BENTO CARQUEJA

Bento Carqueja
A sua morte e o seu funeral

Nove da manhã, do dia 2 de Agosto de 1935, Bento Carqueja partiu da Rua do Molhe, na Foz do Douro, onde estava a passar o Verão, para a sua última viagem: agora ao encontro de Deus.

Rodeado pelo carinho de sua filha, Maria Paulina Carqueja Seara Cardoso, de seu genro, Fortunato Seara Cardoso, e dos seus netos, Maria Elisa, Manuel Filipe e José Miguel – crianças a quem cumulava de enorme ternura e, vendo nelas, quem sabe, o futuro e a esperança de seus prosseguidores em tantas obras encetadas.

Uma síncope cardíaca, três dias antes, retirara a vida a essa figura inigualável, plena de força e de trabalho, que no dia 6 de Novembro completaria 75 anos.

Seu primo e médico assistente, Dr. Paulino Ferreira, fez os possíveis e impossíveis para lhe conservar a vida, mas a sua hora tinha chegado na maior paz e beatitude.

Mal a notícia foi conhecida, tanto a cidade do Porto como Lisboa e até algumas vilas colocaram placards, enquanto as bandeiras surgiram a meia haste.

De Oliveira de Azeméis, sua terra natal, chegaram sua irmã Amélia Carqueja Abreu e Lima, seu cunhado Fernão de Lencastre Abreu e Lima e sobrinhas Virgínia e Maria Antónia, esta acompanhada de seu marido o médico Manuel Valente.

Junto do corpo já se encontrava, há muito tempo, o amigo de todas as horas, comendador Francisco Bernardino Pinheiro de Meirelles.

… A casa começou a encher-se de muitos outros familiares e amigos. Bento Carqueja vestia toga negra, borla, capelo e pesado colar de membro efectivo da Academia de Ciências de Lisboa. Entre as mãos, retinha um crucifixo de prata, venerado há muitos anos por sua família e, sobre o coração, meia dúzia de flores que sua irmã Amélia colhera no jardim da casa de Oliveira de Azeméis, onde nascera Bento Carqueja.

Por volta das quatro da tarde, o Abade de Nevogilde, Reverendo Manuel Pereira da Conceição, veio levantar o corpo que acompanhou até às instalações do jornal O Comércio do Porto, na Avenida dos Aliados, onde ficou em câmara ardente para ser velado.

Formando alas pela escadaria do edifício do Jornal, educandos do Asilo do Terço aguardaram, de armas em riste, a chegada da urna que, mal retirada do carro dos Bombeiros Voluntários do Porto, foi transportada até ao Salão Nobre pelos chefes das várias secções do Jornal. Logo se formaram turnos que, em vigília permanente, permaneceram até ao dia seguinte.

Entretanto, Mestre Teixeira Lopes, seu grande amigo, tirou o molde da sua máscara mortuária assim como da sua mão direita; a mão de um homem digno que tanto bem fizera a tanta gente…

Vindas de comboio, quer de Lisboa quer da província, apresentaram-se inúmeras personalidades dos mais diversos sectores.

Na manhã seguinte, às onze horas, a urna, ostentando a bandeira da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, foi transportada pela mesma Corporação de Bombeiros para a Igreja da Trindade, enquanto um mar de gente nas ruas e nas janelas lhe prestava a sua última homenagem. A pé, seguiram todas as individualidades da cidade, pessoas gradas, amigos, professores, artistas, jornalistas, irmandades, representantes de asilos, todos aqueles que lhe queriam bem, enquanto sinaleiros, envergando as suas fardas de gala, organizaram o trânsito.

O templo fora decorado pelo armador Alberto Pereira e a missa rezada pelo Reverendo Padre Paulo da Silva Bizarro, acompanhada ao órgão pelo Maestro Afonso Valentim. As gentes do Porto não paravam de passar diante da urna.

Pelas quatro horas da tarde, foram celebrados os responsos conjuntamente pelo Cónego Correia Pinto – amigo da família -, em representação do Bispo da Diocese do Porto e que, na então Assembleia Nacional era deputado pela Igreja, pelo Abade de Oliveira de Azeméis, Joaquim Ferreira Salgueiro, e pelo Reitor da Igreja da Trindade, Marcelino da Conceição. Como acólitos, os amigos comendador Francisco Bernardino Pinheiro de Meirelles e Eduardo da Fonseca, tendo a cerimónia sido acompanhada por orquestra e coro regidos por Afonso Valentim.

No templo repleto de gente, a tristeza e enorme saudade dominaram os presentes, principalmente a família que ocupou a capela-mor.

Terminada a cerimónia, a chave da urna foi entregue ao Chefe da Redacção de O Comércio do Porto que a transferiu para as mãos do Comendador Francisco Bernardino Pereira de Meirelles e, este, muito comovido, ofereceu-a a Fortunato Seara Cardoso, genro de Bento Carqueja e novo director de O Comércio do Porto.

Da Igreja até ao carro dos bombeiros, organizaram-se dois grandes grupos. O primeiro, formado por colegas da Universidade do Porto. O segundo, constituído por jornalistas de vários órgãos da Comunicação Social do país.

O cortejo fúnebre foi liderado por carros dos Bombeiros Voluntários da Invicta, de Valadares e de Vila Nova de Gaia que transportaram inúmeras coroas de flores, seguidos de uma longa fila de automóveis conduzidos por elementos das mais diversas classes sociais.

