ALESSANDRO

ZIR

 

Estilhas de um vampiro

bem refletido

 

Capitulo 3:

No final da ladeira, um pavio

Era impossível que os pais também não soubessem que entre o que pareciam ser apenas meninos de um antigo colosso, estivessem os administradores diligentes dos seus mais diversos e tradicionais instrumentos de tortura, guardados a sete chaves nos limiares das portas, nas bruscas viradas das escadarias, nas curvas alongadas entre os incontáveis corredores, nos extensos patamares externos, e longas rampas, dentro de corrimões e nas várias portas de correr em madeira maciça, atrás das goleiras dos campos de futebol, nos muros de pedra, nos canteiros das hortas, em tonéis de cimento, por todas as árvores, e raízes de árvores, nas encostas, nos balanços, escorregadores, carrosséis, trepa-trepas, dos playgrounds, debaixo do bonde elétrico, desativado, e também no ginásio, com as quadras de vôlei, basquete, e a sala com equipamentos de ginástica olímpica, no museu, no aviário, e auditórios, e futuros laboratórios e bibliotecas, e jardins, e coelheiras, na marcenaria, na igreja, nas capelas — enfim, por toda parte dispersos, naquele complexo jurássico, com pouco mais de cem anos, num bater ligeiro de pernas miúdas, articulando-se em incansáveis joelhos, e braços espichados por cotovelos, e bocas escancaradas em gritos, e dentes escarnecidos em risos, consecutivos às sirenes das entradas, e saídas, e períodos, e recreios, e grades, e portões, e carros a ir e vir. Era impossível que os pais não soubessem que lhe fossem deixar aos cuidados dessa pequena elite dos mais precocemente curtidos, rudes e violentos, “uma menina em roupas de menino, a defender-se com as mãos escancaradas em dedos tesos, estendidos”.

Menor que a maioria dos seus colegas, apareceria naquela época com uma constituição proporcional, mas enganadoramente delicada, com feições talhadas de forma precisa e regular, mas destacadas numa profusão de cabelos negros naturalmente cacheados, e olhos largos, expressivos, a vazar inocentes uma profundidade desnorteante e sedutora. Num primeiro momento, a ninfazinha os confundiu. Mas ao invés de cederem de uma vez por todas à volúpia insuportável que sentiam cada um, individualmente, de violá-la, reuniram-se em grupo e decidiram submetê-la a um regime cotidiano de ameaças e humilhações contínuas, eventuais bordoadas e todo tipo de manipulação degradante, de um corpo que teriam direito a testar os limites, experimentar, conjuntamente, publicamente, antes dela própria. E quando nela emergisse algum tipo de vontade, a manteriam afastada, cerceada, sufocada sob uma iminência de morte. E como era impossível que os pais e as colunas do universo não soubessem, a ninfazinha passivamente se submeteu ao inferno de um esfolamento ascético e contínuo de alma — da alma, provocada, posta em xeque, desalmada, a ser desprovida por fim, depois de anos, de todo e qualquer viço genuíno, desdobrada num trapo adolescente macilento de espinhas e cabelos espetados. Ganhava das bestas, um espaço interior, feito de paredes apinhadas de olhos voltados para dentro, virados uns contra os outros, curiosos, indecentes.

Em onze anos, ao longo da subida rumo ao topo da imensa ladeira, a ninfazinha finalmente esfarrapada tinha deixado um berço, saído de um quarto, mudado de apartamento, de bairro, de cidade, de país, voltara de avião, com turbinas devorando tábuas, e casas, o que fora, o que era, suas lembranças caninas, e só sendo capaz de acumular, concentrado, o imemorial sobrepor entremeado, enviesado, dos próprios olhos digladiados vesgos, um contra o outro, num choque de superfícies, o riscar inaudito e incompreensível do mundo na passada subterrânea, abafada, de um fósforo. Era impossível que não aguçasse os ouvidos, agora, para o correr inexorável e esvanecedor da faísca pelo pavio de si mesmo, na direção do que não sabia, mas sentia ser tudo aquilo que lhe continha, nada mais nem nada menos do que o próprio universo, se revelando, era impossível que não sentisse, como derradeira dinamite. E de fato, explodiria.

