|
|
Deitado de bruços sobre o colchão, os braços esticados por baixo do travesseiro, em que se afundava a cabeça, Olek profundamente sentia, mas mal podia discernir, entender, a razão do aparecimento, da disponibilidade repentina daquele outro corpo, fora do comum. E era exatamente essa languidez inebriante, bruta, que se convertia agora numa força de atração, numa substância metálica imantada, escorrendo do avesso negro dos olhos expressivos, por um ralo, que Tiago sugava. Olek não se mexia, exsudando como frio e duro conta-gotas as sensações que passivamente planavam, indecisas, a tentar remontar à fascinação inexprimível e paralisante uma vez irradiada pela prima mais velha, de uma nobreza de eras esquecida, a que ele sucumbira ridículo, as mãos latejando, insustentáveis nos braços estendidos amassados. Tiago, um desdobramento fácil, da prima, dos primos, da tribo dos pequenos centauros, em cuja plenitude desenvolta do corpo coagulava-se a quintessência deles. Pouco antes, inadivinhável, namorado de uma ex-colega, num barzinho que freqüentavam, grupos diferentes, na Cidade Baixa. Do vínculo que uma vez tinha existido, quase nada resistira, e sua forma de comunicação agora se limitava a acenos mal esboçados e meios sorrisos misteriosos. Em princípio, aquilo tudo se constituía como uma surpresa extremamente desagradável. Olek se sentia compelido a reparar no casal, que por sua vez, o rondava, aparecendo aqui e ali, como na seguinte cena, na fila do banheiro: — Olá, Olek! Sempre o vejo por aqui, estava para falar contigo, mas ficamos sempre tão pouco que nunca parece dar tempo. — Tiago me disse que também te conhecia, que freqüentavam o mesmo balneário — completou a ex-colega. — Sim, exatamente! E você, há quanto tempo, hein? É difícil encontrar as pessoas da turma, quase nunca vejo ninguém. O que tem feito? — e depois de uma pausa — Como se conheceram? — Quando me mudei para cá, na época da faculdade, a Tici era minha vizinha. —Ah! Mas ali perto do Parcão? — e virando para ela — Era ali que você morava, que eu me lembre. —Sim, até hoje meus pais estão ali. Mas o Tiago mudou, e agora estamos morando juntos, num apartamento na zona sul. E você continua igual, não mudou nada! Tici olhava para Olek e depois para Tiago, que se olhavam ambos. Tinham o mesmo tipo de cabelo, negro, denso, a mesma cor dos olhos, não obstante todas as outras diferenças. Tiago tinha uma das mãos apoiadas sobre a cintura de Tici, magra, num vestidinho demi-trench, de seda e renda em tons avermelhados, que ele em seguida tirou, cruzando os braços. Tici sorriu. Olek lhes deixou o telefone, mas sem nunca de fato se ligarem, continuavam se encontrando no mesmo bar. Uma noite, eles lhe deram uma carona. Na manha do dia seguinte, Tiago, sozinho, se fazia anunciar pelo porteiro. No pouco tempo que durou, algumas poucas semanas, Olek carregou-se de um tipo novo de vitalidade. Mas em seguida ao desaparecimento de Tiago, a energia acumulada espumou-se num quase bem-estar injustificável de não o querer mesmo mais, embora querendo saber por que o tinha querido. Um dia escreveria: O que está por trás do mal compreendido instinto de morte é a frustração ocasionada por uma desgraça inesperada, o mais debilitante para um ser consciente. Mas a desgraça em si, por pior que seja, não é a causa desse mal-estar, e sim o fato da consciência ter sido completamente surpresa e ultrajada. A partir daí o espírito se afigura o antídoto, o instinto de morte, instinto de ultravida, a imaginar, ante qualquer situação, diante de toda situação, o pior por ocorrer, e não só o pior, mas os diversos piores, em escalas, dos menos ruins aos apocalípticos, ênfase nos últimos. Enorme astúcia da consciência, alargamento a conduzir a inteligência do indivíduo ao limiar do visionário. Doentia é sua má compreensão, a consolar — o argumento patentemente incorreto: tais fantasias são irreais. Pois seu cerne não é a efetiva realização, mas o inegável ultraje debilitante da consciência pelo possível imprevisto, mesmo ínfimo. Liberá-lo como lança de Aquiles. Consciência irreprochável de vulnerabilidade, em necessidade de aprender a absorver opacidades, numa osmose extrapolando limitações reativas, a posteriori, autoconscientes. Rumo ao além do defensivo. Integração estética, estática, em termos Joyceanos. Desatrofiamento de si e do mundo. |
|
|
|
ALESSANDRO ZIR – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (Brasil). Bacharel em Filosofia (UFRGS/Brasil), Bacharel em Comunicação Social (PUCRS/Brasil) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/Brasil).
Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Actualmente no Canadá, a preparar o doutoramento. E-mail: azir@zaz.com.br . URL: http://aletche.blogspot.com/ |