Adílio Jorge Marques

O Natal e a Tradição

        Desde tempos imemoriais esta data era marcada com muitas fogueiras que festejavam e celebravam o retorno do sol das profundezas da escuridão, já que no norte, dependendo da região, ele pode ficar até alguns meses sem aparecer no horizonte.  É o momento em que toda a natureza se fecha sobre si mesma, num ato de quase reflexão, pois a Mãe Terra não está gerando seus frutos, restando a muitos a hibernação, seja ela física ou até mesmo espiritual.

Foi no século IV, durante o Concílio de Nicéia, que se determinou a festa do Natal próxima ao solstício de inverno (no norte), mais precisamente à meia-noite. Tal festividade substituía as tradições pagãs que na noite especial de 21 de dezembro celebravam a renovação do sol. A partir do dia do solstício de inverno no hemisfério norte (solstício de verão em nosso hemisfério sul) o sol começa a subir na esfera celeste, e os Romanos festejavam o evento nos templos consagrados como o "sol invicto", exatamente na colina onde hoje está a cidade do Vaticano.

            A partir de 335 D.E.C. passou-se a celebrar o Natal em Roma, substituindo-se a “celebração do nascimento do sol visível no solstício de inverno pela do Criador invisível do sol", segundo Santo Agostinho, Doutor da Igreja. Transformava-se assim a festa solar pagã do "natale invicti" em festa cristã do "natale cristi”, do Cristo vencedor. Fazia-se coincidir os ciclos das festas cristãs com o das festas pagãs, ciclos estes marcados pelas celebrações ritualísticas da Luz. Com isso o sincretismo e a permanência da nova religião fundada por Roma estaria mais facilmente garantida, o que realmente ocorreu.

A tradição do acendimento das fogueiras remonta aos persas, a Zoroastro, que tinham no fogo o símbolo máximo da Divindade. A imagem de Reis Magos que vêm do Oriente cultuar ao Deus Sol também remonta à influência da Tradição dos persas na Igreja.  A tradição judaico-cristã é uma mescla de muitas lendas, mitos e símbolos de tradições muito mais antigas que a própria Igreja do Ocidente. 

A Luz sempre eterna que ilumina a noite de Natal desde a aparição dos anjos aos pastores de Belém, e mesmo nas nossas missas da meia noite, chamam como num eco a Luz da Ressurreição que será celebrada durante a noite Pascal meses depois. O fogo é o símbolo solar por excelência.

            A natureza, até então morta, revive para verdejar e ao renascimento do sol manifestado no Natal, responde com o renascimento da natureza manifestado em seu auge na Páscoa. O Cristo, morto tal como em uma árvore, ressuscita como o sol e abre as portas de seu Reino. Os símbolos natalinos que vemos hoje em dia e que fazem referência às árvores de Natal, à neve e a todos os símbolos que adquirimos são a ligação do Natal com o clima do norte e o renascimento vegetal. A neve sujeita a natureza, como já mencionado, à hibernação. As árvores não dão frutos. Por isso nasceu a tradição de se colocar pequenos enfeites nos galhos dos pinheiros (ou qualquer outra árvore considerada sagrada) para que representassem seus frutos que surgirão novamente a partir da primavera seguinte. Nosso inverno no hemisfério sul não é tão rigoroso, mas os ciclos de nascimento e morte também existem.

            A Festa da Luz, daquilo que renasce, é modernamente a festa do "reveillon", quando entra o mês de janeiro ou da Deusa Janus com seus dois rostos, um olhando para o passado (o ano que já terminou) e outro olhando para o futuro (o novo ano que se inicia), mostrando um futuro cheio de esperanças. Estas se renovavam em seis de janeiro quando se comemora a Festa da Epifania, ou Dia de Reis, como conhecemos nos países de língua portuguesa. 

Epifania possui etimologia grega e significa manifestação; no caso, a manifestação do Cristo que acabou de nascer em 25 de dezembro. É uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência ou do significado de algo. Nos primeiros séculos da Igreja ritos bem particulares ocorriam na noite anterior, ou seja, em de cinco de janeiro. Tais ritos podem ser relacionados com os que ocorriam no Egito nos dias cinco e seis de janeiro quando, em homenagem a Osíris, representava-se a sua morte, além da busca de Isis e do nascimento de Horus. No dia seguinte as águas do Nilo deviam transformar-se em vinho, também um símbolo do sangue do Cristo. O sol devia, por intermédio do fogo, unir-se à terra, mas também antes devia unir-se à água para provocar a renovação da natureza no par de opostos.  A apresentação de Cristo aos povos se dá com o episódio da visita dos Reis Magos ao Menino Jesus. Com a reforma do calendário litúrgico em 1999, a Igreja transferiu essa festa para o 2º domingo depois do Natal, à qual é festivamente comemorada pelos congadeiros, com suas belas folias de reis.

O Natal também é a festa das crianças, o que lhe confere seu caráter de intimidade familiar e de celebração de inocência.  Mas a criancinha deitada na manjedoura do presépio deve crescer a partir desse dia, pois este é o seu destino tal como o do sol. Ambos são na verdade um só desde o início dentro desta representação particular. O Papai Noel traz os presentes àqueles que tiveram um bom comportamento durante o ano que se encerrou, ligando-se à idéia de carma tão inerente aos místicos. O bom velhinho é um Santo (Santa Klaus do norte) que acabou por tornar-se hoje num símbolo comercial, pois representa a doação àqueles que nada tem (ou assim deveria ser). 

