqui.

         O período final, isto é, o início do século XIX, marca o triunfo da nova química de Lavoisier e dos químicos da segunda metade do século XVIII, inaugurando uma nova era na ciência química. Do nosso ponto de vista, ele é também o período em que o ensino da química é  institucionalizado no Brasil. Isto nos remete à necessidade de considerar o desenvolvimento da ciência moderna em Portugal, em particular a química, ao longo do século XVIII.

         Todas as nossas atividades têm necessariamente um recorte, para não caírem no excesso. Esta foi a razão de levar este texto e a exposição que o acompanha apenas até o raiar do século XIX. De qualquer forma, acredito que a escolha, apesar de arbitrária, seja de interesse da comunidade representada na Sociedade Brasileira de Química, uma vez que talvez seja inédita no Brasil uma mostra da evolução da ciência química, tanto na Europa como um todo como no mundo lusófono em particular, da maneira como está sendo feita, utilizando-se apenas material original.

         Os livros-textos que usamos no dia-a-dia passam-nos uma visão anacrônica de como se desenvolve a ciência. Embora isto não esteja explícito nos textos, fica para muitos a impressão de que primeiro se descobriu o que está relatado no capítulo 1, depois aquilo de que consta o capítulo 2, e assim por diante. Nada mais distante da realidade, porém. É claro que não é objetivo dos livros-textos descrever a evolução da ciência, mas sim ensiná-la. Ver como se deu a evolução da ciência, porém, com todos os seus avanços, percalços, erros, retrocessos, estagnações e triunfos é ver a própria evolução do espírito humano, que está longe de ser linear. Percebida dessa maneira a ciência se humaniza e perde muito da distância que muitos imaginam existir entre ela e os seres humanos de carne e osso. Fica assim mais fácil apreender uma verdade que muitas vezes se esquece, que é a presença constante de fatores subjetivos na prática científica, por mais objetivos que queiramos ser. Quem é que, ao finalizar a síntese de uma nova substância e obter mais de um espectro de RMN ou de IV não escolhe os "melhores" espectros para uma tese ou uma publicação? Isto não é nenhuma fraude, em absoluto, mas a constatação de uma prática subjetiva normal e comum no quotidiano de qualquer cientista. Longe de ser uma constatação desairosa, ela é humanizante, e altera a visão baconiana de uma ciência absolutamente "objetiva", sem intervenções que não aquelas ditadas exclusivamente pelos fatos observados.  É claro que este assunto daria uma discussão de grandes proporções, mas não é meu objetivo estender-me nele. Queria apenas mostrar que a objetividade é uma meta sumamente importante e desejável, mas que a todo momento outros fatores entram em cena. É justamente a conjunção de todos esses aspectos que torna fascinante o estudo de como se dá a evolução da ciência no tempo. Este entendimento enriquece o praticante da ciência, pois mostra-lhe que tanto ele como seus colegas, seus antecessores e seus sucessores estão sujeitos a uma tessitura de influências em seu trabalho, muitas vezes insuspeitadas. Ao mesmo tempo, o conhecimento da história da ciência dá uma perspectiva rica e imprescindível a quem deseja entender o complexo processo da criação científica.   

         Se quisermos, portanto, adentrar o processo histórico da criação da ciência, nada melhor que um contacto direto com seus protagonistas e as obras originais produzidas por eles. As obras originais parecem ter o dom de nos aproximarem mais intimamente de seus autores, como se nos tornássemos, quase por um passe de mágica, seus contemporâneos. É a busca dessa intimidade que a presente exposição pretende, embora de forma modesta.

         Como observação final a esta introdução, este texto não tem qualquer veleidade de ser uma história da química nos séculos aqui abordados. Isto fugiria totalmente aos objetivos traçados. Este é um comentário breve e resumido de um conjunto de livros que evidentemente não abrangem a imensa riqueza da literatura química da época. O que se pretende é tão somente conduzir o leitor a um percurso por entre alguns exemplos de obras químicas dos três séculos escolhidos. Embora a amostragem seja necessariamente pequena, espera-se que o leitor saboreie o cabedal de conhecimento científico e histórico, a diversidade e a beleza que a literatura química nos dá através do tempo.   

Engenheiro químico, UFMG (1967), com doutorado em química, Universidade de Maryland (1972), pós-doutorado também em química, Universidade de Cambridge (1980-81), estágios curtos em várias universidades de diversos países. Foi professor titular de química inorgânica na Universidade Federal de Minas Gerais (1968-1997) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997-2010). Atualmente é pesquisador da UFMG. Dedica-se á pesquisa em química de coordenação e de organometálicos, como também ao ensino da química e à pesquisa e ensino em história da ciência. Tem publicado ao longo desses anos em todas essas áreas. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Química no biênio 1990-1992.