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Depois da intervenção cirúrgica, os sintomas maníacos de Olek gradualmente cederam a uma intensa abulia. Tornou-se dócil, volúvel e depois apático. Em 1993, estava mudo e acinético, apesar do boato de que tenha falado uma única vez: — Acredito ter escrito um bom livro — depois do que regrediu ao silêncio que persistiu até sua morte, por ataque cardíaco ou pneumonia, em 2000. Pelo menos essa seria a idéia, visto que um coto teria se regenerado enquanto prisioneira. Irá ressuscitar daqui por diante, de forma a guardar uma promessa de felicidade em sentido ingênuo (Sthendal vs. Proust). Assistia a Le affinità elletive, carregado de adornos. Seria nocivo o apego aos italianos? Os italianos como diferença adicional, ao lado dos alemães, e dos negros, das luzes. Sua não é e é a causa do livro, gratidão por deslocamentos, intermitências neutras entre baratas. O tornar-se visionário, a lucidez máxima, aceitação do excesso original. Poder fazer mágica quando não se quer mais fazê-la, porque cada coisa está e não está em seu lugar, cômico e trágico, a fecundidade da desgraça — subtração, recusa. Quem é que descia certeira o cutelo sobre as verdurinhas, ao longo dos dias, no tempo, mas também nos sonhos? Entidade complexa indivisível, por isso invisível, como o turbilhão de coxas e panturrilhas coladas a banquinhos e pedais, amazonas ou melhor centauros. Na negra se entrecruzava, em Tiago. Coisas que só se podem atentar, e muito inutilmente, em prosa ou verso, com tinta impossível de ser suportada pelo papel, contatando os outros mundos por alagamento, livro como toco petrificado, lápide estendendo-se sobre uma tumba, a remetamorfosear-se em árvore e depois pessoa. Felicidade não apenas subjetiva, alargamento intenso, a atualizar o passado em eternidade, que se recupera ao renunciar, deixar dormir. Mateus acorrentado a Mariana, Felipe errante. Além dos três ou quatro poemas, os seguintes recados parecem ter sido deixados a Mariana ou Mateus: “Não quero que penses que ainda sinto algo por ti. Trata-se, como sempre te disse, dos meus filhos!” “Oh, meu Deus! Acho que foste recém contatado por um golfinho. Ele deve ter dito que estava te contatando em meu nome, porque eu estaria supostamente deprimido, visto que não me respondias. Não acredites no que ele diz, não passam de mentiras. Não estou deprimido. Eu te esqueci quase que por completo. Estou casado, e meus filhos estão para ganhar um novo irmãozinho (ou irmã, ainda não sei ao certo)! Esse golfinho é louco. Ele ousa dizer que sou calvo, quando é a cabeça dele que é mais lisa que casca de ovo. Não confies nele, pois acredito que me use como desculpa apenas para se aproximar de ti. Acredito que é ele que está apaixonado por ti, quem é que pode saber. Isso não significa que não me cause preocupação o fato de não me responderes. Espero que esteja tudo bem contigo. Tens outro filho? Já faz tanto tempo. Espero que estejas realmente bem, e tudo tranquilo. Deixe-me saber se algo está errado. Podes sempre fugir para o Brasil ou Itália, caso queiras.” “Tive uma idéia melhor. Não peças a ele para te esquecer. Deixa que vá em silêncio. Ele não esquecerá, e deve fazer um esforço por ficar em silêncio também, mas te mantendo na memória. E tudo o que ele fizer, fará por ti. E a memória quieta de ti fará com que ele realize de fato muitas coisas excelentes, tanto quanto o sentimento dele é de um tipo superior e verdadeiro, incondicional. E então, mais cedo ou mais tarde, vocês se encontram de novo.” “Olá! Os livros estão no armário R87. É entre os baixos, largos, que parecem gavetas. São todos vermelhos, e ficam mais ao fundo do vestiário. Como tinha te dito, são duas antologias de poesia, Rimbaud e Bucowsky. Coloquei um cadeado de combinação. Deves abrir da seguinte forma: gira duas voltas completas para a direita, e para no numero 23; em seguida, gira uma volta inteira para a esquerda, e depois de passar pelo 23, segue até o 52; gira então para a direita e para no número 07.” A questão era que não o conhecia desde os 5 anos. E de fato, embora a amasse, Mateus não era fiel a Mariana, fazendo caminhadas duas vezes crepusculares: despedidas em desaparecimentos noturnos, a serem iluminados pela passagem de um aparelho a 27000 pés. Seria idiota ver nisso alguma intenção, mesmo implícita, de reproche. De muitas coisas poderia reclamar com razão, e sobre elas não se calava. Mas só um imbecil poderia culpá-lo da inutilidade de uma aquisição da qual ele nem sabia! Quanto ao contabilista de M. Vilanova, seria inútil discutir, e não voltaria à questão, decidido que estava em dizer apenas coisas agradáveis. Mas não queria que o silêncio desse a entender um arrependimento. Tinha mesmo dito o que pensava, e pensa, porque na vida dos indivíduos, assim como na física, não há efeito sem causa. O raro, aliás, era o efeito se seguir numa rapidez tão vertiginosa. Porque se interessava pelo livro e esportes, contava da notícia que tinha aparecido numa coluna esportiva do jornal local. Pedia que apagasse as mensagens. Mateus e Mariana tinham se tornado parte da vida de Olek, desdobrando antigos duplos. Chegava a pensar que se nunca tivessem se encontrado, se nunca tivesse lhes dado presente algum... Acabaram por brigar, tendo Olek dito a Mateus: — Se o azar quiser que sofras algum acidente, deixa bem claro à tua mulher que ela não encontrará em mim um amigo. Mas diante do ocorrido infeliz, havia se esquecido de tudo, e Mariana tão bem desconfiou que foi Olek quem ela primeiro procurou, no momento de desespero. A impossibilidade de amizade não implica a inimizade, em todo o caso. Não eram casados, mas Mateus a queria mais do que qualquer coisa no mundo. No início, não se podia entender, porque era feia, mas ele vivia apenas por ela e lhe deixaria tudo. O corpo foi encontrado por pescadores. Mais que amar, o adorava. E não é claro por que se escreve isso no passado. Mas não tinha nenhuma obrigação em relação a Mateus, que tinha se comportado com ele de forma leviana. De qualquer maneira, quando o sofrimento retornou, sentiu uma imensa alegria. Mas era por vezes tão intenso que tinha nostalgia do momento de inconstância. Que nada disso que se escreve dê a entender que o tenha esquecido. Não hesitaria em correr para cortar um braço caso... Não hesitaria. |
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ALESSANDRO ZIR – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (Brasil). Bacharel em Filosofia (UFRGS/Brasil), Bacharel em Comunicação Social (PUCRS/Brasil) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/Brasil).
Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Actualmente no Canadá, a preparar o doutoramento. E-mail: azir@zaz.com.br . URL: http://aletche.blogspot.com/ |