Os pés do vento correm na areia. Os homens voltam-se ligeiramente sobre os seus passos, sorriem um pouco, são de novo devorados pela força interior, a indiferença. Durante um instante recolhem o violento azul do espaço, o mar fixo e as cores primárias dos barcos. As lisas imagens dos dias instalam-se neles como figuras abstractas e completas. Sobem e descem dentro deles. Respiram.
À volta as crianças fazem a vida das lagartixas, copiando-lhes o quotidiano de sol, fugas precipitadas, atenta imobilidade e combates incompreensíveis. Nos campos e montes, seguindo pistas, as mulheres procuram a bosta seca dos animais, para combustível. Os homens ruminam as imagens, os esquemas. As crianças movem-se no seu universo reptilíneo.
As lagartixas vivem cercadas pelas crianças. Delas esperam tudo: o alimento e a morte. É um pacto, um comércio tácito cheio de enigmáticas intenções. Uma linguagem de dádiva e crueldade, pela qual pessoas e bichos fascinadamente se conhecem. Porque as crianças são lagartixas fortes que decretam as leis de relação. No silêncio amarelo e saturado da praia, iniciam o jogo ritual da cidadania. Atraem as lagartixas, mexendo de leve na areia, distribuindo num sábio acaso miolo de pão, insectos mortos, pedacinhos de gordura. Podem afugentá-las de repente com um gesto inimigo. Ou cortar-Ihes as caudas num golpe rápido, e dar-lhes depois uma bolinha de pão. Ou prender, na mão fechada, os corpos frios e aterrados. E podem hesitar, matá-las, dar-Ihes a liberdade.
Mas as crianças pagam os direitos do poder. Sujeitam a atenção: a fisionomia do seu mundo tem de adaptar-se a certas leis profundas dos bichos. Armam-se então de uma grande paciência animal, uma secreta humildade para com as forças que demarcam e condicionam o teor das suas próprias regras.
Decerto todas estas regras se elaboram e exercem na inspiração do terrível, mas o terrível possui a sua doçura oblíqua, uma lírica sumptuosidade, uma pura exaltação. As crianças amam as lagartixas com uma crueldade cheia de paciência e pormenorizado arrebatamento.
Há uma centena de maneiras de assassinar lagartixas. Foi isto que os carrascos aprenderam com as vítimas. Por cima de cada morte urde-se um jogo subtil, onde cada propósito cria a ambígua antecipação que abre portas imediatamente fechadas. E depois possivelmente reabertas. As invenções bebem no gosto da dor, das pequenas catástrofes. A fúria corre silenciosamente para as mãos sábias, uma fúria inteligente e mesquinha. Invenções e mãos que nunca se aplacam. A crueldade inventa sem parar. Aperfeiçoa instrumentos e métodos, num estilo cada vez mais cerrado, límpido e tenebroso. Um estilo de propósitos severos, quase místicos.
Na manhã aberta por todos os lados, morre um homem. Um cancro devorou-o de dentro. Mero símbolo, porque a morte nasce e floresce dentro de cada criatura, espalhando morosamente as finas e frias ramificações. Nesta, a raiz estava cravada nos pulmões, e a devoração atingiu, na manhã branca, a sua forma terminal de flor.
O cadáver é lavado, envolto num lençol e posto sobre quatro bancas baixas, unidas umas à s outras. Do corpo só se vê a cabeça azulada.
Uma a uma são retiradas do quarto todas as peças. Nem um móvel, uma estampa, um objecto. Apenas as paredes grosseiras caiadas de branco, o chão de terra batida, e o corpo nu e limpo do morto embrulhado no seu lençol.
Quando abrem a porta, a luz irrompe violentamente e bate nas paredes despidas e no lençol. A cabeça azulada do morto tem um peso quase obsceno no meio da claridade explosiva.
Entre o corpo e o lençol, colocam a navalha de barba que pertenceu ao homem.
As mulheres gritam à porta da rua.
Lá dentro, no abismo luminoso, a cabeça do morto parece negra.
O mar rumoreja nos troncos de madeira que servem de pilares ao cais, arrasta-se pela praia e molha os pés escuros dos homens deitados. Cai o sol sobre os campos secos onde as mulheres recolhem a bosta ressequida. As crianças matam, e as lagartixas morrem.
É uma ilha em forma de cão sentado.
Extracto de "(uma ilha em sketches)"
In: Herberto Helder, Photomaton & Vox
Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, pp. 20-22 |