Os documentos escritos, seja qual for o meio material usado, têm uma
"vida" que se pode perceber com os sentidos. Quem tenha visto um papiro
egípcio, o Código de Hamurábi, a Pedra de Rosetta, um manuscrito
iluminado medieval, a Carta de Pero Vaz de Caminha, a Viagem Pitoresca
de Debret, e tantos outros textos manuscritos, esculpidos, pintados,
gravados ou impressos, reconhece imediatamente o poder de sedução que
esses objetos têm sobre o ser humano. De todos os textos, os mais
abundantes na bibliografia mundial são aqueles produzidos sobre o
suporte de papel. Por isso serão os livros, periódicos e documentos em
papel que serão aqui abordados. É claro que outros meios modernos
existem e é impossível conceber a vida atual sem estes meios, sobretudo
aqueles surgidos com o advento dos computadores. Estes novos meios e
aqueles em papel se complementam de forma admirável. Engana-se, porém,
quem pensar que os novos meios acabarão com os anteriores. Ao contrário,
eles se reforçam mutuamente. A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
contém livros que datam desde o século XI, e existem no mundo outros
muito mais antigos, e em perfeitas condições de legibilidade. Só este
fato é suficiente para demonstrar a durabilidade dos livros. Além disso,
quem já não experimentou inúmeras vezes sensações agradáveis ao folhear,
ler ou manusear um livro? São sensações que pertencem aos sentidos do
tato, ao folhearmos os livros, do olfato, pois os livros têm cheiros os
mais variados, da audição, pelos ruídos que percebemos ao folheá-los, e
sobretudo da visão, por meio da qual somos conduzidos à percepção dos
mais profundos raciocínios científicos ou filosóficos, ao deleite
literário ou artístico, ao aprendizado em todos os níveis, enfim, a uma
variadíssima diversidade de conhecimentos, informações e sensações de
todo tipo. A visão dos textos e imagens nos livros provém de luz
refletida por eles, assim como na visão da natureza na maioria dos
casos. A visão em uma tela de computador, assim como a visão do sol ou
das estrelas, provém de uma emissão de luz. É por isso que ler um texto
sobre papel é mais confortável a nossos olhos que a leitura numa tela de
computador. Não quero aqui contrapor o livro ao computador, pois este é
um falso dilema. Cada qual tem suas especificidades e ambos são
ferramentas preciosas e inestimáveis. Quero apenas mostrar certas
características do livro que o tornam único, e que fazem que ele se
tenha mantido por tantos séculos praticamente no mesmo formato. O livro
pode ser carregado facilmente, lido sobre uma escrivaninha ou no colo,
levado em viagem, etc., sem necessidade de energia artificial para seu
uso. Ele é um companheiro dócil e prestativo, que nos faz companhia
quando queremos, e se presta às mais diferentes funções.
É portanto sobre livros que escreverei aqui, mais
especificamente sobre livros de química. Sobre livros de química, mas
com uma visão diferente daquela das resenhas, revisões ou críticas que
lemos com frequência. Procurarei mostrar, dentro de uma amostragem
limitada, porém significativa, como se desenrolou a evolução da
literatura química do século XVI ao início do século XIX. Isto será
feito exclusivamente a partir de textos originais do período escolhido,
que o leitor poderá ver pessoalmente na exposição promovida pela
Sociedade Brasileira de Química em sua 33ª Reunião Anual. Contudo, qual
a razão deste recorte temporal de três séculos? O período mais antigo
representa aquele em que a química começa a surgir como uma ciência da
natureza, separando-se lentamente da alquimia que, após vários
florescimentos, atingira um patamar de exaustão, e seria eventualmente
superada pela nova ciência. O século XVI é também aquele em que começam
a disseminar-se livros de química na forma impressa, embora os livros de
alquimia também continuem a ser produzidos, como se mostrará aqui.
O período final, isto é, o início do século XIX, marca o
triunfo da nova química de Lavoisier e dos químicos da segunda metade do
século XVIII, inaugurando uma nova era na ciência química. Do nosso
ponto de vista, ele é também o período em que o ensino da química é
institucionalizado no Brasil. Isto nos remete à necessidade de
considerar o desenvolvimento da ciência moderna em Portugal, em
particular a química, ao longo do século XVIII.
