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Sem nenhuma desconfiança ou consciência do mistério das escolhas, toda expectativa assomada no desvelar inesperado e maravilhoso, num rosto plácido — fria porcelana, precipitado da ferocidade bestial de antigos berserkers —, do azul celeste dos olhos sob uma cabeleira solar, expectativa de longo prometida mas jamais acreditada, expandida em langor delicioso e inativo, abismou, com o retraimento cutelar mas bem-humorado do rosto em desdém, no peso morto de uma bigorna despencando no vazio infinito da alma, e arrastando consigo, uma depois da outra, imediatamente dobradas, como asas metálicas se fechando, as paredes imperceptíveis da sua estrutura folheada, acabando em tumba. Tal reação, em boa medida patológica, poderia ter sido evitada se Olek tivesse suspeitado que a intensidade mesma, cristalina, de tal desejo, ao refletir genuína, para o outro, uma fascinação visceral que do outro mesmo emergia mas o transbordava, impossível de abarcar, se traduzindo, vertiginosa, em ameaça e afronta, exigiria uma força correspondente, extrema, capaz de sustentar minimamente o objeto na dissolução demandada, sem a qual o sujeito do desejo seria ele próprio, com razão, desnudado como ridículo. Na medida em que tal dinâmica iniludível passara despercebida, deixara de ser assumida como um duelo, como imperativo vital de auto-superarão, a frustração decorrente se imprimiu na alma como a mais insuportável, oxidante, vergonha. E conforme o passar e a repetição dos dias, semanas, meses, anos, decênios e séculos, Olek foi reperdendo a capacidade de separar-se desse profundo abatimento, de percebê-lo mesmo como um abatimento, que nem por isso era menor, e que se tornava ainda mais perigoso por que reativamente mecanizado, como sucessão de eclipses expoentes de si. Em sua defesa, pode-se dizer que quanto maior, mais elevada e mais espiritual a intensidade inicial do desejo, maior é a força correspondente demandada, e maior o afundamento, caso não se consiga se erguer à altura dela. A singularidade inexplicável de não ter, além de sumido, efetivamente terminado consistia exclusivamente na trivialidade do fato da chave misteriosa, mas exigente de mais lucidez e força, que em certos casos cerra definitivamente tais portas, que uma subseqüente patologia desabriga, funestas, como lápides, ser a mesma que pode tais portas miraculosamente manter abertas, em seguida do que, outra patologia, nesse caso romântica, corre o risco de as erigir em suntuosos castelos de cartas. Foi assim que figuras inicialmente conhecidas no círculo restrito de uma esfera exclusivamente familiar, ressurgiam multiplicadas à noite, em rebuliço, com companheiros montados sobre bicicletas, num turbilhão mal individualizado de coxas e panturrilhas coladas a banquinhos e pedais com a potência retesada de pequenas amazonas, ou melhor, centauros, pingando de chuva, sob o toldo da porta de entrada do restaurante de hotel em que costumavam passar as férias de verão, intermináveis. Os olhares oblíquos e risonhos dirigidos do círculo da pequena tribo inumana fascinavam Olek como um mundo tão separado dele que ele mal podia entrever o quanto era por eles percebido. E nem por isso, numa bela manhã seguinte, o menino moreno de sunga alaranjada deixou de resolver a contradição insolúvel transmitindo a Olek o convite de banho de mar com o grupo, no meio do qual lhe abanava um dos primos. E muito depois, sem que Olek escutasse bater, abria-se a porta de um quarto, Tiago Albertino, anunciado, entrava sorridente, contendo silencioso na plenitude do corpo, o elixir dos dias passados num paraíso que jamais retornava. Tiago Albertino, a partir daquele momento, tão fácil, mais do que prazer, um antídoto: um desvario de imagens — o qual, se definitivamente apropriado, antes de desandar em espuma, lhe garantiria até mesmo a cura. Crianças montadas sobre bicicletas, em gola pólo, debaixo de um toldo de hotel, depois projetadas sobre o verde do mar, não menos faiscantes que o menino-lobo. O próprio menino-lobo, decalcado da tela, vindo, a poder provar que não dispunha, no mundo real, da disponibilidade amorosa erroneamente suposta de dentro das câmaras obscuras. Um gomo de jade. E, num terceiro momento, o menino mais delicioso do que nunca, como mulher difícil a que finalmente se dobra, nos desdobra, e possui não apenas com o corpo, mas com a alma, imagem centuplicável em desejos espirituais de torpor inextinguível. A necessidade suprema, talvez questionável, de antecipar ou garantir, capturar, na precariedade do presente, tais momentos eternos da mais intensa fertilidade, que é também o equivalente do estar à altura da força correspondente, extrema, exigida por um desejo