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O que fere é o que cura, e debaixo dos pés descalços e da superfície galvanizada de cera preenchendo uniforme veios, nós e fendas, as tabuas iam rangendo surdas, tépidas se ainda túrgidas — circunspectas, a cada passo, do calcanhar à ponta dos dedos, por todos os ossos, tarsais, metatarsais, e falanges da pequena aparição de pijamas, alavancada da madrugada, que elas inclinavam na direção da cozinha, das outras figuras mais velhas, engelhadas, espicaçando atentas com pequenos atiçadores e tenazes de ferro, cobertos de cinza e seguros entre pegadores estofados, tocos de lenha e as brasas flamejantes atrás das portinholas brancas esmaltadas, guinchantes, do fogão à lenha, em cuja sólida chapa já ferviam os sumos do dia, escapando em baforadas pela tampa entreaberta de uma panela de cobre junto com a bruma gelada da manha sob a fresta felpuda da porta, e a luz pálida tamponada na vidraça com o sol ainda por nascer. Lateralmente, e perfeitamente equilibrado em três patas espetadas sobre o canto do armário suspenso acima da pia, o bojo redondo do despertador tiquetaqueava verde-musgo os pontos por fazer do blusão creme de tricô largado displicente em cima do colo, em cima do avental, com as imensas agulhas cruzadas, eriçadas como antenas para os cantos do teto, de onde reverberavam invisíveis os vaticínios traduzidos à orelha do radio de pilhas, à boca da avó, e do avô. Das bolsas vermelhas das pálpebras caídas do Spring Spaniel esparramando-se precário do lado de lá, do lado de fora, com nódulos de patas a escorregar e repuxar redobrados, debaixo da cobertura espessa dos pêlos, na larga superfície encardida de concreto, bem nivelada, dos dois degraus que davam para o pátio; e das cordas distendidas do balanço colorido, mumificado, como o papagaio retorcido nas densas penas do poleiro, na gaiola, sobre as plantas, cactos e flores, ele soube, antes de pular no colo da avó, figura magra de ossos compridos: um mesmo acordar varia enormemente em intensidade conforme as horas, e depois de um tempo ele inevitavelmente se dispersa, as coisas irremediavelmente se espumam. Mas seria imprescindível, vez que outra, sempre, quando a casa não mais existisse, acordar alavancado pela interioridade cebruna e nocticolor das tabuas de araucária da casa. Qualquer um que soubesse fazer isso teria a garantia de passar por toda vida e chegar à tumba em pleno vigor, como gavela apanhada no auge da estação. Ele encontraria algo em que confiar mais forte e mais sólido do que as costumeiras teias de aranhas que constituem os homens comuns, sobre as quais eles se apóiam, enquanto elas cedem, às quais eles se agarram, mas que deles deslizam. Ele não seria como a planta bem regada à luz do sol, espalhando rebentos pelo jardim, enroscando as raízes sobre uma pilha de pedras no solo, mas cujo lugar, depois de arrancada, a repudiasse dizendo: “nunca te vi”. Ele seria capaz, antes, de boiar no olho do tigre como o balido amniótico e recrementício do cordeiro. |
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ALESSANDRO ZIR – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (Brasil). Bacharel em Filosofia (UFRGS/Brasil), Bacharel em Comunicação Social (PUCRS/Brasil) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/Brasil).
Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Actualmente no Canadá, a preparar o doutoramento. E-mail: azir@zaz.com.br . URL: http://aletche.blogspot.com/ |