ALESSANDRO

ZIR

 

SOBRE UMA CERTA ESPECIFICIDADE DAS CIÊNCIAS HUMANAS

REFLEXOES SOBRE
IAN HACKING


(ARTIGO INCOMPLETO)

Partindo de uma reflexão refinada sobre as ciências

Evitando falsas dicotomias e simplificações, a reflexão de Ian Hacking sobre a ciência afirma ao mesmo tempo a objetividade dessas e a possibilidade de uma pluralidade de abordagens cognitivas da realidade. Assim como Wittgenstein, Hacking se desvencilha de armadilhas que a reflexão abstrata nos arma, mas, dando um passo além, como Foucault, traz contribuições mais concretas para problemas concretos que nos afligem atualmente (1). Dentre os seus escritos relevantes para a área da Psicologia, por exemplo, podemos destacar os seguintes: o artigo Making Up People, ([1983] 2002); os livros Rewriting the Soul (1995) e Mad Travelers (1998); todas as passagens referentes ao surgimento do pensamento estatístico e do conceito de normalidade do seu livro The Taming of Chance (1990); as análises referentes ao construcionismo social em The Social Construction of What? (1999), sobretudo no terceiro capítulo.

Em The Social Construction of What? (1999), Hacking, inicialmente, admite que a distinção entre, de um lado, condições, estados, objetos e, de outro, idéias é complicada e pode ser questionada de diferentes maneiras conforme o tema que estejamos abordando. Por exemplo, até que ponto o que seria um quark enquanto objeto não é determinado pelo conceito que temos de quark? Até que ponto o que seria a esquizofrenia enquanto condição subjetiva não é determinado pelo conceito que temos de esquizofrenia? Até que ponto os doentes mentais não seriam determinados pelas classificações? Não obstante essas complicações, Hacking insiste sobre a importância de distinções como essa, e chama a atenção para a necessidade efetiva de evitarmos que certas questões polêmicas, como se os quarks são coisas que sempre existiram e sempre vão existir e se a esquizofrenia é uma doença real, sejam esvaziadas no nível de uma reflexão abstrata sobre a linguagem. Já em Representing and Intervening (1983), Hacking ridicularizava aqueles que pretendem defender, por exemplo, que a mesa que há a nossa frente equivale, é igual (pode/deve ser reduzida) à palavra mesa e ao conceito a que essa palavra remete.

Hacking se vale de distinções como essas (entre de um lado, idéias, palavras; de outro, coisas, estados) enquanto distinções plausíveis e de senso comum. Ao valer-se dessas distinções, Hacking pode, como é o seu interesse: 1) escapar dos debates intermináveis que giram em torno do conceito de representação e 2) sem nunca cair seja num idealismo absoluto (azar da realidade) seja num realismo ingênuo (a realidade é aquilo que estritamente nos diz a ciência), dedicar-se a pesquisas mais manejáveis, que trazem resultados mais concretos, as quais buscam traçar historicamente como grupos de seres humanos (cuja atividade é relevante para nós em nosso presente), através de certas práticas que não são apenas discursivas, se apropriam, negociam coisas como mesas, quarks e as patologias.

Repensando uma certa especificidade das Ciências Humanas

Além da distinção entre idéias e objetos, Hacking se vale, em The Social Construction of What?, de outras distinções, como aquela entre coisas que têm consciência, são capazes de agir intencionalmente, de agir "sob descrições", e coisas que não têm consciência, não são capazes de agir intencionalmente ou sob descrições, como, respectivamente, crianças e quarks (2). Porque crianças, mulheres refugiadas e, quem sabe, alguns robôs no futuro (exemplos do próprio Hacking), entre outras coisas, têm consciência, são agentes intencionais, agem sob descrições, as classificações que fazemos delas podem se revelar interativas, porque essas coisas não ficarão indiferentes a essas classificações. Essa noção de classificação interativa enquanto referente exclusivamente a seres intencionais não é isenta de controvérsia. Hacking admite que alguns autores prefeririam dispor a distinção entre classificações interativas e não interativas em um contínuo, certamente porque certas coisas às quais não atribuiríamos consciência podem, não obstante, de alguma forma, também reagir à maneira como dispomos delas em nossas classificações (esse seria o caso, por exemplo, dos micróbios, segundo Latour 1983). Para Hacking poderiam existir muitos contínuos, ou ainda, a distinção entre classificações interativas e não interativas teria margens indistintas (1999, p. 107).