intenso, explica se não justifica o risco monstruoso implícito no primeiro feitiço (narrado no primeiro capítulo), a desandar em maldição, como a astúcia do canarinho que ao estremecer na mão do menino, lhe hipnotiza outro reflexo, e é num vôo liberado, mas para morrer, indefeso, de fome, ou nas garras de um gato, para além do arco melancólico descrito pelos olhos sabidos do avô, que ajeitava a gaiola. Se repentinamente viver é muito perigoso, escrever uma biografia é temeridade igual ou pior que trucidar borboletas. Felizmente, em quaisquer dos casos, a verdade do que se quer capturar escapa ao perigo, como silêncio retumbante de além-tumba. Não fosse por esse truísmo, dever-se-ia omitir o seguinte fragmento de uma teoria metafísica do próprio Olek, até o momento inédita: A vida, tal como dada na percepção ordinária, é tão lacunar, tão imprevisível, incerta, tão lenta, que os saudáveis bovinos só muito inconscientemente ruminam, e por isso nem podem dizer, como cada coisa não acabe em desgraça, mas desgraças estão longe de ser a regra, e são, na maioria das vezes, evitadas (ao contrário do que bradam as vacas atoladas doentes). Há espaço até para a ocorrência das coisas mais felizes, que, aliás, como as ditas desgraças, são raras e inesperadas, vertiginosamente férteis. Isso é assim porque tudo, incluindo cadeiras e filamentos de algas, reza o tempo todo, embora não se perceba. E as coisas também pegam atalhos, desaparecem em vãos, paralelos, quer dizer, passam a existir conforme um outro regime, por milênios de eras preparado em surdina, e no qual elas se destacam do resto (sem que se perceba), pelo milagre mesmo da concepção, contra a probabilidade sem medida do nada. O ser é imponente na sua precariedade. O sólido, o aristotélico da realidade, não é senão uma forma de coagulação, nem por isso menos coerciva. O universo é um imenso e complexo coágulo coletivamente esconjurado, a ciência, uma forma de feitiçaria inconsciente, que nada pode saber independente de esconjurar, criar, pela instituição e observância de limites. Compreendia já isso, como os demais meninos, eles de forma espontânea e inconsciente, ele com a potencialidade doída de alguma forma talvez patológica de lucidez, no traço de formol do cheiro do museu do colégio, em que, indiferentes ao alívio de sombra do ar-condicionado, as aves de olhos de vidro, harpias, gaviões, falcões e corujas os asfixiavam detrás de vitrines e bicos trincantes. E uma penugem estática no ar eletrificado. Os incontáveis aquários, na exuberância ondulante e prolífica, borbulhada, de algas, plantas, e guppies de barbatanas e caldas multicolores, devorando os próprios alevinos, entreviam-se apenas distantes, no fundo de um labirinto difuso por janelas empoeiradas, cujo corredor, cuja porta, raramente se abria. Lá estavam também as caixas sobrepostas vivas com aranhas e cobras, nunca vistas, jamais tocadas. Pistas mais familiares lhe eram apresentadas no pátio da casa de tábuas de araucária. Assim, através de todo um regime complexo de verduras escuras, e rações enriquecidas com carotenos, luteínas, cantaxantina e outras xantofilas menos conhecidas, além de progesteronas, ferro e lisinas, mais um controle rigoroso da exposição à luz solar, bem como um arranjo específico das gaiolas, a fim de que certos machos rivalizassem por certos períodos, somente em decorrência do que se fazia a seleção dos casais para reprodução, o avô conseguira alcançar nos seus canários uma configuração singular das eumelaninas e lipocromos ao longo das estrias e envolturas, na mesaderme das penas, que produzia a sensação de um azul de beleza onírica, não genuína, e nisso semelhante à cor do céu. A manipulação de certos processos de mimetização, desencadeados em diversos níveis, animados e inanimados, do metabolismo celular ao comportamento emulativo dos machos, em vista da decomposição da radiação luminosa na atmosfera, tal como refletida nos olhos e coletivamente decodificada, garantia esse tipo de materialização fantasmagórica, ao mesmo tempo mágica e natural, efetiva. Olek era posto a par de tudo isso na eloqüência fria e úmida, concentrada, do espaço restrito da vereda dos fundos, sob o muro alto, absorvido na expectativa silenciosa dos 14 dias ao final dos quais eclodiam os pequenos ovinhos. |
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ALESSANDRO ZIR – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (Brasil). Bacharel em Filosofia (UFRGS/Brasil), Bacharel em Comunicação Social (PUCRS/Brasil) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/Brasil).
Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Actualmente no Canadá, a preparar o doutoramento. E-mail: azir@zaz.com.br . URL: http://aletche.blogspot.com/ |