Ao passar na Avenida dos Aliados, frente ao edifício de O Comércio do Porto, o cortejo parou por uns momentos, como se o até então director e proprietário do Jornal, pretendesse simbolicamente despedir-se do imponente edifício que mandara construir e, no qual vivera tantas jornadas de trabalho, inquietação e camaradagem.

De novo em marcha, o cortejo atravessou a Praça da Liberdade, subiu as ruas de Passos Manuel e de Santa Catarina, entrou na Praça da Batalha, seguiu pela Rua Augusto Rosa e, frente ao Governo Civil, desfez-se o acompanhamento a pé que lhe tinha prestado o seu último tributo.

As lojas encerraram e as bandeiras içadas a meia haste. O Porto rendeu, assim, homenagem a quem tanto fizera pela cidade.

O cortejo em rápido andamento, cruzou Vila Nova de Gaia, igualmente inundada de gente e com a bandeira da Câmara Municipal colocada a meia haste. Nos Carvalhos, era dia de feira semanal e o féretro atravessou o espaço por entre alas de uma multidão em silêncio.

Em S. João da Madeira, o comércio local também encerrou e milhares de pessoas, vestidas de negro, aguardaram a passagem do funeral.

À chegada à sua querida terra natal, Oliveira de Azeméis, às 18:15 horas, o povo das freguesias vizinhas, nomeadamente Palmaz – onde fundara a Fábrica de Papel do Caima, a maior empregadora local – não conseguiu reter as lágrimas.

A urna, levada aos ombros dos trabalhadores da Fábrica, subiu a escadaria da Igreja Matriz ao som dos sinos que gemiam de dor.

Concluída a cerimónia religiosa, um grande cortejo a pé seguiu o corpo de Bento Carqueja até ao cemitério, passando pela Escola Industrial e Comercial de O Comércio do Porto, por si fundada. Alunos e professores curvaram-se respeitosamente à sua passagem.

Já no cemitério, chegaram ao sumptuoso jazigo da Família Carqueja. Não seria ali que o corpo iria repousar, mas, em frente, num pedaço de terra, por ele comprado e, onde fizera questão de ser sepultado.

Falou então o Prof. Mendes Correia, na condição de seu colega na Universidade do Porto e na Academia de Ciências de Lisboa, que relatou a sua obra sobre Economia Política e Direito Industrial, algo que viria a constituir o mais completo trabalho da especialidade, nunca antes produzido entre nós.

Seguiu-se o Dr. Albino dos Reis, ex-ministro do Interior e figura grada de Oliveira de Azeméis, que enalteceu todos os benefícios trazidos por Bento Carqueja à sua terra natal.

O Dr. Rui Silva Lino elogiou as suas notáveis qualidades como jornalista, professor, economista, cientista e conferencista.

O Dr. Amador Valente, seu amigo e conterrâneo, recordou a tão longa amizade que os ligara. O Prof. Oliveira Cabral, colaborador da secção infantil de O Comércio do Porto, falou em nome das crianças que Bento Carqueja tanto amara, despedindo-se comovidamente.

O Dr. Aarão de Lacerda, em nome dos colaboradores de O Comércio do Porto, Raul de Sousa Teixeira, da Associação Comercial do Porto, em nome da cidade, também se manifestaram e, finalmente, Marques da Cunha, em representação dos profissionais da Imprensa ali presentes, assim se referiu: “Bento Carqueja é o símbolo do homem que viveu, sofreu, lutou e venceu ásperas batalhas, sempre com dignidade e altruísmo. Este homem que aos 10 anos deixou a sua terra natal para ir estudar no Porto – para casa dos seus tios Manuel e Francisco Carqueja, proprietários e fundadores do jornal O Comércio do Porto -, começando pelo Colégio da Glória, rumando depois para a Academia Politécnica onde ingressou num curso de Filosofia então denominado “Curso Superior de Agricultura”, tendo sido sempre um aluno brilhante.

Com 24 anos de idade, foi nomeado professor na Escola Normal do Porto, embora anteriormente se tivesse já dedicado ao jornalismo. Foi também professor catedrático da Universidade de Ciências e director do Instituto de Investigações Económicas e Administrativas, cargos que sempre exerceu com grande relevo.

Como sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, na secção económica e administrativa, nunca faltou a nenhuma sessão até quase à sua morte.

A família, o ensino e o jornalismo constituíram as suas grandes paixões mas, estas, nunca o impediram de ter sido também um homem que sempre se preocupou com o seu próximo. Ergueu bairros operários, criou creches, lançou as escolas itinerantes Maria Cristina que percorriam a província com o objectivo de ensinar as novas técnicas aos lavradores, tendo-se dedicado também a asilos, preocupando-se com os seus educandos. O Jornal contribuía com donativos seus e dos leitores para benefício dessas diversas obras sociais.

Bento Carqueja deixou uma vasta obra literária, viajou pela Europa e América do Sul, onde proferiu notáveis conferências.

Convidado para ministro e reitor da Universidade do Porto, sempre recusou tais cargos com a afirmação: “Quero ser um homem livre, para livremente defender o meu país!”.

Quando o Sol começou, lá muito ao longe, a despedir-se das rias da Murtosa, a multidão abandonou o cemitério de Oliveira de Azeméis.

Bento Carqueja repousava para sempre na campa da terra que tanto amara e jamais havia esquecido.

 

Maria Elisa Carqueja Seara Cardoso Pérez

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