ALESSANDRO

ZIR

 

Estilhas de um vampiro

bem refletido

Capítulo 13: Incidentes de quando Deus finalmente baixou

Em instantes paralelos, deslocados por milênios de quilômetros, a avó, deixada sozinha no quarto, a levantar-se sem ajuda da cama, tropeçando na camisola, esforçava-se por abrir a janela, enquanto o velho lobo, com os bolsos recheados de pedra, sob o céu nublado, atravessava a planície inundada na direção do chiado metálico do rio e, na rota de Shewa, o caçador.

Impregnando e dissolvendo, voltaram a si num papel de início de abril, em que Olek, supostamente Olek, alugava, na serra gaúcha, uma antiga casa mobiliada que se podia tomar por ser a de tábuas de araucária dos avos, ao que se seguiram certos incidentes — esses sim, bastante conhecidos, se paradoxais, que reunimos a seguir segundo o relato das testemunhas. Eis o depoimento, fornecido pelo locador da propriedade, que consta dos arquivos da Delegacia de Polícia do 4o Distrito:

Ao ser indagado da possibilidade de instalação na cozinha da casa de um dispositivo permitindo a distribuição de coca-cola encanada, avanço tecnológico propiciado à comunidade pela recente instalação de uma fábrica do referido refrigerante, o locatário foi como que tomado por um acesso furioso, passando a falar de uma “entidade celeste africana”, uma negra que lhe tinha aparecido e que ele continuava a ver no lugar em que, a qualquer pessoa sadia, não aparecia senão um edredom azul amontoado no encosto de uma cadeira.  Seus vizinhos, Mateus Fino e a mulher, Mariana, logo em seguida tomaram conhecimento de alguns de seus hábitos peculiares, tais como falar em voz alta consigo mesmo, quando estava sozinho na casa. No mês de maio, Fino pôde notar que o comportamento do locatário se tornava mais bizarro: durante as madrugadas, passou a rasgar uma quantidade considerável de dinheiro que socava diligentemente na lixeira do pátio dos fundos, ao mesmo tempo em que dançava pelado, insistindo que lhe tinham surrupiado os quadros das paredes, de forma que agora a casa ficara parecendo uma espécie de templo. A polícia foi em seguida notificada, por causa de uma cabeça de cavalo, cujo aparecimento inusitado no tanque da propriedade dos Fino permanece, até o presente, um mistério. Como nada pôde ser esclarecido sobre o fato, e nenhum outro incidente de tipo semelhante sobreveio, decidiu-se que o locatário poderia permanecer no local, sob a custódia dos próprios vizinhos.

Mais ou menos da mesma época, é a seguinte carta enviada por Olek à irmã:

Acorrentei Mateus. Mês passado, tinha sido crucificado de forma extremamente entediante pelos entendidos e feministas italianos. Agora, todos os artilheiros estão liberados, e também cangaceiros. Deus baixou na terra. Não vês como os céus se alegram? Tomei posse do meu reino, joguei o reitor na prisão, e vivo na companhia de três mulheres (uma negra e duas loiras). O mundo será virado do avesso ao longo dos próximos anos, mas conhecerei suas regras.

Parecer do último psiquiatra:

O desencadeamento de demência num homem de 44 anos de idade é mais comum do que se imagina e desprovido de dilemas teóricos para a psiquiatria atual. Inúmeros são os casos, muitos deles envolvendo paralisia progressiva. Uma das dificuldades peculiares àquele com que nos defrontamos, a qual nos surpreende, é a capacidade do doente de mostrar, impávido, a língua peluda. Nenhum tremor! E no entanto, pode-se atestar a assimetria das pupilas, sendo a da direita maior e mais lerda, em termos de reação luminosa. A mãe observa que tais fatos remontam à infância, associados ao quadro geral de miopia divergente, dores de cabeça (do lado direito) e vômitos. Conclui-se pela existência de um tumor no terceiro nervo cranial. Assim explica-se também o (suposto) excelente domínio de língua do paciente, e o pavor constante lhe inspirado não apenas pelo vulto, mas pela voz atrás da cadeira, terrível, inarticulada e de tom inumano. (Se ao menos falasse como falam os homens!) Também a profusão fantástica de flores turbilhonantes, de crescimento exótico e opulento vistas ao fechar dos olhos. Quando os cinco sentidos não lhe estão ausentes, a expressão facial permanece vívida e evocativa. Tem reflexos normais, exibindo uma excelente caligrafia, e um discurso fluente entremeado de bizarrices apenas ocasionais. Acredita-se na possibilidade de cura, que parece plausível a qualquer um que testemunhe seu olhar cândido e polidez. Por vezes senta-se ao piano, improvisando Vaginer e Beethoven com graça e virtuosismo. Espera-se uma melhora completa decorrente da extração do meningioma na vizinhança do nervo ótico, fissura orbital superior, sinus cavernoso e porção medial da asa esfenóide esquerda. Entretanto, deve-se admitir que a arte da localização neurológica encontra-se em sua infância, e a importância de muito dos sinais aludidos começa a ser apreciada apenas agora.

Passagem do diário da atriz e bailarina Isolde Gardenne:

Silencioso em seu robe branco, sorvendo pacientemente os goles do chá javanês de cannabis indica, é impossível não tomá-lo por uma espécie de profundo guru filosófico, evoluindo progressivamente a estados de consciência mais altos, ascendendo finalmente ao místico. Como poderíamos saber que o que nos parece uma visão transcendental da verdade não é senão uma caricatura do insano, uma farsa? (Por que sou tão sábio, tão inteligente, um destino?)

Trecho de entrevista de aluno à emissora local, em matéria do jornalista Felipe Montez:

Andava de um lado para o outro com os alunos, e uma vez que outra dava-lhes um top spin na cabeça, perguntando: estão contentes? Sou o Dio que criou esta farsa! Quanto ao boato de excessiva masturbação, acredito ser falso por causa das três mulheres com que vivia. Mas era sabido de todos que abusava de pílulas de hidrato clorídrico. Olhando para o teto, entrava na sala de aula com passos majestosos, agradecendo pela recepção magnânima. Quanto aos boatos de que havia se infectado num puteiro em companhia de um sapo, creio não passar de sonho.