A idéia de Criança-Deus é totalmente estranha ao Islã, religião do Oriente Médio, terra de Jesus, onde Alá identifica-se também a um "sol invictus" que estaria sempre presente no solstício de 24 de junho, com o sol no zênite, ou seja, no meio do céu, exigindo a fé de suas criaturas submetidas ao seu poder. Lá o sol não se "esconde" no inverno, levando a outras adaptações da Tradição Primordial. "Islã" significa "submissão (a Alá)".  Um sol ofuscante só pode iluminar o crente com sua luminosa evidência, assim como o sol escaldante do deserto, sendo este o meio ou habitat daqueles povos. 

O Sufismo, misticismo muçulmano, raiz da Ordem do Templo e oriundo do Antigo Egito, encontra também nesses símbolos meios de meditação profundos que levam a Alma humana ao êxtase, não somente através da dança e da música, mas também com a meditação e o retiro interior.

            O Natal nos oferece outra visão: a de um Deus que se esconde como o sol de inverno nas altas latitudes, lá onde a cristandade devia precisamente propagar-se, sob os climas menos ensolarados que os da Arábia, do Oriente Médio ou da África do Norte, primeiros berços do Islã. Jesus Cristo simboliza o Deus escondido, um Deus que se mantém humildemente à porta da alma e do coração, um Deus que se infiltra e se insinua nos nossos momentos de fraqueza, em nossos pontos de ruptura. Somos muito incompletos, divididos pela fronteira que separa o animal e o homem.

Profunda insatisfação que se sente cedo ou tarde devido a um tipo de "dívida" com relação a esta estranha aspiração pela perfeição que constantemente habita o nosso ser interior. É a busca da regeneração que Saint Martin nos ensina através do Martinismo. A escuridão da noite com que se comemora o Natal nos remete ao inconsciente, ao adormecimento da Alma que está prestes a despertar junto à Iniciação que obtemos interiormente, quando compreendemos os mistérios do Nascimento do Senhor.

            Tanto o Oriente quanto o Ocidente possuem em suas Tradições espirituais a convergência da idéia de que a renúncia e a pobreza de coração são condições necessárias para o despertar da liberdade interior, único caminho para a Reintegração ao Amor do Eterno. Temos neste símbolo o estábulo e a simplicidade da manjedoura em que o Mestre encontra-se deitado, sendo adorado pelos três Reis Magos. Em nosso coração está o Templo Interior, o estábulo simples, aquele mesmo que cultiva o símbolo do coração Crístico que acaba de nascer e que vemos nas imagens de Jesus e de Nossa Senhora. É o Sagrado Coração de Jesus e de Maria sempre presentes.

            Reunindo-se assim as muitas antropologias, a mensagem cristã, adogmática, é como uma semente enterrada na noite da terra invernal: de início é pequena no coração que está pronta a acolhê-la e só cresce pacientemente, etapa por etapa, através das alegrias e tristezas da vida. Esta mensagem invade e investe o ser inteiro, por um fenômeno de crescimento, por meio de uma pulsação lenta e irresistível quanto aquela que faz a criança crescer ou que faz o sol de Natal elevar-se no céu todos os dias.

Assim, o Natal acontece diariamente sem que muitas das vezes nos apercebamos disso. O Deus-Sol, o Logos Solar, Aquele Ser que nos alimenta com Sua Luz, calor e a Sua Divindade, está sempre nos mostrando que somos capazes de vencer os obstáculos da natureza e do próprio homem.

            É certo que muitas sementes abortam, pois é a lei que só algumas darão frutos de início, mas malogros e insucessos pertencem àqueles que não sabem acreditar, que não querem realmente acreditar; aos que não põe em prática a revelação das bênçãos diárias de Deus que desafiam a lógica humana. A palavra "prática", dita de forma profana, nada tem a ver com a prática mística. Esta, a verdadeira, significa "praxis", que é maneira de agir, modo de viver, de ser, é a prática Cavaleiresca, código que pertence ao Cavaleiro que diariamente luta contra as forças contrárias às propostas pelo Criador. Cavaleiro-Guerreiro que é o representante na Terra do Sol Vencedor.  Ou seja, somos nós mesmos.  

Somos os guardiães dessa semente para o amanhã. Temos que levar adiante a chama do Ser Maior que está em nós desde tempos imemoriais e deixar que ela nasça todos os dias no coração daqueles que estão preparados, de uma maneira ou de outra.  E todos o estão, num nível mais ou menos profundo.

"O caminho é estreito", nos disse o Senhor, mas não impede que ninguém prossiga em sua missão. Dependerá apenas de nós mesmos.

 

Prof. Adílio Jorge Marques. Nasceu em 1968 no Rio de Janeiro/RJ, sendo de família lusa. Possui cidadania portuguesa. Desde muito jovem é estudioso e participante das Antigas Tradições, da História e das Ciências.

Concluiu o Doutorado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, após realizar intercâmbio na Universidade de Aveiro, Portugal, sendo o trabalho com ênfase na historicidade luso-brasileira. 

O tema da Tese na UFRJ versa sobre a vida e a obra do naturalista Alexandre Antonio Vandelli, personagem pouco estudado e filho do famoso paduano Domingos A. Vandelli da Reforma Pombalina.  

Possui Mestrado em Astrofísica estelar pelo Observatório Nacional (Brasil/RJ), com graduação em Física e em História. Atua como Professor de História da Ciência e de Física no Brasil. 

Email de contato: adiliojm@yahoo.com.br