ALESSANDRO

ZIR

 

 

Pela retomada do coro na comÉdia contemporânea: o gago das aves sinistras e dos lobos (CONTRA A BOBA)

 

Contra a Boba

Postos no meio, o que preside do início ao fim d’A Boba são as aves sinistras e os lobos. Eles aguardam o autocancelamento da anã sentada na control e prestes a um malabarismo definitivo alt del. Aliam-se à insônia da autora, cancelando sua linguagem desbocada. No mais, a sobrevivência da anormal entre o teclado e a lixeira virtual do computador é anacrônica. Diferentemente, ao dar voz serena à gaguez convulsiva do justiceiro, Fernão Lopes imortalizou de forma simples o que não pode permanecer senão como ideal. Não há incoerência alguma em capar Afonso Madeira. O Cristianismo legítimo sempre foi mais receptivo à sodomia que ao adultério, pelo menos durante a maior parte da Idade Média (Boswell, 1981: 114, 171, 205). Por motivos óbvios, a necrofilia ainda lhe é mais próxima.

Sendo assim, o sadismo de Dom Pedro I de Portugal explica-se pela desordem e excesso comuns ao mundo feudal, tão bem caracterizados por Bataille no caso de um Gilles de Rais. Assim como em Rais, há em Dom Pedro algo dessa “férocité bestiale” dos “jeunes guerriers” — dos Bersekers dos primeiros séculos da Idade Média (Bataille, 1965: 30-2, 45f.). Alemão aqui é índice do monstruoso primitivo, e nunca do exterminador anormal moderno. Em outro ensaio importante, Bataille se refere não somente ao canibalismo, mas às práticas do potlach norte-americano enquanto exemplos do mesmo tipo de fenômeno transbordante:


A une époque relativement récente, il arrivait qu’un chef Tlingit se présente devant son rival pour égorger quelques-uns de ses esclaves devant lui. Cette destruction était rendue à une échéance donnée par l’égorgement d’un nombre d’esclaves plus grand. Les Tchoukchi de l’extrême Nord-Est sibérien, qui connaissent des institutions analogues au potlatch, égorgent des équipages de chiens d’une valeur considérable” (Bataille, 1967: 40).




Na foto: Maria Vieira no papel d' A Boba (TEC, 2008)

Correto: é a dissolução do mundo feudal, com a perda da possibilidade de expressão ritual da desordem e do excesso que empurra Rais para a perversão pueril. Impossibilitado de empreender novas guerras, quando essas são racionalizadas e submetidas ao interesse do estado, “sa vie assuma le lamentable cours que lui donnèrent ses crimes, et la suite de ses vains efforts” (Bataille, 1965: 69). No caso de Dom Pedro, o desfecho é mais feliz. A própria futura expansão naval portuguesa, mesmo se submetida ao interesse do estado, em tudo que ela tem de irracional seria fator capaz de prevenir um degringolar no tormento caricato de criancinhas. De acordo com Diffie e Winius, nessa válvula de escape “the young [Portuguese] fighting class found a place to win honors and new lands”, “outlets for their energies”. E os mesmos autores se referem a outro futuro Pedro, entre os “three energetic sons” de Dom João (Diffie and Winius, 1977: xiv, 49, 71).

O que está aqui em jogo, fundamentalmente, é dar um valor à história que vá algo além do contemporâneo “AH, NÃO SABEM NADA DE MIM. SE SOUBESSEM, OUTRO GALO CANTARIA. ESTOU POR DETRÁS DE TUDO!”. O que cria valor, nunca é meramente material. Bataille dá o exemplo das jóias: “Il ne suffit pas que les bijoux soient beaux et éblouissants, ce qui rendrait possible la substitution des faux: le sacrifice d’une fortune à laquelle on a préféré une rivière de diamants est nécessaire à la constitution du caractère fascinant de cette rivière” (Bataille, 1967: 34). E do sacrifício religioso: “Les cultes exigent un gaspillage sanglant d’hommes et d’animaux de sacrifice. Le sacrifice n’est autre, au sens étymologique du mot, que la production de choses sacrées” (Bataille, 1967: 34). O que cria valor se dá no extravasar do material.  E no extravasar do egoísmo, e não na sua autofundição paranóica. Exceto se essa for o suficiente implosiva, mas volta-se então às aves sinistras e aos lobos: o coro sublime da boba. Deveria haver na peça alguma instrução expressa para que esses fossem incluídos no cenário. O tão esperado despertador, mas de silêncio abissal.

Bibliografia:
BATAILLE, G.  "La notion de depense". In : Bataille, G. La part maudite précédé de la notion de depense. Paris: Minuit, 1967
BATAILLE, G. “La tragédie de Gilles de Rais”. In BATAILLE, G. Le Procès de Gilles de Rais. Montreuil : Jean-Jacques Prevert, 1965, pp. 11-102
BOSWELL, J. Christianity, social tolerance, and homosexuality  gay people in Western Europe from the beginning of the Christian era to the fourteenth century. Chicago : University of Chicago Press, 1981
DIFFIE, B. W. ; WINIUS, G. D. Foundations of the Portuguese Empire, 1415-1580. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1977
GUEDES, E. A Boba. (Monólogo em três insônias e um despertador). Lisboa: Apenas Livros, 2006
SARAIVA, A. J. As Crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva, 1997

ALESSANDRO ZIR – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (Brasil). Bacharel em Filosofia (UFRGS/Brasil), Bacharel em Comunicação Social (PUCRS/Brasil) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/Brasil). Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Actualmente no Canadá, a preparar o doutoramento. E-mail: azir@zaz.com.br . URL: http://aletche.blogspot.com/