Fernando Ribeiro de Mello/ Jornal de Letras e Artes – Como considera criticamente a evolução da sua produção poética, desde «O Amor em Visita» ao recentemente publicado «Electronicolírica»?
Herberto Helder – Em certo sentido (que também prezo), não houve evolução. Esse sentido é o de fidelidade às bases da minha experiência – a descoberta do modo – que, fundamentalmente, se cumpriu na infância. A experiência exterior poderá ser considerada simples desenvolvimento ou enriquecimento «em linguagem». A minha poesia processou sempre, como é evidente, exercer-se sobre essa massa central e viva. Mas a experiência humana é apenas ponto de partida, núcleo sólido e permanente onde assenta a experiência posterior da criação. Considero a criação o encaminhamento, até às consequências extremas, de uma experiência em si mesma não organizada. A descoberta do mundo não possui, por ela própria, finalidade ou coerência, nem constitui a salvação desse mundo. Desde que seja possível criar um corpo orgânico em que a experiência, devidamente articulada, se baste, surge uma harmonia entre o sujeito e a sua experiência, quero dizer, o sujeito participa do cosmos. Este esforço da superação do caos exprime-se pela busca de uma linguagem. È aliás na linguagem que a experiência se vai tornando real. Se nela não há, em sentido rigoroso, experiência do mundo. A esta conclusão vem chegando uma moderna filosofia da arte. A formação da linguagem é um paciente, extenso, doloroso e, muitas vezes, desesperante caminho. O erro aparece como uma constante, mas existe a possibilidade de ser sempre menor. Entre um grau máximo e um grau mínimo de erro, situa-se a evolução. Progresso de linguagem, de adequação às finalidades, superação da experiência, purificação do tema – eis onde se pode situar o sentido da evolução. Evolui evoluirci. Suponho que, entre a minha produção até ao volume «Lugar» e a quer me encontro realizando, há um salto considerável. O livro «Electronicolírica» é apenas o início do rompimento com certos princípios que orientavam a procura do estilo. Acho-me no ponto em que não hesito distanciar-me de tudo o que antes escrevi. Mesmo de «Electronicolírica» , aliás, composto há já um ano. Afasto-me, até, da minha colaboração no primeiro número de «Poesia Experimental» que, escrita antes, se situa contudo num momento mais avançado de evolução. Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para mim. O pouco significarem garante-me completa liberdade e isenção, em ordem a uma nova linguagem. Nesses volumes não se exprime propriamente uma evolução, pelo facto de todos eles assentarem em dois preconceitos, a saber: 1) A consideração exclusiva de processos literários para a realização do espaço poético; 2) a preocupação de conseguir uma linguagem comunicativa. Presumo que um poeta dispõe de recursos muito mais amplos do que os meramente verbais e que, utilizando-os mesmo em exclusivo, eles devem tender à organização não apenas literária, ou gramatical, ou rítmica. Compreendo que se possam fazer poemas recorrendo, por exemplo, à expressão matemática, ao grafismo, à técnica comercial e industrial, às máquinas, à música, ou a qualquer outra fonte e tipo de sintaxe. Por outro lado, imagino que as preocupações do poeta se devem libertar da linguagem organizada para o diálogo. Max Bense afirma algo de semelhante, ao acentuar que «no conceito convencional de literatura, põe-se a ênfase na função comunicativa-social dela, enquanto que, no conceito progressivo, se insiste na sua função experimentativa-intelectual». Interessa-me, portanto, chegado que sou à convicção de me haver limitado, nos livros anteriores, a mover-me em círculo sobre uma linguagem esgotada – interessa-me digo, muito menos executar, uma gramática literária, destinada ao diálogo, do que perfazer um organismo internamente coerente e bastante. A comunicação será consequente, se for. De qualquer modo, bani a ideia, do diálogo, no meu estilo. Mas sinto-me ligado aos escritos antigos como alguém se pode sentir ligado a um paciente e doloroso erro...
FRM/JLA – Como explica a publicação do seu último livro, poesia de carácter experimental, após e em face da obra anterior que conquistara inegável prestígio?
HH – A resposta a esta pergunta está incluída na primeira. Resta-me acrescentar que o prestígio que possa ter alcançado (prestígio equivoco no qual se integra a malquerença de alguma gente, que aceito com satisfação) não poderia constituir uma poltrona. O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia.
FRM/JLA – Que pensa da atitude da crítica relativamente a este livro?
HH – A crítica? Bem vê: nas circunstâncias em que me encontro, a crítica não me poderia ajudar. Ela de resto nunca ajuda um autor. Tende afazer de mediadora entre uma linguagem e um entendimento. Ajudará o leitor. Visto que bani das minha preocupações a ideia de comunicação, não considero a intervenção desse primeiro decifrador, do mediador. Porque não estou interessado em que o leitor adira...
