O novo texto tem antes de mais características técnicas que é necessário determinar, na medida em que o hipertexto inaugura uma nova era do discurso. Em termos geométricos, o hipertexto surge como se vê no quadro de Michel Bernard abaixo reproduzido, que permite seguir os estádios da linguagem:
Passa-se do grito (inarticulado) ao discurso oral (dotado de uma só dimensão, linear), à escrita (o ouvido dá lugar à vista, dotada de duas dimensões) e ao hipertexto (dispositivo electrónico de três dimensões) . Os dicionários, as enciclopédias, os jornais, as concordâncias, já prefiguram, no interior da galáxia de Gutenberg, os documentos hipertextuais: "da mesma forma que a escrita durante muito tempo não foi senão uma prótese da oralidade, o hipertexto não pode ser pensado e lido nos seus balbucios senão como um livro aperfeiçoado. Já não há cisão tecnológica nem epistemológica." Segundo o autor citado, quando se vê um hipertexto no écran podem-se notar as seguintes características: 1. a leitura não é sequencial Harrison e Stephen (1992, pp. 190-191) utilizam o termo "texto dialógico" para descrever uma nova forma de discurso e definir este texto feito em colaboração, que reflecte o envolvimento de múltiplas vozes autoriais onde o texto simplesmente de colaboração reduz as vozes mútliplas a uma única voz compósita. Algumas ficções da rede parecem dar espaço a uma opção infinita por parte do leitor, a ponto de permitir também aos leitores escrever tudo. Se entrarmos em contacto com Stories From Downtown Anywhere (http://www.awa.com/stories.2html), encontramos um diagrama complicado de várias histórias "in progress" todas elas a serem escritas colectivamente. Basta encontrar uma opção vazia - uma parte do diagrama com um título e sem texto - escreve-se até quinhentas palavras e envia-se ao editor. Tem de concluir-se o segmento com uma opção para o leitor. O hipertexto vai permitir desenvolver obras romanescas e outros livros "de que se é o herói", ou ainda "livros com capítulos de que se é autor". Há muitas formas de estruturar a ficção intertextual desde a ficção plenamente interactiva da história automatizada - gerando sistemas e jogos de aventura, até às narrativas convencionais, apresentadas como uma colecção de páginas de hipertexto ligadas (por exemplo a conversão de Alice´s Adventures in Wonderland de Lewis Carrol). O hipertexto pode ser utilizado simplesmente para acrescentar ilustrações e notas de rodapé (veja-se Accounting for the Cards de Heather Valima); pode ser utilizado para apresentar uma narrativa única através de pontos de vista diferentes, estilos de escrita diferentes, tempos e espaços diferentes; ou pode ser utilizado para permitir ao leitor aceder a uma variedade de materiais de uma forma não estruturada, construindo assim a sua própria narrativa (por exemplo, The Dictionary os Khazars de Milorad Pavic). Em 1962 Raymond Queneau escreveu Cent Mille Milliards de Poèmes onde se podiam juntar os versos das estrofes para formar múltiplos sonetos, de acordo com as opções do leitor. Alguns anos mais tarde Julio Cortázar escreveu Hopscotch um romance em que a ordem dos capítulos era variável. Tal como um exemplo mais recente, The Dictionary of the Khazars, as ficções interactivas de Queneau e Cortázar foram publicadas em livro, apresentando-se como excepções anormais à regra linear. Outra obra combinatória será Une chanson pour Don Juan de Michel Butor. Estes exemplos bastam para indicar a transformação da literatura. Alia jacta est é o primeiro romance interactivo lançado em França. Logo no início se diz: "esta história é sua". Seguem-se depois três momentos: a) um começo de romance; b) as diversas intervenções que chegam; c) o pedido de envio da sequência seguinte, acrescentando-se as sequências umas às outras. Até que alguém, um "storyteller" decida que o romance acabou. Aqui começam os problemas: a) da clausura da narrativa, por exemplo; b) da autoridade: quando é que uma obra produzida electronicamente pode considerar-se terminada, quem pode dizer: "a festa acabou"?; c) onde é que o processo de criação da obra termina e começa o produto?; d) os limites da liberdade da narrativa: a flexibilidade, a multiplicidade, das narrativas orais; e) mas poderá o hipertexto ser utilizado para construir boas histórias?; f) quantas opções para o leitor se podem considerar suficientes? A hiperficção compreende um novo género literário, porque a sua tecnologia, as suas formas e a sua recepção diferem significativamente dos outros géneros. R. Ziegfeld estabelece interessantes pontos de comparação entre a materialidade do "software" vs "print fiction" . A prática do hipertexto vai obrigar a pôr o problema não só da autoria, como a questão do monopólio, isto é, os limites ao acesso da informção, bem como o problema da transmissão electrónica que não vou aqui tratar. O princípio que subjaz ao romance interactivo não é que o computador se torne o autor preferido do utilizador, mas que o mundo imaginário de um romance permita dar um passo e que este passo possa transformar-se num mundo virtual. O computador apenas fornece os meios para navegar neste novo mundo. Mas quem decide do rumo é o leitor. Mudança assinalável de instância de destinação, no dispositivo enunciativo que preside a um texto. Do meu ponto de vista, que é o de imanentismo aberto, qualquer enunciação subjacente implica o leitor que a expande e sem o qual o texto não passaria de um objecto textual disponível, puramente virtual, à espera de um operador para o transformar em discurso articulado, inteligível. O trabalho de leitura religa entre si os elementos significantes de um texto, de tal modo que eles só significam em conjunto e uns relativamente aos outros. Mas em termos de prática semiótica da leitura, os textos são ou documentos ou monumentos. Enquanto documentos, os textos são fontes de informação, fornecem-nos quer objectos referenciais (acontecimentos, condição da sua redacção e da sua recepção, cultura, questões a que respondem), quer objectos conceptuais (formulações, expressões, sínteses). Enquanto monumentos de fala e da significação, os textos não estão ao serviço da mensagem ou do dado que fornecem, devendo por isso ser percorridos como actuais da fala que os habita: os textos são uma escrita a ler. O leitor é parte integrante da enunciação, no seu lugar de receptor, activo, e a sua intervenção é necessária para que o texto a respeitar se torne o espaço de uma doação a acolher. A ideia da autonomização absoluta do leitor é uma ideia totalitária. A minha concepção da enunciação é dialógica, não monológica . A semiótica não procura descrever o sentido dos textos, a sua mensagem, mas, como dizia Greimas, "o sentido do sentido". L. Panier escreve o seguinte: "um texto não se confunde com a sua significação; e também não é o simples decalque ou a representação directa dela, é a sua manifestação...Enquanto que o sentido é apreendido, descodificado, dado, a significação, inicialmente pressuposta, deve ser construída como objecto inteligível". Se a discursivização dá lugar ao sujeito da enunciação, pode dizer-se que o acto de leitura põe em causa o lugar de um sujeito de enunciação, sujeito relativo não só ao saber que manifesta um leitor para descodificar as mensagens e as avaliar, mas também aos encadeamentos significantes delineados no discurso. Por outras palavras: "é a interpretação que torna o texto lisível e que realiza o trabalho do leitor, e o actualiza como sujeito de enunciação. O leitor descobre-se, revela-se a partir da leitura: como sujeito, é um efeito da leitura" . |