ALESSANDRO

ZIR

Estilhas de um vampiro

bem refletido

 

 

 

Capitulo 2:

A ponte entre o antes e o depois

As paredes do quarto se dissolviam em cinza com a mácula uniforme do dia nublado, através dos balaústres de concreto da sacada, granulados, entre bege e cor de gelo, sinuosos, alinhados ao longo de um passeio médio em extensão, lateral, apenas em parte entrevisto pela porta, curto em profundidade, retesado, recolhido junto ao prédio, encoberto de argamassa, cimento e fuligem, escorrido de chuva, tostado de um sol, agora morto, vaporoso diante do asfalto, se escalando, comprimido pelos prédios ao lado, diante dos prédios em frente, recuados alguns sob grades escuras de ferro, inclinações vertiginosas de tijolos e tijolos à vista sobre halls arrefecidos, como grutas em vidros refletindo ramos, folhas e troncos de jacarandás curiosos.

Os pardais piavam, revezando, cada uma das dezesseis barras de madeira das laterais do berço, pintadas de branco, entremeadas, súbito enviesadas, se sobrepondo, em grande esforço, pelos olhos digladiados vesgos, um contra o outro, eriçando, desconjuntando, através da textura invisível das superfícies. E lhe chamavam, pelo nome, que ele não ouvia, e nunca soubera ser seu. Estava parado, no meio do quarto, fora do berço, que fixava, que punha em xeque, assim como o pai, estacado à soleira da porta, de vir da sala, pelo corredor, espinha dorsal do apartamento, que os suportava suspendidos no alto do terceiro andar. Terremotos e vulcões convulsionavam mudos e totalmente afastados, no centro da terra. Incomunicáveis, como ele. Sobrancelhas a planar seguras ascendendo com os olhos, ante um oceano a transbordar salgado, plácido, rumo ao horizonte do berço, que se derretia, num mijo de fraldas. E lhe chamavam, pelo nome, que ele ouvia, e nunca soubera ser seu. E o pai, decidido, escancarou os dentes num largo sorriso, que pisoteou atravessando convicto pelo quarto e arrebatando-o nos próprios braços, sacudindo-o animadoramente, perguntando, incisivo, numa alegria protetora horrorizada:

—Mas o que é que fazes aí? O que é que fazes aí?

O que ele não podia àquela pequena altura de forma alguma entender, e do que tentava escapar intolerante, rompendo num choro convulsivo, esperneio e tapas, não era a castração inevitável de si em função de alguém que lhe deveria reconduzir através do espelho a si mesmo, mas a retirada súbita, inesperada, do próprio algoz-condutor, incapaz de se revelar na extensão ameaçadora da mão, porque inconsciente do seu próprio excesso fundamental. Deveria perdoar a necessidade do outro lhe açoitar e punir, mas não podia porque tendo o outro antes traído a si mesmo, a crueldade se recolhia enigmática no vácuo, mera possibilidade.

Anos mais tarde, leria um fragmento apócrifo de Nietzsche, descoberto no Uruguai por Rubem Fonseca:

A castração só se justifica como crueldade magnânima, que instaura, graciosa, um poderoso sistema mnemônico. O que se deve gravar na memória é a consciência não do excesso particular cometido, mas de um excesso fundamental, que precisa circunstancialmente ser suprimido, mas que na própria supressão se mantém como promessa, e que é, em si mesmo, inesgotável. Sem uma aceitação da castração, não daquela castração específica, mas da lógica inexpugnável da castração na sua totalidade, não se pode saber os limites de si mesmo, o que é concretamente o bem e o mal relativamente a si...

Para recuperar a graça de saber disso, teria de conseguir cair (o que só soube fazer muitos anos depois), liberando o calafrio de uma vergonha infinita petrificada no corpo, mas impossível de vivenciar na própria consciência, enquanto autoconsciência limitada. Conforme a parte final do fragmento:

... Qualquer insistência teimosa na autoconsciência, neurótico-defensiva, ou pseudo-terapêutica (e aqui todas as terapias são pseudo-terapias), conduz apenas à paralisia do horror mais absoluto. À impossibilidade impossível — a de nunca (se) arrebentar, na qual precariamente se congela. Só se alcança uma forma muito eficaz de alma, quando se risca a despencar dançando com as coisas, visionário, como demônios retumbando do exílio mais obscuro através de toda a criação. O sistema mnemônico não se justifica se não emerge do contato subterrâneo com uma vontade criativa (é essa que precisa ser lembrada), que aceita até mesmo a pior forma de crueldade, se caucionada por uma afirmação magnânima, que não pode deixar de não salvar, porque está (já) salva.