Todas as nossas atividades têm necessariamente um recorte, para
não caírem no excesso. Esta foi a razão de levar este texto e a
exposição que o acompanha apenas até o raiar do século XIX. De qualquer
forma, acredito que a escolha, apesar de arbitrária, seja de interesse
da comunidade representada na Sociedade Brasileira de Química, uma vez
que talvez seja inédita no Brasil uma mostra da evolução da ciência
química, tanto na Europa como um todo como no mundo lusófono em
particular, da maneira como está sendo feita, utilizando-se apenas
material original.
Os livros-textos que usamos no dia-a-dia passam-nos uma visão
anacrônica de como se desenvolve a ciência. Embora isto não esteja
explícito nos textos, fica para muitos a impressão de que primeiro se
descobriu o que está relatado no capítulo 1, depois aquilo de que consta
o capítulo 2, e assim por diante. Nada mais distante da realidade,
porém. É claro que não é objetivo dos livros-textos descrever a evolução
da ciência, mas sim ensiná-la. Ver como se deu a evolução da ciência,
porém, com todos os seus avanços, percalços, erros, retrocessos,
estagnações e triunfos é ver a própria evolução do espírito humano, que
está longe de ser linear. Percebida dessa maneira a ciência se humaniza
e perde muito da distância que muitos imaginam existir entre ela e os
seres humanos de carne e osso. Fica assim mais fácil apreender uma
verdade que muitas vezes se esquece, que é a presença constante de
fatores subjetivos na prática científica, por mais objetivos que
queiramos ser. Quem é que, ao finalizar a síntese de uma nova substância
e obter mais de um espectro de RMN ou de IV não escolhe os "melhores"
espectros para uma tese ou uma publicação? Isto não é nenhuma fraude, em
absoluto, mas a constatação de uma prática subjetiva normal e comum no
quotidiano de qualquer cientista. Longe de ser uma constatação
desairosa, ela é humanizante, e altera a visão baconiana de uma ciência
absolutamente "objetiva", sem intervenções que não aquelas ditadas
exclusivamente pelos fatos observados. É claro que este assunto daria
uma discussão de grandes proporções, mas não é meu objetivo estender-me
nele. Queria apenas mostrar que a objetividade é uma meta sumamente
importante e desejável, mas que a todo momento outros fatores entram em
cena. É justamente a conjunção de todos esses aspectos que torna
fascinante o estudo de como se dá a evolução da ciência no tempo. Este
entendimento enriquece o praticante da ciência, pois mostra-lhe que
tanto ele como seus colegas, seus antecessores e seus sucessores estão
sujeitos a uma tessitura de influências em seu trabalho, muitas vezes
insuspeitadas. Ao mesmo tempo, o conhecimento da história da ciência dá
uma perspectiva rica e imprescindível a quem deseja entender o complexo
processo da criação científica.
Se quisermos, portanto, adentrar o processo histórico da
criação da ciência, nada melhor que um contacto direto com seus
protagonistas e as obras originais produzidas por eles. As obras
originais parecem ter o dom de nos aproximarem mais intimamente de seus
autores, como se nos tornássemos, quase por um passe de mágica, seus
contemporâneos. É a busca dessa intimidade que a presente exposição
pretende, embora de forma modesta.
Como observação final a esta introdução, este texto não tem
qualquer veleidade de ser uma história da química nos séculos aqui
abordados. Isto fugiria totalmente aos objetivos traçados. Este é um
comentário breve e resumido de um conjunto de livros que evidentemente
não abrangem a imensa riqueza da literatura química da época. O que se
pretende é tão somente conduzir o leitor a um percurso por entre alguns
exemplos de obras químicas dos três séculos escolhidos. Embora a
amostragem seja necessariamente pequena, espera-se que o leitor saboreie
o cabedal de conhecimento científico e histórico, a diversidade e a
beleza que a literatura química nos dá através do tempo. |