Herberto Helder e a menstruação quando na cidade passava

 

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Herberto Helder – «A menstruação, quando na cidade passava»
Comunicação à Tertúlia Artes e Letras, Biblioteca Pública de Lamego, 24.06.23
Em publicação na Revista Altazor, Chile


A respeito do poema em título, vou apontar só dois aspetos: primeiro, ele documenta a fase sociável de Herberto Helder (Funchal, 1930-Cascais, 2015), em que participava de movimentos de grupo, como o surrealista, e assumia lideranças. De facto, ao editar, com António Aragão, os dois cadernos da Poesia Experimental, em 1964 o primeiro e em 1966 o segundo, ele tornou-se mentor da vanguarda literária, o que é posto em evidência no Arquivo Digital da PO.EX; o segundo aspeto diz respeito ao tema, tabu ainda hoje, passível de despertar o interesse feminista, tal como o da Censura.

O texto foi publicado em 1964 no livro Electrònicolírica. Já o título evidenciava um dos propósitos da poesia experimental, a fusão das várias modalidades da arte, e da arte com a técnica e a ciência, no desejo de laboratório, de experimentação dos próprios materiais usados na obra de arte. Na poesia, os materiais são as palavras, os versos, as ferramentas de escrita e até o papel como suporte. Hoje, esses materiais expandiram-se para novas tecnologias. A fusão com a ciência tem um dos seus ícones no “Soneto Soma 14x” (1963) de Melo e Castro, composto só com algarismos. Fernando Aguiar pode criar sonetos com árvores, no terreno físico. As palavras experimentam-se na sua origem etimológica, na sua expressão fonética e semântica e na sua imagem visual. Os versos libertam-se das linhas paralelas e por vezes do papel. Poesia visual ou poesia concreta são outras designações destes trabalhos que por vezes se situam mais na área das artes plásticas do que na literatura. Pertencem a Herberto Helder os quadros de poesia visual  publicados em 1966, no segundo caderno de Poesia Experimental, de que deixamos exemplo.

Herberto Helder

Em “A menstruação quando na cidade passava”, o poema apresenta forma quase canónica, no âmbito da modernidade, salvo que o verso se liberta da sintaxe, por não coincidir com a frase.

Além de Herberto e António Aragão, os mais proeminentes poetas visuais da época são Ana Hatherly, Melo e Castro e Salette Tavares. Ana Hatherly, como ensaísta e investigadora, mostrou, n’ A experiência do prodígio, que grande parte do experimentalismo da vanguarda se patenteia já nos poetas barrocos.

Antes de 1964,  Herberto Helder publicara apenas um livro, esse poema deslumbrante editado por Luiz Pacheco, na Contraponto, “O amor em visita”.  “A menstruação quando na cidade passava” assemelha-se-lhe; sendo experimental de um lado, de outro é versilibrista, luxuriante, recamado de inesperadas metáforas. De um lado o laboratório, como quer a PO.EX, de outro a espontaneidade e a liberdade procuradas pelo surrealismo, que para tanto ia ao ponto de buscar na escrita automática a ausência de supervisão racional.

Passando agora ao segundo aspeto do poema, o temático, é fácil ver que ele não deixa indiferentes os leitores, mesmo nos nossos dias. Herberto Helder era uma pessoa muito livre, capaz de tocar em qualquer assunto, mesmo este, o da menstruação, a que também chamamos “período”. Se repararem, tal palavra não figura no poema, sim “tempo”. O tempo é muito mais amplo e mítico do que o período. Findo o período, o estudante faz exames; findo o tempo, deparamos com a Eternidade. Igualmente óbvio é o jogo das cores, em que domina o vermelho dos cravos e do sangue, em contraste com a brancura da neve; outro contraste é o do quente e do frio.

Então, o assunto da menstruação, alusivo à vida na sua instância mais biológica, não só é pouco frequente em literatura, como deve ser raríssimo em textos de homem. Só nos nossos dias conheci mulheres a escreverem poemas com tal assunto. Suponho que só Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, as Três Marias autoras das Novas Cartas Portuguesas, possam ter ombreado com Herberto Helder neste domínio. Quero dizer que se trata de textos anteriores ao 25 de Abril, portanto passíveis de censura. Aliás, quer as Três Marias quer Herberto Helder sofreram pressões políticas graves, que resultaram em processos criminais. Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, com as Novas Cartas, e Herberto, com Natália Correia e outros, sofreram processo criminal por causa da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, editada em 1965 por Fernando Ribeiro de Mello.

Maria Teresa Horta, em Minha senhora de mim e outros livros, pode ter aflorado o tema, mas só uma década ou mais depois de Herberto Helder. Rosa Sangrenta , dela igualmente, traz como foco a menstruação, mas esse livro, de 1975, já pertence a nova realidade política, a da democracia.

