Quando era pequeno ouvia falar de um ilustre explorador e cientista que viveu muitos anos em Angola e que tinha morrido por ali. A minha mãe, dada a ensinar-nos as coisas da terra, falava sempre disso para mostrar que não vivíamos num mundo inculto, mas sim numa cidade com pergaminhos e tradições de poetas, professores e intelectuais.
Muitos anos depois passei por Benguela. Queria saber quais eram os livros que realmente se liam por ali e a memória do explorador José de Anchieta já tinha passado para o outro lado do muro. Anchieta mesmo, para mim, era já só aquele padre que fazia versos para converter os índios. De Benguela e de Angola, quanto a livros e leituras, as notícias eram escassas e, quase todas, corroídas pelo tempo. Fui-me deparando, no entanto, com sinais que desmentiam um velho lugar comum: o de que antigamente, ali, não havia livros nem as luzes da cultura tal como a Europa a concebia. E talvez não houvesse muito mas, por via das dúvidas, entendi que só estudando a circulação de livros na então colónia podia clarificar a velha imagem. Ao fazê-lo, pesquisando pelos acervos de Luanda e reencontrando parentes, redescubro o nome da rua José de Anchieta na capital do país e recomeço, muito vagamente, a recuperar a memória dessa história da infância. Vou para Benguela, procurar nos inventários orfanológicos do século XIX referências a livros. Comecei em 1855, o primeiro ano de que ainda há inventários orfanológicos com menção a livros (ali só há registos a partir dos anos 50 desse século; os anteriores desapareceram por entre estórias de contornos vagos...). Acompanhado por traças, ratos, baratas, algum cheiro de chuva pelo ar e funcionários do tribunal que iam lanchar ali, vi pacientemente ano a ano, tomando nota da mínima menção a livros, bem como a instrumentos musicais ou tecnologia moderna (laboratórios fotográficos, por exemplo). Quando estava quase no fim, entre as pastas referentes a 1899, aparece-me então uma, de Caconda, onde falecera um tal José de Anchieta, investigador zoólogo. Religuei as coisas. Ali estava listado, título por título, o espólio do investigador José Félix de Anchieta, "o mais exaustivo colector da época" (1). Por ele podia entrever o apetrechamento bibliográfico e técnico de um "explorador zoólogo". Mas não só. Também um pouco da cultura científica da altura, outro tanto da literária (muito marcada ainda pelos clássicos gregos e latinos, onde certamente se buscavam também informações sobre plantas e animais) e os títulos que, por via do explorador, foram postos a circular no país. Isto porque o desenlace da história é típico: os herdeiros terão sido espoliados em leilão, pois não tinham noção do interesse que a obra podia representar. Entre comerciantes e fazendeiros (alguns acumulavam) a bibliografia foi-se dispersando. O que teve a consequência positiva de os livros serem comprados e recomprados várias vezes, algumas delas para leitura e não só para revenda ou pelo peso do papel. Portanto, espalhou-se por Angola a livraria que ele para lá levou e que lá foi acrescentando. Augusto Bastos, um benguelense emérito do princípio do século passado, que fez a etnografia de Benguela e a da Catumbela (publicadas em Lisboa pela Sociedade de Geografia, de que era sócio) pode ter beneficiado, quando pequeno, dessa bibliografia. Ela ilustrou os jovens das gerações seguintes e daí veio um contributo póstumo de José de Anchieta à terra que lhe deu os filhos. Uma última utilidade que o presente quadro tem é relativa à maneira de o escrivão nomear os livros. Isso cria dificuldades para os identificarmos (estando a investigação ainda nessa fase de identificação de títulos duvidosos) mas ao mesmo tempo assinala os limites da cultura (e até a pronúncia) do funcionário judicial e, muito possivelmente, dos que o rodeavam. A transcrição literal de alguns títulos mostra-nos isso.
Quando, mais tarde, em conversa com uma colega, soube do interesse em José de Anchieta, investigador conhecido e estudado em Portugal no âmbito da história da ciência, decidi mostrar o quadro bibliográfico recolhido. Na sequência disso foi-me sugerido que o publicasse aqui. É o que faço. Com algumas (inevitáveis) notas, desta vez menos biográficas.
Primeira: inicialmente, o quadro incluia referências aos livros que circularam em Angola no século XIX e de que tinha notícia até então. Sendo a figura principal desta curta narrativa a do explorador português, aliás estudado em textos que integram este sítio, não fazia sentido incluir o quadro completo, as quarenta e tal páginas. Resumi-o, portanto, à bibliografia deixada por Anchieta quando morreu.
Segunda nota: como se verá, muitas referências não eram suficientemente legíveis ou esclarecedoras. Umas poucas deixaram mesmo de fazer parte da listagem. Muitas vezes os nomes dos livros eram indicados de uma forma tão incompleta ou tão adulterada que, somado isso à dificuldade em lhes encontrar hoje referências, não consegui identificá-los. Nesses casos o título vai também transcrito literalmente. Quando não deu para resolver dúvidas sobre determinado título, a sua equiparação a outro, ou a correspondência com determinado autor, coloquei entre parêntesis um ponto de interrogação frente ao autor ou ao título, conforme os casos. De forma geral, a grafia é actualizada.
A terceira nota é sobre a repetição de títulos. Havia duas listagens, em geral sendo a segunda mais completa. Quando o mesmo título se repete de uma para outra com diferenças significativas transcrevo das duas maneiras.
Última nota: não estando a fase de identificação dos livros terminada, só vão identificados, em nota, aqueles de que era indicado o nome do autor. Os de que só tenho títulos ainda não foram pesquisados. Alguns deles, por dois ou três casos que já vi, tinham autores conhecidos, sendo apenas por lapso que o respectivo nome não se incluía na listagem.
Segue-se a lista de livros do espólio de José de Anchieta. |