A.A. AMORIM DA COSTA
A ALQUIMIA EM PORTUGAL

O REI ALPHONSO (1)
Substituindo o Homem por Deus, fecha-se
o circulo: Deus elogia Deus

(Festugière)
1. Introdução

"A alquimia foi uma mística. O vocabulário utilizado tinha por vezes um sentido alegórico. Durante a realização da sua "Obra", o alquimista teria ensaiado menos transmutar metais do que transformar a sua alma, purificar os seus instintos, progredir no caminho do Bem. A matéria-prima da manipulação não é então aquela que reage nas retortas, mas o indivíduo que age sobre si próprio. O acto alquímico tece entre a matéria da reacção e o indivíduo subtis relações de similitude. O homem espera transformar-se como pensa transmutar a matéria, passando de algo de vil a algo de nobre. De algum modo, é participando no aperfeiçoamento da matéria, na salvação desta, que ele assegura a sua própria salvação" 1.

Muito pouco se tem escrito sobre a alquimia, em Portugal. Inclusivé, não falta quem pense que ela praticamente não existiu, nem teve cultores propriamente ditos: "a pedra filosofal dos Portugueses foi a descoberta de novos mundos. Os seus laboratórios foram as caravelas, os seus alquímicos os audazes mareantes, navegadores e descobridores que as tripularam, o seu campo de acção, o mar imenso", escrevia, em 1925, o professor Alberto de Aguiar, na sua Notícia Histórica da Química Portuense2.

A realidade é, todavia, e com toda a probabilidade, completamente diferente. Se, por via de regra, os alquimistas mais afamados, de Arnaldo de Vilanova (1240- 1311) ou Nicolau Flamel (1330-1417) a Bernardo-o-Trevisano (1406-1490) ou Paracelso (1493-1541) foram grandes viajantes, quais "judeus errantes" à procura do grande segredo da Pedra Filosofal, e na sua apresentação nos locais mais reconditos e menos esperados, teremos de admitir, pelo menos até prova em contrário, que Portugal tenha sido também país desejado e visitado por alguns deles que por cá se terão demorado (e, porventura, fixado), deixando atrás de si alguns discípulos, fervorosos depositários de seus ensinamentos, de cujas práticas se podem encontrar vestígios, aqui e ali.

Que Raimundo Lúlio e Arnaldo de Vilanova tiveram, neste nosso país, fervorosos sequazes, cuja marca clara transparece nos seus escritos, é facto já mostrado3,4. E da vinda de Paracelso a Portugal nos informa Sennert5 e nos falam Anselmo Caetano6 e o insígne historiador das Ciências Aldo Mieli7.

Do quanto o ideal cavaleiresco da Távola Redonda na "demanda do Santo Graal" informou aqueles que por suas obras deram autonomia à cultura portuguesa, ao mesmo tempo e medida em que se consolidava a autonomia e independência nacionais, também já muito foi dito e escrito8, com grande realce para a importância que esse ideal representa, como mito propulsor, para a sã compreensão e interpretação das viagens históricas dos Descobrimentos9, "demanda do Paraíso perdido" que "contém em si todas as modalidades possíveis de propiciar a transmutação do ser10. Procurando o caminho marítimo para a Índia, e ao longo dele "novos mundos para dar ao Mundo", os descobridores portugueses buscavam, com insistência, o reino do Prestes João, qual refúgio do Santo Graal, onde o contacto com o Templo eterno se tornaria viável"11.

Da influência cultural da Ordem do Templo e, depois, da Ordem de Cristo, em Portugal, ninguém tem dúvidas12. Mas, que sabemos ao certo da acção hermética e esotérica de seus membros dentro deste reino? Mera efabulação, mera especulação e puro acidente que um sem número de estudiosos das ciências ocultas se imponham como lugar de peregrinação obrigatório o Convento de Cristo, em Tomar, e, na sua cripta se demorem na sala que se diz ter sido a sala da iniciação?1.

À guisa de História, sem recuarmos aos tempos de Pedro Hispano a quem é atribuído um tratado alquímico sobre as águas, o Tractatus Mirabilis Aquarum14, impõe-se-nos lembrar a possibilidade de Pedro Nunes ter sido testamentário do famoso alquimista inglês John Dee15, e não podemos esquecer que em 1557, foi preso, em Lisboa, o Padre António de Gouveia, natural dos Açores, que correra grande parte da Europa, de quem a Inquisição se ocupou, acusado, entre outros crimes, de que " sabya fazer outras cousas grandes como era a lapis filososuforu" (sic), a pedra filosofal, e se oferecera, no Palácio de D. Isabel de Albuquerque, para transmutar a prata em ouro16. Por isso, há quem a ele se refira chamando-lhe o "Padre do oiro"17.