“A menstrução quando na cidade passava” não é um poema erótico nem satírico. Diz respeito à temática mais fundamental do poeta, a do corpo, envolto nos seus mistérios da Criação, pulsante de sensorialidade. As emoções e as sensações perturbam o poeta, quando mexe no vocabulário da fisiologia, e isso verifica-se desde o primeiro ao seu último livro.

A pergunta que me acode ao espírito, quando leio o poema, diz respeito ao lugar: em aparência, quando o poeta passava na cidade, percebia o cheiro da menstruação: O primeiro verso, sem enjambement,  lê-se assim: “A menstruação quando na cidade passava o ar”. E então temos o cheiro a ser transportado na cidade pelo movimento do ar… Pergunto: que cidade? Coimbra? Lisboa? Não, eu diria que o poeta se recorda de experiências vividas no Funchal, em criança, com a mãe e as irmãs, figurantes de vários poemas, quase sempre como presença corporal, estimuladora das perceções sensoriais. Nesse ambiente familiar, o tema seria muitíssimo mais tabu ainda do que para a censura social e política, visto que o poeta recebeu a língua e a cultura maternas numa família judaica.

Hoje, a menstruação não será tema abundante mas ocorre, sobretudo na poesia feminina. Apesar de já não ser tabu na literatura, tal como nada é tabu em matéria de géneros e trans-, confesso que fiquei incomodada ao pensar que Valter Hugo Mãe deve sofrer todos os meses com as dores menstruais. Pelo menos é o que Carla Diacov sugere no título do seu livro, A menstruação de Valter Hugo Mãe (Editora Macondo, 2020).

Post scriptum. Interessante que a menstruação saiu, nos nossos dias, do domínio do interdito para o do decreto. Com efeito, no Brasil, por exemplo, está em debate a necessidade de o governo ajudar as jovens mais pobres no período menstrual, facultando-lhes pensos e tampões higiénicos. Na área das artes plásticas, recordo o lustre esplendoroso de Joana Vasconcelos, construído com tampões.


A menstruação quando na cidade passava (excertos)

 

A menstruação quando na cidade passava

o ar. As raparigas respirando,

comendo figos – e a menstruação quando na cidade

corria o tempo pelo ar.

Eram cravos na neve. As raparigas

riam, gritavam – e as figueiras soprando de dentro

os figos, com seus pulmões de esponja

branca. E as raparigas

comiam cravos pelo ar.

E elas riam na neve e gritavam: era

o tempo da menstruação.

[…]

As figueiras sopravam no ar que

corria, as máquinas amavam. E um peixe

percorrendo, como uma antiga palavra

sensível, a página desse amor.

E alguém falava: é a neve.

 

As raparigas riam dentro da menstruação,

comendo neve. As cabeças das

estátuas estavam cheias de cravos,

e as crianças abatiam a boca negra sobre

os gritos. A noite vinha pelo ar,

na sombra resvalavam as maçãs.

E era o tempo.

 

E elas riam no ar, comendo

a noite,

alimentando-se de figos e de neve.

E alguém falava: crianças.

E a menstruação escorria em silêncio

– na noite, na neve –

espremida das esponjas brancas, lá na noite

das raparigas

que riam na sombra da casa, resvalando,

comendo cravos. E alguém falava:

é um peixe percorrendo a página de um amor

antigo. E as raparigas

gritavam.

 

As vacas então espreitando,

e nos focinhos consumia-se o lume em silêncio.

Pelas janelas os violinos

passavam pelo ar. E a menstruação nas raparigas

escorria pela sombra, e elas

gritavam e comiam areia. Alguém falava:

fogo. E as vacas passavam pelos violinos.

E as janelas em silêncio escorriam

o seu fogo. E as admiráveis

raparigas cantavam a sua canção, como

uma palavra antiga escorrendo

numa página pela neve,

coroada de figos. E no fogo as crianças

eram tocadas pelo tempo da menstruação.

[…]

A noite comia areia.

E eram cravos nas cavernas brancas.

Menstruação – falava alguém. O ar passava

– e pela noite, em silêncio,

a menstruação escorria pela neve.

Herberto Helder

 


SUPORTES :

– Ana Hatherly, A experiência do prodígio – bases teóricas e Antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983.

– Arquivo Digital da PO.EX. In: https://po-ex.net/

– Herberto Helder, O amor em visita, Lisboa, Editora Contraponto, 1958.

– Herberto Helder, Electrònicolírica, Lisboa, Guimarães Editores, 1964.

– Herberto Helder, Ascensão dos hipopótamos. In:

https://www.triplov.com/estela_guedes/2010/poesia-visual/pages/Herberto_Helder1.htm

– Herberto Helder, A máquina lírica. in Ofício Cantante, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009.

– Maria Estela Guedes e outros, vários ensaios e outros documentos em triplov.com .