S egundo Hacking, a consciência, por exemplo, das crianças autistas ou das mulheres refugiadas sobre as classificações sob as quais elas caem, não precisa ser pessoal, ela pode ser partilhada e desenvolvida dentro de um grupo ligado por certas práticas e instituições. Outro ponto curioso é o seguinte: há classificações que, conforme lembra Hacking, devem ser consideradas ao mesmo tempo (sob diferentes aspectos) interativas e não interativas. Esse seria o caso, por exemplo, de certas psicopatologias como a esquizofrenia, na medida em que os cientistas que as determinam estão interessados em vinculá-las a coisas que, comparadas com os seres humanos aos quais elas se aplicam, não são conscientes (não são capazes de agir sobre descrições, ou ainda, são objetos indiferentes), como genes ou estados bioquímicos cerebrais. Embora tenham essa base, tais classificações, enquanto se referem, em última instância, a pessoas, têm um caráter interativo intrínseco que não poderia ser eliminado.

Deve-se atentar ainda para o fato de que, ao propor essa distinção entre classificações interativas e não interativas, Hacking não está defendendo aqui uma abordagem das ciências humanas em termos de uma Verstehen oposta ao positivismo das ciências naturais (ver The construction of What, p. 108). Se Hacking traça uma diferença entre ciências humanas e naturais, essa tem a ver com a capacidade que os objetos das ciências humanas têm de reagir (poder-se-ia dizer, até, cremos nós a posteriori) em função da sua consciência àquilo que deles é dito, e essa diferença não decorre da suposição de que as ciências humanas não produzam ou não devam produzir classificações que em si mesmas, digamos assim, do ponto de vista formal, sejam semelhantes às produzidas pelas ciências naturais. Não há nada de errado, do ponto de vista de Hacking, no fato das Ciências Humanas e Sociais utilizarem, por exemplo, métodos estatísticos para configuração de suas classificações a respeito de pessoas. Cabe lembrar aqui que um autor como Foucault, que ao lado de autores da tradição analítica como Austin e Wittgenstein seria uma das grandes influências de Hacking, (nos capítulos finais de As Palavras e as Coisas) também não defende e inclusive critica uma abordagem das ciências humanas em termos de uma Verstehen oposta ao positivismo das ciências naturais.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

HACKING, I.Historical Ontology. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

HACKING, I. Historical Ontology: from the creation of phenomena to the formation of character. Robert and Maurine Rothschild Lecture, Abril 1999a. (Manuscrito fornecido pelo autor)

HACKING, I. The social Construction of What? Cambridge: Harvard University Press, 1999b.

HACKING, I.Mad Travelers: Reflections on the reality of transient mental illnesses. Charlottesville: University Press of Virginia, 1998.

HACKING, I.Rewriting the Soul: Multiple Personality and the Sciences of Memory. Princeton: Princeton U. P., 1995.

HACKING, I. The Taming of Chance. Cambridge: Cambridge U. P., 1990.

HACKING, I.Representing and Intervening: Introductory Topics in the Philosophy of Natural Science. Cambridge: Cambridge U. P., 1983

LATOUR, B. “Give me a Laboratory and I will Raise the World”, in KNORR-CETINA, MULKAY (eds.), Science Observed, London, Sage, 1983.

REGNER, A. K. P. Conversando com Ian Hacking. Episteme, n. 10, p. 9-16, jan./jun. 2000.

 

(1) Em entrevista à professora Anna Carolina K. P. Regner, embora Hacking afirme que "não há nada de que eu possa me lembrar sobre o que adquiri de Wittgenstein", porque a influência que Hacking teria sofrido desse autor seria mais em função de que Wittgenstein "estaria no ar" nos ambientes em que Hacking se formou, ele indica as Investigações Filosóficas como quem sabe a contribuição filosófica mais importante do século XX. Na mesma afirma taxativamente a influencia que sofreu de Michel Foucault.

(2) É em Rewriting the Soul (1995, p. 234-235), que Hacking explica melhor o que ele entende por agir sob descrições, isto é executar ações considerando descrições a respeito de como as coisas são. Ele se apoia então na argumentação de outros autores como Ascombe e Davidson.