ALESSANDRO

ZIR

 

Estilhas de um vampiro

bem refletido

 

 

Capitulo 6: A princesa e o cutelo


Disperso o acordar em espuma, a cortina de voil levantou com a brisa fresca da janela entreaberta, e ali parou atracada no nada, volteando insistente sobre si mesma, como sirene do sol, a inflar a cidade, temerariamente soerguido, bolha de chumbo, no meio da manhã, amarela, a estalar com relhos de fio de seda, incontáveis e invisíveis, a cama, a cômoda ao lado da porta por abrir, os sofás do parlour e as vidraças da sala de jantar, e as porcelanas do armário de angico-preto, que riam fanáticas obrigadas, junto com os cruéis bibelôs escondidos, embriagados de luz, como os dentes da linguicinha, prontos a grudar, retorcer e estraçalhar a primeira mosca que lhes tocasse no lombo, no rabo, só em aparência abandonado na passagem da cozinha, como isca. E a negra encardida cujo sorriso malicioso se verteu pelos olhos oblíquos que de esguelha desnudaram, dentro do pijama amassado, a figura precária do recruta involuntário entre as verdurinhas. Ela calada, com a autoridade de rainha de mil anos, descia certeira o cutelo a por ordem num caos de cebolas, tomates, e pimentões, certa de que ele, para própria desgraça, não parecia ter sido ensinado a desconfiar.

E enquanto lhe serviam um café com leite no qual planavam ameaçadoras pequenas plaquinhas coaguladas de nata, transparentes nas bordas, de entortar a língua e despejar as tripas, as paredes tortuosas e à toa do ouvido foram acolhendo o bater das pernas, o tilintar das chaves, o farfalhar dos pacotes, as palavras de ordem entre duas tias, e primos, invadindo a casa, com olhos de foice a mergulhar das alturas como águias, e pequenos pescoços a espichar degolados, e beliscões, e puxões de cabelo, empurrões, e cadarços desamarrados, e sandálias a agarrar-se em fivelas para não embarrar o carpete. Em meio ao redemoinho dos bons-dias, e dos onde foram, e das noites de ontem, e dos acertos da próxima semana, dos não-sei-que-me-disse, dos nossa-senhora, dos páras, dos não-põe-a-mão-aí, dos sai-pra-lá, dos mais-eu-quero, dos deixa, dos risinhos inalados, e suspiros enfuídos, e rosnados e latidos e — pepita! seus olhos por fim abriam e se fixavam surdos, entre as secas remelas, na cabeleira dourada, espessa, lisa e altiva da prima, que com o azul celeste dos olhos inundava a cozinha de uma presença ao mesmo tempo modesta e inconfundivelmente superior, recatada, cuja origem maravilhosa, ecoava dos mais antigos castelos até cristalizar na dimensão misteriosa de uma genuína casinha de bonecas, em cujos degraus de contos de fada se poderia por o pé, bastando para isso lhe dar a mão. Aquela figura nunca vista de anjo concentrava iminente todo o prestígio capaz de caber no mundo, como corte infinita de reis, e rainhas, e príncipes e princesas esquecidos, de marquesas, e duques, e duendes e bruxas, sapos, ratazanas falantes, flores e cogumelos. Não que formulasse explicitamente a si mesmo que sua essência fosse superior a tudo, mas dali para sempre só teria consideração e cuidado pelo que dissesse respeito a ela. Quando reuniu-se com as demais crianças, ao redor da vitrola, nada havia de realmente interessante, de apaixonante, nos jogos, senão o que solicitasse, o que fizesse, o que ocorresse à aparição dourada, discernível em expressões fugidias, no espaço diminuto da sua face e sob seu olhar privilegiado. Sobre essa imagem feminina que era para ele a materialização mesma do amor, de todas as doçuras possíveis da vida, lhe palpitava incansável, como alma aprisionada no corpo, prestes a saltar pela goela, uma agonia de morte que ele pressentia como a não lhe conhecer jamais, perpetuamente a perguntar o que era ela, detrás dos olhares, da carne.

E ela — vendo que ele verdadeiramente se atrapalhava com as cartas, a fim de formar impossíveis triplas, num jogo cuja noção das regras lhe estertorava em paradoxos da teoria dos conjuntos, na medida exata em que ele se esforçava, agarrado como urso a cada grão escorrido da inexorável ampulheta, por não perder — virou-se para o outro primo, para o menino do lado, e num élan momentâneo de volúpia sádica, sinalizou, em franco deboche risonho, para os traços convulsionados de Olek: “Olha! Ele sofre!!”

O que Olek não podia compreender era como ela podia não o amar, simplesmente. Só séculos mais tarde descobriria ser essa mesma grande parte da beleza prometida no amor: o mistério das escolhas. Mas para isso, teria de apreender, ao longo de milênios, a acordar alavancado pela interioridade cebruna e nocticolor das tabuas, antes de ser disperso em espuma. Assim como, conhecedor, o bojo redondo do despertador tiquetaqueava verde-musgo sobre o canto do armário suspenso em cima da pia, a anteceder em contraponto sincopado, agora como os ossos da própria galinha, as cuteladas certeiras da negra.