Alguns anos depois, em 1562, D. Francisco Pereira, embaixador de Portugal em Madrid, crente na possibilidade da transmutação dos metais, escrevia a El-Rei D. Sebastião, ainda na menoridade, recomendando o cristão-novo Diogo Mendes, a quem a Inquisição guardava a mãe e as irmãs, afirmando ser ele senhor de "huma certa invenção que de muito pouco cabedal faz ouro e Prata de seu valor". E do facto, dizia-se ele próprio testemunha: "perante mym tirou huas pedrinhas pequenas que diz ser olio e deitado em huma pá de fiero muito quente a pá ficou prateada ...". De modo algum desejaria que o engenho de um português a todos servisse, menos a Portugal: "e lhe pedy que deste negocio non dese parte a pessoa nenhuma e que pois era portugues que o que tinha alcançado por experiência o executasse em sua Pátria" e em serviço do Rei de Portugal. Diogo Mendes aceitara a proposta do Embaixador, mas a recomendação deste não encontrou acolhimento na corte portuguesa18.

Na mesma época, Frei Vicente Nogueira (1586-1654) possuía uma biblioteca recheada de preciosos tratados alquímicos, com obras de Hermes Trismegisto, Raimundo Lullio, Basílio Valentino, Paracelso, H. Cornelius Agrippa, o Lexicon Alchemiae, o Artis Auriferae, etc.19, que a Inquisição apreendeu e mandou queimar.

Já no século XVII, Thomas Harper imprimia, em Londres, cinco tratados sobre a Pedra Filosofal que se destinavam a ser vendidos à porta da Igreja, sendo, para o facto, autorizado, na "Pequena Bretanha", John Collins. Dos cinco tratados, os dois primciros são apresentados como sendo da autoria de Alphonso, Rei de Portugal, que os escreveu por sua própria mão, em português, tendo sido encontrados no seu quarto privado; os autores dos outros três são referidos como sendo o monge John Sawtre, o alemão Florianus Raudorff e o alquimista William Gratacolle20. Com toda a sua autoridade nesta matéria, Mircea Eliade refere o significado especial de algumas das afirmações contidas nesses tratados atribuídos a Alphonso, Rei de Portugal21. Com Dalila Pereira da Costa, cabe-nos perguntar: "qual foi esse rei Afonso de Portugal?"22

Pela mesma altura, a prática química em Portugal, ao serviço da Medicina e da Farmácia, era grandemente influenciada por L. Fioravanti, um "apaixonado e apologista da alquimia", com João Bravo Chamisso, no seu Tratado De Medendia Corporis Malia a considerar a alquimia como "parte integrante da cirurgia", e Duarte M. Arraes, no seu Tratado dos Oleos de Enxofre, citando Paracelso e Arnaldo Vilanova e referindo-se explicitamente aos "mineraes dos Herméticos" que produzem "effeitos admiráveis em gravíssimas e extremas doenças''23.

Pelos finais desse século, no Mosteiro de Odivelas, D. Feliciana de Milam, segundo o testemunho de Diogo Manoel Ayres de Azevedo, redigia um longo discurso sobre a existência da Pedra Filosofal que só por si permitia "qualificar o elevado juízo" de sua autora24.

No dealbar do século XVIII, foi Bartolomeu de Gusmão suspeito de práticas alquímicas25,26. Alguns anos depois, Rafael Bluteau recitaria, na terceira sessão da Academia Portuguesa Ericeirense, uma lição académica sob o título "Da Possibilidade da Pedra Philosofal'', deixando-nos o resumo dela nas suas Lições Académicas sobre Perguntas em Matérias Physicas27.

Quando no resto da Europa, dominada pelo novo espírito científico que imperava já, um pouco por toda a parte, a alquimia se via forçada a retirar-se do palco público em que até então se exibia, em Portugal, escreve Anselmo Caetano, médico do Reino, a sua Ennaea ou Applicação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal6. Das necessárias autorizações obtidas para a publicação, a de D. António Caetano de Sousa considera que na alquimia ''só obra a especulação" e que a Pedra Filosofal, conjuntamente com a Quadratura do Círculo, o Movimento Perpétuo e a Alampada inextinguível, é uma das quatro coisas em que, de acordo com um Autor Francês, "os Philósophos e Matemáticos trabalham há muito sem proveito"; nem por isso se pode deixar de considerar esta ciência como "uma ciência portentosa, ainda não conseguida a utilidade que se persuade". Nesta base, considera o Tratado de Anselmo Caetano "muy curioso", como "hum excelente methodo", que deve merecer a aprovação do Santo Ofício" porque ainda que se não tire (dele) mais do que instruir a idéa com especulações sem proveito, he uma demonstração da literatura do Author, com que quer encaminhar aos curiosos a Philosophia experimental, para que aplicando-se a estudos grandes, e dificeis em proveito da Patria, lhe possão ser tão uteis, como o são as suas letras médicas"28.

