BENTO CARQUEJA

Bento Carqueja
Por Luís de Oliveira Guimarães

Excerto de um texto de Luís de Oliveira Guimarães, na secção "Notas Trocadas em Miúdos". O Comércio do Porto", 1960.

Assisti no salão nobre da Academia das Ciências de Lisboa à sessão solene que ali se realizou, na noite de 26 de Março de 1949, em memória de Bento Carqueja. Lembro-me bem. Presidiu à sessão Júlio Dantas, insigne presidente da Academia, sentando-se a seu lado Fernando Emídio da Silva e Joaquim Leitão que pronunciaram os discursos de louvor. Entre a assistência, além de Seara Cardoso, sucessor de Bento Carqueja na direcção de "O Comércio do Porto", estavam os dois netos do homenageado. D. Maria Elisa e Manuel Filipe. Depois das notáveis palavras de abertura proferidas por Júlio Dantas evocadoras dos múltiplos aspectos da personalidade de Bento Carqueja - o jornalista, o economista, o professor, o orador, o filantropo, o académico, o chefe de família - falaram Fernando Emídio da Silva, que evocou Bento Carqueja o seu meio e a sua época, e Joaquim Leitão, que com Bento Carqueja viveu e conviveu, não apenas na Academia, mas no Porto, assistindo à constante ascenção do prestígio da sua pessoa e da sua obra. Joaquim Leitão - estou a ouvi-lo - terminou o seu discurso dizendo que nunca a antiga denominação de "sócio efectivo" dada aos académicos de número da douta Casa do Duque de Lafões fora mais adequada do que a Bento Carqueja que, vivendo no Porto, todas as quartas-feiras tomava o "rápido" da noite para Lisboa e, ao outro dia, chovesse ou ventasse, depois de dar as suas voltas, dirigia-se à Academia para assistir à sessão da Classe de Letras a que pertencia. Podia faltar toda a gente: Bento Carqueja não faltava. À sua vida académica dava, na verdade, o carácter efectivo que semelhante categoria tem o direito de exigir.

Recordo-me que, ao terminar, Joaquim Leitão, percorrendo a sala com os olhos, observou:

- Ainda não o vi hoje. É singular. Mas Bento Carqueja era incapaz de faltar à sessão. Está, está aqui com certeza ...

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Foi numa dessas pontuais visitas a Lisboa do antigo director de "O Comércio do Porto" que eu tive a honra de o conhecer pessoalmente. Dir-se-ia que o vejo, neste momento, como Joaquim Leitão o descreveu naquela sessão da Academia: baixo; entroncado; cabelo à escovinha, louro à semelhança do bigode;
óculos de ouro; voz doce com o seu sotaque portuense a desmentir a aparente rudeza da expressão; sempre despretenciosamente vestido; sempre atarefadíssimo. O retrato afigura-se-me perfeito.

Acrescentarei apenas que, no dia em que o conheci, em pleno Rossio lisboeta, Bento Carqueja empunhava em embrulho que rescendia. Era um ananás. Como eu me permitisse gabar-lhe o aroma, contou-me que um seu amigo tinha um filho que gostava muito desta fruta; ia a casa desse amigo e havia-se lembrado de
comprar um ananás para levar ao pequeno.

- Fui comprá-lo à Praça da Figueira - explicou-me ele, sorrindo - porque a carqueja, que pode dar flor, não dá ananáses ...

Numa das minhas passagens pelo Porto, Bento Carqueja, com quem tive o gosto de me encontrar, levou a sua amabilidade, não só a oferecer-me dois dos seus livros, mas a convidar-me a fazer uma conferência evocativa dos folhetinistas que, a começar por Camilo, frequentaram o rodapé do "Comércio". Era um verdadeiro curso de literatura para que eu - pobre de mim - não me encontrava suficientemente habilitado; disse-lho; ele teve a bondade de insistir; acabamos, se bem me lembro, por marcar data e local; mas meteram-se outras coisas; a conferência foi-se adiando; entretanto Bento Carqueja faleceu - e o projecto não se realizou. Recordo-o agora como testemunho da sua bondade. Mal diria eu, então, que o viria a fazer num folhetim do seu jornal!

*

Bento Carqueja nasceu em Oliveira de Azeméis em 6 de Novembro de 1860. Perfaz-se agora um século. Aos dez anos foi para o Porto chamado por seu tio, Manuel de Sousa Carqueja, um dos fundadores do "Comércio". Muito novo entrou para o jornal e lá ficou até morrer. Já houve quem dissesse que o jornal era para Bento Carqueja uma necessidade. Eu prefiro dizer que o jornal era para Bento Carqueja uma paixão. Se a todas as suas actividades ele se entregava com fervor, o jornal, que acabou por dirigir durante algumas dezenas de anos, tinha no seu coração um lugar àparte.

Ramalho Ortigão, ao referir-se um dia ao "Comércio do Porto", escreveu que o jornal possuía fundos, crédito, giro comercial, pagava aos seus credores e não admitia chalaças, o que significava haver o Porto encontrado o seu jornal. Ora se isto é certo, não é menos certo que o jornal de que o Porto carecia encontrou em Bento Carqueja o director que lhe convinha. Não foi ele que fundou o "Comércio", mas foi ele que o desenvolveu, que o categorizou e que tudo preparou para que ele viesse a ser o grande orgão de informação e de opinião que hoje é.

Se Bento Carqueja (que continua, por certo, a ler, no Além-Túmulo, "O Comércio do Porto"), passar os olhos por este folhetim, que me perdoe as descoloridas palavras com que me permiti celebrar o seu centenário!

 

 

 

 

 

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