Antes de prosseguir com a narração de um evento que, para além das analogias já utilizadas quanto à dimensão espacial do colégio, pode ser dito contemporâneo do famoso cataclismo do período Cretáceo-Terciário, é apenas justo fornecer ao leitor mais dados concretos relativos a certos episódios circunscritos ocorridos ainda no âmbito da vida escolar de Olek. Coisa comum é a tirania ocasional de um ou outro menino por algum ou alguns dos seus colegas maiores, mas mais raro é o caso da ninfazinha permanentemente singularizada, em alguns casos abertamente ridicularizada e atormentada em frente a dezenas, e há quem diga, até centenas de outros colegas. Dessa humilhação em massa, ela cunharia o alvorecer de um destino. Quase todo o meio-dia, havia a oportunidade do abate. Os algozes gritavam: “O Olek! Olek! Olek!”, e ele já se imaginava caçado rampa abaixo, com os livros derrubados, as roupas puxadas e retorcidas. Inevitavelmente, então, perdia a calma, o que deleitava ainda mais os torturadores e os incentivava a subseqüentes excessos. V. H. Merla (uma contemporânea), quarenta anos mais tarde, guarda na memória a cena de um pequeno Olek “cercado, vaiado, e arremessado de um lado para outro como um bezerro enlouquecido”. Emitia de fato uma espécie de mugido, urro paroxísmico, em seguida do qual parecia assombrado por aparições, ou visitações, com todos os indícios de serem reais, de seres em guerra com o mundo e alimentados do espírito da revolta; o círculo se abria e ele caminhava sonâmbulo, numa espécie letárgica de abstração, depois da qual os olhos flamejavam, os lábios estremeciam, e a voz saia da goela bifurcada e ceceosa como língua de cobra. Por causa de tais acessos, nos últimos anos de colégio, Olek viria a ser considerado por muitos colegas e professores como um ser estranho, insociável, possivelmente um místico, mas de qualquer forma à beira da loucura, não obstante ele mantivesse algo de sua permanente generosidade, fundada numa inteligência espontânea, capaz de ultrapassar de muito a média dos colegas em qualquer matéria a que se dedicasse, e numa genuína disponibilidade afetiva a ajudar não somente aqueles a quem verdadeiramente admirava, não somente aqueles por quem sentia uma empatia contida. Paradoxalmente, esses últimos, que tinha como modelos, eram muitas vezes exatamente os que detinham a prerrogativa de humilhá-lo na frente dos demais, como é visível na cena seguinte, também recordada por V. H. Merla: “os alunos estavam em retiro no Morro do Sabiá, e enquanto a maioria temerariamente escorregava pelas trilhas enlameadas da encosta, arrebentando ramos e levantando raízes, a fim de caminhar à beira do Guaíba entre nuvens de mosquito, Olek permanecera por mais tempo na capela, a observar camaleônico o quadro deNossa Senhora. Dois colegas tinham ficado também para trás, eu mesma, e o artilheiro da turma, ocasionalmente um dos seus algozes, provavelmente menos tosco, nem por isso menos rude; havia entre o artilheiro e Olek algum tipo de intimidade, e não era raro encontrar os dois estudando juntos; surpreendendo Olek na capela, o artilheiro sorriu para mim, e então comentou que devíamos chamá-lo; sem saber exatamente o que adviria daquilo, fiquei quieta, e o artilheiro mesmo o chamou, benevolente; Olek saiu da capela sorrindo em direção ao artilheiro, com os olhos vibrantes, esperando receber algum tipo especial de pedido, como se fosse ser enviado em alguma missão, ao que o outro imediatamente revidou com uma terrível bordoada, estampada em pleno rosto, que por muito pouco não o arremessou estatelado de costas; no momento exato, porque não podia conceber o ocorrido, meu estomago se contraiu, e tive de virar para o lado, ao passo que ouvia o artilheiro dizer constrangido ‘não é nada, não vês que ele já está rindo?’, e de fato, uma espécie de gemido entrecortado se seguiu, e mesmo sem olhar eu podia ver o latejar das marcas dos dedos do artilheiro na bochecha avermelhada do outro, se fisgando.”

Nada disso, entretanto, era páreo para a confusão que se desencadearia a seguir.