Até 1807 Domingos Vandelli manteve sua vida
equilibrada em Portugal, dividindo-se entre Coimbra e Lisboa, mais
particularmente nas atividades da Ajuda, onde trabalhava como
Diretor de seu Jardim Botânico. Além de
Sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, também se associou às
Academias de Upsala, Lusacia, Pádua e Florença (1).
Contudo, com as invasões francesas (2), sua vida e de
sua família mudaria de rumo. Napoleão chegou ao poder na França
como 1º Cônsul (1799), vindo a ser coroado Imperador em 1804 sob o
título de Napoleão I. A partir de 1807 conduziu seu governo sem atender
aos Corpos Legislativos e com características autoritárias, imperiais e
expansionistas. As guerras, a princípio localizadas como conflitos entre
soberanos, tornaram-se guerras nacionais a partir da resistência popular
da Espanha e de Portugal aos invasores napoleônicos, transformando-se
nas Guerras Peninsulares. Com o apoio da Inglaterra as nações europeias,
derrotadas em sucessivas coligações, acabaram por se impor a Napoleão na
Batalha de Waterloo em 1815 (3).
Foram eventos aparentemente distantes que influenciaram Vandelli e
Portugal. Com o crescente poderio dos franceses e sendo Conselheiro do
Príncipe Regente D. João, Domingos Vandelli escreveu muitas Memórias
econõmicas e políticas, mostrando oscilar entre aceitar o apoio inglês
ou a forte presença napoleônica em seu país. Por fim, em fins de 1807
Napoleão invadiu Portugal, fazendo com que boa parte da Corte viesse
para o Rio de Janeiro. Vandelli e seus familiares ficaram, pois ele já
possuía idade avançada para uma difícil travessia marítima (4).
Como resultado das emoções inerentes a qualquer guerra, a “Setembrizada”
foi uma reação do governo português ao final das
invasões contra supostos colaboracionistas, abrangendo muitos
estrangeiros e maçons que trabalhavam em Portugal fazia bastante tempo.
Foram apelidados de “afrancesados”,
pois seriam personalidades que apoiavam politicamente a França. A ação
persecutória atingiu o seu auge entre os dias 10 e 13 de setembro de
1810, com várias prisões e deportações. Domingos Vandelli e seu
filho Alexandre são acusados de traição à pátria. Na
noite de 10 para 11 de Setembro de 1810 são presos juntamente com outros
“estrangeirados” e conduzidos para o Forte de
São Julião da Barra em Lisboa junto. São em seguida embarcados na
fragata Amazona com destino à ilha Terceira, nos Açores. No
dia 25 chegaram a Angra e no dia 26 desembarcaram. Notícias se
espalharam, denunciando a colaboração de Vandelli pai com Geoffroy de
Saint-Hillaire na pilhagem levada a cabo por este de acervos
museológicos importantes de Portugal, especialmente no Museu da Ajuda na
época em que Domingos era seu Diretor. Todavia, essas denúncias jamais
foram comprovadas, assim como outras, assacadas contra muitos cidadãos
acusados de “afrancesamento”.
Os militares ingleses, ao que parece, ajudaram os
presos que possuíam ligação (4) com a Maçonaria dos dois países, ou
mesmo com a famosa Royal Society de Londres, esta também com muitos
membros ligados aos “pedreiros-livres”, a sair dos Açores rumo a
Londres. Além do Mestre Vandelli, outro personagem muito lembrado neste
episódio é o do francês Jacome Ratton (1736-1822), negociante e membro
da Loja Maçônica “Amizade” em Lisboa, que também foi preso e deportado
para os Açores, exilado nas mesmas circunstâncias que Vandelli, e
retornado a Portugal também em 1815 (6).
Para muitos dos naturalistas que ficaram em Portugal,
os Vandelli foram frequentemente motivo de dúvidas quanto à sua atuação
tanto política quanto científica, como ainda hoje:
Da história do Museu Real da Ajuda consta ainda
uma extensa lista de "depredações", a maior das quais teve lugar na
sequência das invasões Francesas. Napoleão, conhecedor que foi da fama e
do valor das colecções do Museu Real da Ajuda, ordenou Junot que
notificasse Vandelli a fim de este entregar ao naturalista francês
Geoffroy Saint-Hilaire os exemplares que este escolhesse com destino ao
Museu de Paris. Saíram assim, entre 1803 e 1808 várias centenas de
exemplares de espécies animais (mamíferos, aves, répteis, peixes,
insectos, crustáceos, conchas), 2 herbários com 2855 plantas, várias
dezenas de fósseis e minerais (sobretudo com ouro) e 5 manuscritos
(7).
O preconceito contra Domingos Vandelli pode em parte
explicar, talvez, o “esquecimento” quanto às obras e atuações
histórico-científicas do filho Alexandre Vandelli. A relação acima
exposta em Carvalho e Lopes foi extraída de outra ainda maior, escrita
pelo naturalista José Vicente Barbosa Du Bocage (1823-1907) e datada de
1863, constante do “Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências
de Lisboa” (8), afirmando que o Diretor “Vandely” (sic) não teria
esboçado resistência para entregar grande quantidade de material
naturalista aos franceses por ordem direta de Junot, primeiro invasor de
Portugal enviado por Napoleão.
Inclusive, Bocage cita ironicamente Saint-Hillaire,
Intelligente, instruido, animado de um zelo
ardente pela zoologia Geoffroy Saint-Hillaire utilisou em beneficio da
sciencia descrevendo-os, os exempleres que jaziam ignorados dentro dos
armários do museu de Ajuda, e que estavam talvez fadados, se ali
permanecessem a desapparecer, como tantos outros presa da traça
(9).