Por sua vez, Rafael Bluteau rotula-a de Obra Maxima, Obra Summa, e ainda que pequena muito preciosa, porque auriferaria, e tão Aurea que sem minas dá Ouro, e com pós o multiplica" e a todos prova que " também em Portugal há engenhos capazes para penetrar nos Arcanos da mais occulta Philosophia"29.

Frei João Baptista Troiano nota tratar-se duma obra "sobre cuja matéria não sabemos escrevesse Author Portuguez, sendo tantos os Estranhos que della tratárão"30, o que Manoel Monteiro, da Congregação do Oratório, reforça afirmando que "este livro tão singular na clareza (...) até se singulariza em ser o primeiro desta matéria na língoa Portugueza"31.

De facto, Ennoea assume-se como "o primeiro Tratado português de alquimia explicitamente apresentado como tal"32. Nele se insiste, em particular, sobre o carácter espiritual da Alquimia, e se crê ser ela o "sebastianismo da filosofia", sem que, por isso, seja lícito considerá-la apenas "matéria especulativa". Toda a obra é escrita em termos de um diálogo entre Enodato e Enódio, a "coisa declarada" e a "coisa encontrada". A certa altura, pela boca do primeiro, a pedido do segundo, Anselmo Caetano refere-se, explicitamente, a algumas transmutações "succedidas há pouco tempo dentro do nosso Reyno", remetendo os interessados para a Fundição de Manoel da Rocha, "Relogeyro d'ElRey", "curiosissimo de varias artes, e muito applicado ao estudo e exercício da chymica" 33.

Que os atanores alquimistas ainda se não haviam apagado por completo, no nosso país, pelos meados do século XVIII, o indica também Francisco de Castro na sua Ronda de Lisboa34. Levar-nos-ia muito longe a análise pormenorizada de todas estas manifestações de interesse pela Alquimia, em Portugal, que acabámos de referir. Não é essa a nossa intenção, no presente trabalho. Aqui, é nosso desejo debruçarmo-nos apenas sobre a já referida questão formulada por Dalila Pereira da Costa no seu livro A Nau e o Graal, a propósito do Rei Alphonso indicado nos cinco Tratados sobre a Pedra Filosofal da edição de Thomas Harper, em 1652: qual foi esse rei Afonso de Portugal?

A escassez de dados históricos sobre o assunto não permite qualquer identificação peremptória. No domínio das possibilidades, é de admitir que se trate de algum autor alquimista que à boa-laia dos tratadistas do género, se tenha remetido ao anonimato atribuindo o seu escrito a um dos Afonsos que ocuparam o trono de Portugal, em cuja autoridade vislumbrava credibilidade bastante para que esse escrito fosse bem aceite por aqueles a quem se destinava. Nos vizinhos reinos de Castela e Leão, do Rei Afonso X, o Sábio, se crê que traduziu do árabe para castelhano o tratado alquímico Clavis Majoris Sapientiae da autoria de Artephius. Nem por isso há quaisquer razões para identificar Alphonso, Rei de Portugal, com Afonso X, o Sábio; nem os tratados alquímicos atribuídos a um e a outro se identificam minimamente35.

Perante a escassez de dados para que se possa dizer com alguma segurança quem seja esse Alphonso, Rei de Portugal, resta-nos especular, com muita arbitrariedade. Aqui apresentaremos uma série de notas, apontando para a possibilidade de se tratar de D. Afonso V, o Africano (1432-1481), décimo segundo Rei de Portugal, filho de D. Duarte, de quem Rui de Pina escreveu: " foi amador da justiça e da ciência e honrou muito os que a sabiam. Foi o Primeiro Rei destes Reinos que ajuntou bons livros, e fez livraria em seus paços"36. Desenvolveremos a nossa especulação, mostrando como a vida e obra de D. Afonso V, o Africano, se possa adequar com a dum possível autor de tratados alquímicos; e daremos conta de seus contactos, a nível internacional, com figuras históricas e instituições indiciadas de conotações com a Alquimia, qual é o caso dos Duques de Borgonha, Filipe, o Bom, e Carlos, o Temerário, e a Ordem do Tosão de Ouro de que foram os primeiros Grão-mestres.

Em Apêndice, apresentaremos, em tradução portuguesa, os dois Tratados sobre a Pedra Filosofal, que a referida edição de Thomas Harper atribui a "Alphonso, Rei de Portugal".