Poucas apreciações críticas foram feitas ao livro, até porque só o enviei a três ou quatro críticos, cada um deles representando certo núcleo de opinião. Simples curiosidade da minha parte... A referência que lhe concedeu Álvaro Salema exprime, mais ou menos, a opinião dos neo-realistas a meu respeito e inscrevo-a na categoria dos meus pequenos divertimentos privados. A de João Gaspar Simões, mais esclarecida e esforçada, carece de informação. Não é possível criticar-se um livro de poesia experimental com os instrumentos aplicáveis à poesia convencional. Em todo o caso, Gaspar Simões é um homem atento, e a sua formação de base parece-me menos estreita que a da maioria dos críticos portugueses. Lamento que o seu conceito de poesia se vincule demasiado a alguns postulados da geração presencista.
FRM/JLA – Diga-nos se o seu livro de contos «Os Passos em Volta» constitui uma experiência isolada ou representa uma continuação da sua obra restante.
HH – Esse livro pertence ao mesmo sistema de propostas e soluções dos outros. Inscrevê-lo na designação de contos, ou chamar aos meus outros livros conjuntos de poemas, significa apenas ausência de superfície às categorias estabelecidas. Não me parece necessário referir a crise das classificações literárias. Caminha-se, sabemo-lo todos, para uma visão total da obra literária que se não podem adoptar distinções afinal nunca rigorosas, senão de um ponto de vista didáctico e, assim mesmo, somente em determinado grau de didactismo, «Os Passos em Volta» são a minha primeira tentativa para superar a dictomia prosa-poesia. Marcam também o meu interesse, no momento de referir algumas algumas experiências de facto, em que a circunstância desempenhava papel preponderante. Achei então que o poema, como eu o vinha praticando, não possuía a elasticidade, o ritmo, o clima verbal, capazes de abrange, adequadamente o tecido temático e circunstancial que eu pretendia explorar. Aquele livro permitiu-me tal experiência, tendo sido ele, afinal, um passo decisivo para a abolição dos preconceitos que vinham limitando o meu trabalho.
FRM/JLA – Sobre os cadernos «Poesia Experimental» que se lhe oferece dizer?
HH – «Poesia Experimental», cadernos cujos propósitos são parcialmente expostos no primeiro número e que mais cabalmente irão sendo nos seguintes, constitui o único esforço sistemático e de conjunto para a renovação da poesia portuguesa. Estes cadernos provarão também que existe na nossa poesia uma tradição que nunca foi sequer, de passagem, indicada. Quanto ao corpo de colaboradores, que espero ver presentes no diversos números que se projecta publicar, têm vindo todos eles, privada ou publicamente, tentando alguns meios novos da expressão poética. Salette Tavares ofereceu-nos agora algo que considero extremamente importante, tendo conseguido uma desenvoltura rara na utilização de uma gramática com pouca tradição onde se apoiar. António Aragão propõe um extenso poema-narração, bastante ambicioso,, justo em muitas das suas partes. Há nele uma multiplicidade de experiências que conduzirão a lugares diferentes do experimentalismo. E. M. de Melo e Castro consegue o melhor dos textos que publicou até hoje e onde se purifica a tendência «concretizante» dos seus processos. António Ramos Rosa aparece com textos semantemáticos de grande rigor que marcam corajoso passo em frente, passo aliás adivinhável já em «Ocupação do Espaço». António Barahona da Fonseca liberta-se dos seus vínculos surrealistas e promete o necessário salto mortal, para que, interiormente, se tem vindo a preparar. Quanto a mim, vou um pouco mais longe na exploração do principio combinatório inspirado nas calculadoras electrónicas, considerando no entanto tais experiências ainda pouco ousadas para o que pretendo. Espero conseguir um pouco mais.
Não existe qualquer uniformidade nas experiências em curso entre os colaboradores de «Poesia Experimental». É visível, imediatamente, que duas grandes tendências se desenvolvem no sei da revista. Uma a que poderei chamar «concretizante», que se apoia, digamos, numa concepção materialista da linguagem, procurando a coisificação da palavra. Outra «abstractizante», em que a ambiguidade e o indefinido, provenientes de uma inclinação barroca do espírito, se inserem no processo verbal, criando espaços míticos sobre os quais se pode dizer debruçar-se um sentido do maravilhoso. Esta tentativa de caracterização é de facto rudimentar e assinala apenas diferenças profundas imediatamente observáveis.
FRM/JLA – Quanto a si, quais os movimentos ou tendências da poesia portuguesa actual que lhe parecem importantes, não só do ponto de vista de renovação formal, estética como também sob o ângulo conceptual e humano?
HH – O único movimento poético que me parece moderno é o Experimentalismo. E estou a referir-me tanto ao nosso país como à poesia em geral. Os meus interesses estão de tal modo virados para ela que me é quase impossível dar atenção à poesia convencional, por mais notável que seja, dentro dos seus recursos e propósitos.
Quanto ás expressões «formal», «conceptual», «estético» e «humano», nas acepções utilizadas na sua pergunta, nada tenho a dizer. Representam conceitos não integráveis, desse modo, no meu processo de pensamento. Em poesia, formal, conceptual, estético e humano significam, conjuntamente, «linguagem». E poesia, como diria certo crítico norte-americano, é linguagem. Isolar o implícito, explicitando-o, servirá apenas para estabelecer um sistema insolúvel de situações. |