A discussão sobre o possível colaboracionismo do
naturalista paduano (Vandelli teria deixado levar do museu da Ajuda, sem
nenhuma resistência, o que hoje constitui lista de muitos produtos
naturais) sempre foi cercada de sentimentos partidaristas e jamais
provado. Assim, este e muitos outros fatores podem ter contribuído para
a derrocada de Domingos Vandelli. Suas relações e nomeações da época
pombalina, seu suposto deísmo maçônico, o fato de ter uma esposa de
sobrenome francês (10), o citado “espírito de guerra” que tomou conta de
Portugal após as invasões, invejas pessoais e profissionais, intrigas
palacianas (era médico e Conselheiro da Corte), são motivos que podem
ser trazidos à tona, além de alugar um quarto
de suas dependências em Lisboa a um inquilino considerado jacobino (11).
Domingos Vandelli ficou no exílio em Londres entre
1811 e o final de 1814, quando retorna a Lisboa, já alquebrado dos
momentos passados, vindo a falecer em 27 de junho de 1816, dia do
aniversário de Alexandre Vandelli. São fatos que provavelmente marcaram
Alexandre de alguma forma no que diz respeito à sua maneira de escrever
e pensar, principalmente quando mais idoso no Brasil.
Alexandre Vandelli será Procurador (ou Representante
legal) de seu pai em muitas ocasiões entre 1805 e 1815, passando pela “Setembrizada”.
Inicialmente perante o Príncipe Regente para que perdoasse o pai das
acusações, pleiteando através de vários documentos a comutação da pena (Figura
1) (12). Ao mesmo tempo, Domingos Vandelli nomeou o filho seu
procurador (13) para que recebesse nas Instituições onde havia
trabalhado os valores que mantinham a supervivência (os quais
frequentemente não eram pagos), tanto dele quanto de sua família.
Entre os vários argumentos que
Alexandre Vandelli utiliza para defender a memória de seu pai, o
primeiro refere ao seguinte fato:
Que elle veio a Portugal
crear as duas cadeiras de Chimica, e Historia Natural, que de novo se
estabelecerão, pela Gloriosa reformação dos Estudos, assim como o Real
Jardim Botânico d’Ajuda, e o da Universidade de Coimbra, sendo, por
isso, o primeiro, que deu à Nação Portugueza estes importantes
conhecimentos, tam úteis às Artes, e á Agricultura, que desde então
principiarão a progredir, e florescer. (14).
Foram momentos difíceis para toda a família,
surgindo providencialmente a participação de José Bonifácio durante a
década de 10 do século XIX como um substituto eventual à falta paternal
de Domingos Vandelli. |
(1)
Innocencio Silva, I. F.
Diccionario Bibliographico Portuguez, Lisboa: Imprensa Nacional,
vol. II, 1908.
(2)
Começam as Guerras Napoleônicas: designação do conflito
armado que se estendeu de 1799 a 1815, opondo a quase totalidade das
nações da Europa a Napoleão Bonaparte.
(3)
SERRÃO, J.V. História de Portugal – A instauração do Liberalismo
(1807-1832), vol. VII, Viseu: Editorial Verbo, 1982, p. 75-79.
(4) FERREIRA, J.B. A missão de
Geoffroy Saint-Hillaire em Hespanha e Portugal, durante a invasão
francesa, em 1808, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926, p.
5-9.
(5) No sítio www.triplov.com
consta o passaporte de saída da ilha para a Inglaterra, encontrado
pela pesquisadora Maria Estela Guedes na Biblioteca Pública de Angra
do Heroísmo. As ligações maçônicas de Domingos Vandelli são
corroboradas como verídicas por essas organizações em Portugal,
assim como aconteceria com José Bonifácio em relação à Maçonaria
brasileira.
Alexandre Vandelli não segue, neste aspecto, nenhum dos seus
antecessores, não tendo pertencido à Fraternidade, ao que tudo
indica.
(6) Importante e excelente obra a
respeito da Maçonaria e a região açoreana é a Dissertação de
Mestrado de António Lopes, apresentada na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Está disponível no
Grêmio Lusitano em Lisboa – Museu Maçônico. A menção ao Mestre
Vandelli aparece, por exemplo, à pág. 239: LOPES, A. A Maçonaria
Portuguesa e os Açores, 1792 – 1935, Ensaius, Lisboa, 2008.
(7) CARVALHO, A. M. G.;
LOPES, C.L. Geociências
na Universidade de Lisboa - Investigação Científica e
Museologia, Museu Nacional de História Natural, 2008. Texto
apresentado ao Museu Nacional de História Natural.
(8) AZEVEDO, P. Geoffroy de Saint-Hillaire em
Lisboa. In: Boletim da Classe de Letras da Academia das
Ciências de Lisboa (Antigo Boletim da Segunda Classe), vol. XIV
(1919-1920), Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922, p. 112-115.
(9)
Idem, p. 112.
(10)
Feliciana
Isabella Bon, mãe de Alexandre A. Vandelli, foi acusada de possuir
origem francesa e de estar ligada ao naturalista francês Geoffroy de
Saint-Hilaire.
(11)
SEQUEIRA, G.M.
A casa onde morreu Vandelli,
In: Depois do Terramoto. Subsídios para a
História dos bairros ocidentais de Lisboa. Lisboa: Academia das
Ciências de Lisboa, Vol. II, 1967, p.
93-96.
(12)
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de
Manuscritos, Alexandre Antonio Vandelli Procurador de seu pai na
Setembrizada, documento n° C.722-11.
(13) Arquivo da Universidade de
Coimbra, Processo Dr. Domingos Vandelli, caixa 372.
(14)
Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, Setor de Manuscritos, Cartas de Feliciana Izabel Bon
Vandelli, 1817, nº. C-0047, 016.
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